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Coronavírus é novo golpe para atingidos pela barragem em Mariana (MG)

Ponte do Gama, onde Mirella Lino morava antes do rompimento da barragem - Arquivo pessoal
Ponte do Gama, onde Mirella Lino morava antes do rompimento da barragem Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Assis e Wigde Arcângelo

Colaboração para o TAB

12/04/2020 04h00

5 de novembro de 2015. Mariana, Minas Gerais.

Mauro Silva atendeu o telefone: era um amigo com quem já tinha trabalhado. Em outras cercanias, Mirella Lino se preparava para ir à escola. Enquanto isso, a sobrinha de Luzia Queiroz, quilômetros longe dali, deixava seu telefone insistente tocar. Quando estranhou a quantidade de ligação de uma mesma pessoa, retornou a ligação. Era o namorado, que avisava o mesmo que o amigo de Silva: a barragem de Bento Rodrigues havia rompido.

Na escola, Mirella Lino não compreendia a gravidade da informação que chegava aos poucos — ela não era familiarizada com os processos da mineração. Amedrontada, esperava o motorista do ônibus chegar para voltar para casa. Foi quando avistou a televisão de um bar ligada no programa de TV "Cidade Alerta". "Fúria das águas" aparecia escrito na tela. "Eu via na imagem a lama descendo de alguma coisa. Depois passou a imagem de Bento destruído e um carro parado em cima de uma casa sem telhado, no meio de um monte de lama. Foi aí que pensei: 'então é isso que é uma barragem. Se é isso que chegou na minha casa, realmente, morreram todos. Estou sozinha no mundo e não sei o que vou fazer'", lembra a jovem.

Mauro Silva, Luzia Queiroz e Mirella Lino são vítimas do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Eles tiveram suas casas destruídas e até hoje, quatro anos após o crime, não foram reassentados. Com a ameaça imposta pela pandemia de covid-19, fazem isolamento em lugares que não reconhecem como lar. Eles contaram ao TAB como estão se sentindo durante o isolamento social imposto pelo novo coronavírus.

Mauro Silva na colheita de jabuticaba em Bento Rodrigues, antes do rompimento da barragem, em novembro de 2014 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mauro Silva na colheita de jabuticaba em Bento Rodrigues, antes do rompimento da barragem, em novembro de 2014
Imagem: Arquivo pessoal

Isolados antes mesmo da covid-19

O rejeito de minério que vazou da Barragem de Fundão matou 19 pessoas, chegou até a foz do rio Doce, no distrito de Regência, em Linhares (ES), e atingiu 41 municípios, segundo relatório da Ramboll encomendado pelo Ministério Público Federal. Em Mariana, oito distritos e subdistritos foram atingidos. O empreendimento localizado em Bento Rodrigues fazia parte da Mina do Germano, dentro do Complexo da Alegria. Pertencia à Samarco Mineração S.A., um empreendimento conjunto entre a Vale S.A. e a BHP Billiton. Segundo dados da Fundação Renova de 2019, 512 famílias foram desalojadas (468 nos distritos de Mariana, 43 no município de Barra Longa e uma em Santa Cruz do Escalvado).

As obras de reconstrução passaram por diversos atrasos e o prazo para o reassentamento já teve três datas de entrega. O último, imposto pela juíza Marcela Oliveira Decat Moura, responsável pelo caso em Mariana, fixa 27 de fevereiro de 2021 como data de entrega das moradias. Enquanto isso, os atingidos moram em casas alugadas pela Fundação Renova, entidade que trabalha na reparação dos danos causados pelo rompimento — e acusada por atingidos de representar os interesses das mineradoras. O inquérito aberto pelo Ministério Público de Minas Gerais apura as denúncias.

Expulsos de seus lares, os atingidos lidam agora com as advertências para se manterem na casa provisória, devido à pandemia do novo coronavírus. Uma das principais recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) para o combate à pandemia é o isolamento social. Silva aponta, entretanto, que o isolamento para alguns atingidos ocorre desde 2015: ainda não havia o vírus, mas o preconceito que os atingidos sofrem provocava o recolhimento. "Estamos trancados dentro de um mundo diferente. Agora, estamos isolados da doença, mas antes estávamos isolados das pessoas", aponta Luzia Queiroz.

Segundo Lino, muitos acreditam que os atingidos estão em posição de privilégio em relação aos demais moradores da cidade, já que serão indenizados após perderem tudo. "Sempre tem um ou outro que fica falando que a gente está muito bem, todo mundo muito rico, essa coisa toda. Isso me abala muito, pois sei que não é assim. Então prefiro nem sair muito, saía só para as reuniões, para ir para a faculdade quando conseguia ir", desabafa a jovem de 22 anos.

Como desligar a cabeça?

Embora a reclusão já fosse algo comum entre os atingidos, a agenda de reuniões para a discussão das demandas das reparações sempre foi muito lotada e exigiu bastante dessas pessoas. Suas vidas são devotadas à luta pelo reconhecimento e cumprimento de seus direitos.

