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Após perder o marido para a covid-19, brasileira se isola em Sevilha

A brasileira Ligia (de vestido branco) e Rafael (de terno cinza) ao lado de amigos após se casarem. Rafael morreu por causa da covid-19 em 22 de março - Arquivo pessoal
A brasileira Ligia (de vestido branco) e Rafael (de terno cinza) ao lado de amigos após se casarem. Rafael morreu por causa da covid-19 em 22 de março Imagem: Arquivo pessoal

Marie Declercq

Do TAB

04/04/2020 04h00

A Espanha já contabiliza mais de 10 mil mortos pela covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Junto com a Itália, o país ibérico está no epicentro da pandemia com milhares de infectados no país e o sistema de saúde no limite. Uma das vítimas foi Rafael Estévez Guerrero, um militante anarquista natural do povoado de La Rinconada, em Sevilha, que morreu aos 37 anos no hospital.

Rafael deixou sua companheira de três anos, a paulistana Ligia Maria Travasso da Costa. Após a morte de Rafael, Ligia também tem um exame positivo para a covid-19 e encontra-se isolada em casa desde então. Sem poder visitar o marido no hospital, nem dar adeus, a brasileira contou ao TAB o caso de Rafael e sua jornada.

Éramos companheiros de vida, para o melhor e para o pior

A última vez que falei com o Rafael, meu companheiro, foi por mensagem. Internado em um hospital público em Sevilha, ele mandou apenas um aviso de que seu teste tinha dado positivo para a covid-19 e que eu precisava com urgência entrar em contato com o sistema de saúde espanhol para também me testar. Dias depois, ele se foi. Tinha 37 anos, possivelmente uma das vítimas mais jovens do vírus no país. Difícil também de saber, já que o governo espanhol parou de divulgar a idade de quem foi vitimado pelo novo coronavírus.

Desde o final de fevereiro, Rafael começou a demonstrar alguns sinais de cansaço e febre. Ele estava trabalhando em uma fábrica de frango na cidade, saía tarde do seu turno e atribuímos esses sintomas como decorrência do frio e de sua alergia — ele era alérgico a flores de laranjeira e a uma árvore chamada plátano-de-sombra. Em dezembro, ele lançou um livro sobre a militância anarquista libertária no povoado onde nasceu.

No dia de 10 de março, fomos à Madri para eu poder resolver burocracias no consulado brasileiro. Nasci em São Paulo e me mudei para a Espanha há 5 anos para fazer mestrado em Antropologia. De ônibus, fomos até a capital e Rafael aproveitou a viagem para deixar cópias de seu livro em uma livraria conhecida da cidade que vende livros anarquistas chamada La Malatesta. Nosso plano era aproveitar a viagem e ficar até o dia 13 de março, mas Rafael estava tão ruim que decidimos voltar no dia seguinte para Sevilha, onde moramos com nossos três gatos. A política de quarentena estava começando a recrudescer no país.

Por conta da pandemia, o governo espanhol centralizou todas as medidas de saúde e pede para que seus cidadãos não saiam de casa caso estejam manifestando algum sintoma. Em 12 de março, vendo o estado do meu companheiro, liguei para o número indicado por eles para que médicos viessem em casa nos atender e dar algum tipo de direcionamento. Esperei de três a quatro horas até que dois médicos, um homem e uma mulher, vieram em casa para examinar meu companheiro. "Está tudo bem, o pulmão dele está maravilhoso", me disse um dos médicos. Por causa do histórico de alergia, os médicos administraram uma injeção de corticoide. Não sei se deveriam, tendo em vista que ele tinha todos os sintomas do novo coronavírus, mas me asseguraram que ele estava bem e disseram para dar paracetamol a cada seis horas para a febre baixar.

Não adiantou. Rafael sentia falta de ar, um cansado extremo e tossia tanto que vomitava o pouco que comia. O pai dele veio até a nossa casa para ajudar e a única recomendação era sempre ligar para os números do sistema de saúde espanhol para chamar uma ambulância ou pedir para que algum médico viesse nos atender. A médica que me atendeu no telefone duvidou de mim, duvidou dos sintomas que descrevi para ela do Rafael. A única saída foi nos arriscar e levá-lo imediatamente para o hospital.

Foi só olhar ao meu redor na espera do hospital que foi possível ver que essa doença não afeta um grupo selecionado de pessoas. Vi jovens de 20 a 30 anos com falta de ar, esperando atendimento.

Vi o Rafael pela última vez quando ele foi para a triagem. Depois disso, não pude mais visitá-lo. Ele ficou dois dias em um quarto com uma máscara externa para respirar e em 15 de março foi para a UTI. Rafael tinha uma mãe doente de câncer e muito provavelmente não quis nos preocupar, por isso avisou alguns amigos que estava indo para a UTI. Para mim, só avisou do teste positivo da covid-19 e me pediu para testar. Não soube por meio de nenhum médico. Depois disso, ele entrou em coma induzido e foi entubado.

Anarquista pinta um muro em Sevilha em homenagem a Rafael Estévez Guerrero, morto pela covid-19 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Anarquista pinta um muro em Sevilha em homenagem a Rafael Estévez Guerrero, morto pela covid-19
Imagem: Arquivo pessoal

Receber informações sobre o status de saúde do meu companheiro foi uma angústia. Estava isolada em casa esperando notícias. No máximo, eles me falavam se ele estava bom ou ruim. Tudo muito protocolar. Pouco antes de Rafael morrer, os médicos me avisaram que estavam aplicando uma técnica médica de virá-lo em várias posições para ver se o pulmão criava resistência junto com o oxigênio. Ele se foi no dia 22 de março.

A morte sob o novo coronavírus é solitária. Não pude ir até o hospital para reconhecer o corpo do meu companheiro, tampouco os pais dele. Tivemos que pedir para uma tia dele, que não entrou em contato antes com ele para reconhecer seu corpo. Ela me disse que quando chegou lá ele ainda estava entubado, com os fios e rodeado de aparelhos hospitalares. Rapidamente, sem mais nem menos, ele se foi. Sem velório, sem adeus, sem nada. Um padre no hospital insistiu em fazer uma pequena solenidade em respeito à família, e achei isso irônico, porque o Rafael não gostava de igreja e da instituição.

Dias depois, comecei a sentir os mesmos sintomas que Rafael. A febre, o cansaço, a falta de ar. Tive que ir para o mesmo hospital onde perdi meu marido e insistir ao médico, de forma bem agressiva, para conseguir ser testada. Ouvi do próprio que não havia testes disponíveis. Apesar do sistema de saúde ser muito bom aqui na Espanha, vi que os profissionais de saúde estão trabalhando no limite. Não há máscara, luvas e outros materiais. Contei a minha história, contei sobre a morte de meu companheiro e o médico cedeu para fazer o teste. No dia 30 de março, deu positivo para a covid-19 e sigo isolada desde então.

Completei 37 anos no dia 29 de março, mas essa data não fez nenhum sentido para mim. Ainda bem que tenho apoio remoto de amigos e tenho acesso a serviços daqui que levam compras e refeições para quem não pode sair de casa. Fico muito triste de ver pessoas que conheço, pessoas da minha própria família ainda minimizando os riscos desse vírus, mesmo após a morte do meu companheiro. Essa doença mata e não mata só velho, mata jovem. Levou o Rafael, afinal.

Eu o conheci na luta, após ele me chamar para uma manifestação na cidade. Começamos amigos e terminamos parceiros. Ele era um ativista anarquista e estava presente em vários coletivos antifascistas. Também tinha um projeto muito importante de imprimir livros e vendê-los a preço de custo, sem lucro algum, para que as pessoas pudessem conhecer mais sobre o anarquismo libertário. Nós casamos porque, infelizmente, ainda é necessário oficializar um relacionamento perante o Estado para facilitar a vida burocrática. Mas casamos do nosso jeito, com nossos amigos ao redor e nos divertindo.

Eu e o Rafael éramos companheiros de vida, para o melhor e para o pior.