Queiroz encontrou nos trabalhos manuais uma forma de aliviar o estresse do confinamento, mas nem sempre é fácil. "Às vezes dá um paranoia e meus filhos chamam minha atenção", conta. Ela aproveita a tecnologia para esclarecer dúvidas e orientar o grupo de WhatsApp dos atingidos de Paracatu de Baixo sobre o novo coronavírus.

Já Lino tem dificuldades de se distrair nesse momento. Depois do rompimento da barragem, ela desenvolveu um quadro crônico de depressão. No isolamento imposto pela pandemia, seu estado piorou. A parte da família que vive na Itália e o noticiário são as suas maiores fontes de preocupação. "O pior está sendo ler as notícias. Principalmente pela posição desse presidente do país, que é muito irresponsável. As declarações dele de que não importa se morrerem cinco mil, sete mil pessoas, tem que salvar a economia? Vindo do contexto que eu vim, eu só não morri porque não era para ser a hora, mas sei muito bem o que é ser esmagada pelo lucro, por causa da economia. Estou nessa situação há quatro anos."

Mirella Lino, a mãe e o irmão - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mirella Lino, a mãe e o irmão
Imagem: Arquivo pessoal

Identidade de atingido

Para Lilian Castagnet, especialista em saúde mental em emergências, desastres e catástrofes pela Universidade Católica do Chile, um fator importante para essa população é o reconhecimento da "identidade de atingido", por contribuir na retomada ao controle da vida que foi atravessada por um fator externo e imprevisível. "É muito duro [o reconhecimento da identidade], mas é, ao mesmo tempo, muito necessário para poder realmente transformar toda essa dor em luta. Os atingidos são, ultimamente, sinônimo de luta, do poder de direcionar a vida em função de lutar por direitos, por aquela reparação integral."

Luzia Queiroz é um exemplo de como o ser atingido se torna uma identidade. Seu marido, Caetano, nascido e criado em Paracatu de Baixo, tinha uma casa no distrito e, ela, uma na sede. "Para nós, o espaço entre Mariana e Paracatu era como se fosse uma rua. Era possível estar nos dois lugares ao mesmo tempo", relembra. O rompimento a abalou de tal forma que já não conseguia mais sustentar o sorriso exigido a alguém que costura vestidos de noiva. Seu ponto máximo de exaustão foi quando uma cliente, ao ver uma reportagem sobre o estouro da barragem na televisão do estabelecimento, reclamou que só se falava sobre aquilo. A vendedora de sonhos, como gostava de ser chamada, pediu demissão do emprego e passou a dedicar sua vida às inúmeras reuniões em busca do reconhecimento de seus direitos. Para isso, ela enfrentou até mesmo moradores de Paracatu de Baixo -- que diziam que ela era oportunista.

Na casa do marido estavam lembranças do casamento dos dois. O rejeito de minério entrou pela porta dos fundos, levando vários objetos que representavam essas memórias. Além de ter a casa do marido invadida pela lama de minério, a costureira teve a própria vida embargada por estar em um local de risco. Queiroz conta que o marido já vinha construindo uma casa: "era aqui em Mariana, para mim e para os meus filhos. Ela estava inacabada e seria a casa dos meus sonhos, mas ela foi terminada às pressas, sem que eu escolhesse com calma os detalhes. Hoje, não me reconheço dentro dela".

Luzia Queiroz e o Tobi, cachorro comunitário de Paracatu de Baixo. Hoje, o cachorro fica em uma fazendo junto de outros animais retirados de Paracatu. - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Luzia Queiroz e o Tobi, cachorro comunitário de Paracatu de Baixo. Hoje, o cachorro fica em uma fazendo junto de outros animais retirados de Paracatu.
Imagem: Arquivo pessoal

Casa que não é lar

Habitar uma casa que não reconhecemos dificulta a apropriação e a criação de raízes. Castagnet destaca que o clima provisório, sempre permeado de incertezas e dependente de terceiros, pode aprofundar a sensação de vulnerabilidade.

Queiroz, Lino e Silva são enfáticos ao comentar que não se sentem em casa, apesar de viverem em uma. Silva não sente só falta da jabuticabeira sabará que era herança dos seus antepassados; o convívio com os amigos na terra que nasceu e viu morrer é incontornável. Queiroz carrega a recordação das carreatas de Nossa Senhora Aparecida. Lino sente falta da natureza, de estudar debaixo da sua árvore favorita. Descreve sua casa atual como uma caixa, cercada de paredes. A cidade de Mariana tem muito movimento e sufoca. Para os três, seus lares eram sinônimo aconchego, segurança e paz. A lama levou tudo.
Por isso, Silva acredita que o período de isolamento seria mais fácil se estivesse em Bento. A companhia das árvores, dos animais, o contato direto com a natureza ajudaria a enfrentar esse momento tenso. Lino acrescenta que, em Ponte do Gama, boa parte daquilo que sua família comia era produzido por eles -- o que diminuiria as chances de contágio em supermercados. Já Queiroz acredita que, independente do lugar, as chances de contrair a doença seriam indiferentes.

A vida não continua

O isolamento também significa suspensão das atividades dos atingidos. A psicóloga alerta que o período de reclusão soa como mais um entrave para o reassentamento e a reparação dos danos. "Na medida que você discute ações que vão desmobilizando o suporte para os atingidos do rompimento da barragem em função de deslocar recursos, ou, pelo menos, numa desculpa de deslocar recursos para a pandemia, isso é um novo golpe, um novo baque para quem ainda está tentando se reerguer", explica.

Por mais necessária que seja, a luta também é cansativa: Lino corre o risco de ser jubilada da universidade por estar em vias de estourar o tempo limite de conclusão do curso. A jovem negra vê mais um entrave para a realização do sonho: "É muito difícil, nessa condição, a gente traçar projetos, planos de vida e seguir com eles. Tanto que eu não estou conseguindo seguir com a faculdade, que é um movimento grande para a minha família e para mim também. Eu seria, ou vou ser, não sei, a primeira pessoa com curso superior. E eu estou vendo essa oportunidade fugir das minhas mãos por causa disso", relata Lino.

Quase toda a família reunida, no período que ficaram na casa da avó da Mirella Lino, até o Natal de 2015, quando MP pediu para que eles fossem colocados em casas alugadas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Quase toda a família reunida, no período que ficaram na casa da avó da Mirella Lino, até o Natal de 2015, quando MP pediu para que eles fossem colocados em casas alugadas
Imagem: Arquivo pessoal

Os atrasos e as preocupações só aumentam. Como frisado por Castagnet, o rompimento da barragem para os atingidos pode trazer a ideia de uma vida em suspensão. A cada demora ou intempérie, a frustração de não conseguir tomar as rédeas da própria vida se acentua.

Para Silva, a pandemia: "é um mau, uma doença que causa um mau, mas se você tiver um cuidado necessário, você consegue se livrar dele. Infelizmente, com relação às empresas, a gente não consegue se livrar. Sempre elas estão no nosso caminho."

Queiroz teme que os prazos sejam postergados novamente e, mais uma vez, sente que viver "apesar do luto" beira o incontornável. "Vão atrasar [as obras] com certeza, mas os sem vergonhas irão aproveitar disso [paralisação devido a pandemia] para justificar o atraso e boicotar várias ações com a colaboração que estão dando aos governos. Com certeza, isso vai respingar na gente, sim", opina. Para os atingidos, se não fossem os constantes atrasos burocráticos no reassentamento, eles poderiam passar por esse momento de estresse emocional em um local que consideram como lar.

TAB procurou a Samarco e a Vale, questionando o fato de os atingidos estarem passando por um momento de desconforto emocional relacionado ao rompimento da barragem, que estava a cargo das mineradoras. A Vale não se manifestou e a Samarco, em nota, respondeu que o processo de reassentamento coletivo vem sendo conduzido pela Fundação Renova, com a participação da própria comunidade e do poder público em todas as etapas e na tomada de decisões. "Por se tratar de uma construção de solução coletiva, com gestão democrática que incentiva a participação dos atingidos e o sentimento de pertencimento em relação ao novo imóvel, o processo demanda mais etapas e tempo para sua conclusão. É importante lembrar que, imediatamente após o rompimento da barragem de Fundão, todas as famílias atingidas foram alocadas em hotéis, no dia seguinte ao ocorrido, sendo transferidas para casas alugadas pela empresa. A Samarco reafirma o seu compromisso com as comunidades e com as áreas impactadas pelo rompimento da barragem de Fundão e salienta que, até fevereiro de 2020, foram destinados cerca de R$ 8,17 bilhões para as medidas de reparação e compensação que estão sendo conduzidas pela Fundação Renova."

A Fundação Renova informou à reportagem que as obras do reassentamento estão paralisadas desde 23 de março. A previsão é retornar em 12 de abril, respeitando os alertas das organizações de saúde. Sobre a possibilidade de atraso na entrega dos reassentamentos, a entidade afirma que informou a 2ª Vara Cível da Comarca de Mariana da interrupção das construções. Quando questionada a respeito de campanha sobre a covid-19 junto aos atingidos, declarou que o assunto deverá passar pela governança da instituição "para não incorrer em desvio de finalidade". "A Fundação Renova acompanha a evolução do coronavírus em todo o território atingido, adotando ações de prevenção e segurança de acordo com os protocolos regionais, nacionais e internacionais, e orientações da comunidade científica, sempre que for necessário. Qualquer iniciativa que não esteja vinculada ao Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC) e às ações de reparação e compensação pelos danos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), teria que ser, necessariamente, aprovada pela governança da Fundação Renova, que inclui o Comitê Interfederativo (CIF)."