A ciência pede passagem

Análise qualificada ganha espaço no debate público, em meio ao caos das notícias falsas sobre covid-19

Arte/UOL

O nome da vez é Átila Iamarino. O biólogo especializado em virologia protagonizou um momento único na história recente do país, ao ocupar a cadeira no centro do "Roda Viva" da TV Cultura, em 30 de março. A audiência é a maior desde a entrevista com o presidente Jair Bolsonaro, em julho de 2018, bateu o recorde do ano (a edição com o ministro da Justiça, Sergio Moro), e só no YouTube já foram mais de 3 milhões de visualizações, num momento em que não se fala de outra coisa além do novo coronavírus.

A mera presença de um cientista numa discussão televisionada sintetiza um triunfo repentino da ciência sobre a ignorância e a onda de "opinionismo" que domina as redes sociais e a mídia. No momento em que o presidente Jair Bolsonaro chamava a covid-19 de "gripezinha" e seguia negando a gravidade da situação, Átila, que é doutor em microbiologia pela USP (Universidade de São Paulo), fez pós-doutorados na USP e em Yale e é divulgador científico na internet, publicava uma assustadora sequência de tuítes e um vídeo no YouTube, abrindo o jogo sobre a catástrofe que nos aguardaria em duas semanas, caso nenhuma autoridade decretasse o distanciamento social. Deu no que deu.

As previsões de Átila em meados de março balançaram a internet e parte da opinião pública. Governadores — inicialmente de São Paulo e do Rio de Janeiro — agiram poucos dias depois, endurecendo as medidas de isolamento da população. Agora, milhares de pessoas fazem coro ao que Átila e cientistas do mundo todo anteciparam, a despeito do discurso de negacionistas e alguns governantes. A ciência finalmente ganhava mais um megafone.

OMS, INFLUENCIADORA DIGITAL

"Oi, meninas! Hoje vou ensinar vocês a lavar as mãos." Se, antes, os tutoriais das blogueiras no Instagram mostravam como delinear os olhos perfeitamente ou a ordem correta para aplicar cada produto de skincare, agora, um dos principais cuidados pessoais compartilhados na internet é, pura e simplesmente, higiene.

Até mesmo a OMS (Organização Mundial da Saúde) assumiu papel de influenciadora digital e criou um desafio para estimular a população a lavar as mãos corretamente — além de viralizar um tutorial com o passo a passo. Na verdade, instituições como a OMS nunca poderiam ter sido ignoradas.

Só que perfis oficiais até aprendem a viralizar, mas mantêm certo ar burocrático. O nível de engajamento — taxa de interação dos usuários nos posts — ainda é baixo, com poucas curtidas, comentários e compartilhamentos. A população está de olho, mas não interage. E um dos motivos dessa baixa interação é que esses canais não têm um "rosto". Ganha espaço, portanto, quem consegue fazer um pouco dos dois: comunicar bem e trazer informações confiáveis. Nesse contexto, os influenciadores de ciência passaram a brilhar. Átila Iamarino, por exemplo, tem dois canais no YouTube: um que leva seu nome e o Nerdologia — que já acumula mais de 2,7 milhões de inscritos.

"Com um influenciador, a pessoa cria uma confiança", observa o biólogo, autor e youtuber Paulo Pedrosa — mais conhecido como Pirula. "Você pode ver que tem alguns canais de ciência em que os vídeos são só animações. Mas é preciso criar uma identificação, uma sensação de 'nessa pessoa eu confio'", opina ele, que já acumula mais de 800 mil inscritos no YouTube e faz questão de colocar referências bibliográficas na descrição dos vídeos que publica.

Andréa Jotta, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da PUC-SP, confirma a impressão. "A gente está em um momento em que um influenciador pode mobilizar mais pessoas que o próprio presidente da República", afirma. "E quanto mais humanizado o comportamento desses influenciadores, mais a gente confia neles." O gráfico abaixo mostra onde os jovens mais buscam informações sobre ciência.

Na academia, a impressão é a mesma. "Estamos acompanhando com estudos e o que temos visto é que a internet tem crescido bastante nos últimos 15 anos", afirma Luisa Massarani, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC). Ela percebe esse interesse inclusive por parte dos alunos: projetos que envolvem redes sociais e YouTube são frequentes, diz Massarani.

CIÊNCIA NO PALCO

Enquanto alguns têm conhecimento e autoridade sobre o que falam, tem muita besteira sendo espalhada por quem não tem nenhuma formação na área. "Infelizmente [a confiança] tem um mecanismo parecido com o que causa a disseminação de mentiras no WhatsApp", diz Pirula. O youtuber se refere a um fenômeno já bastante estudado por quem tenta entender a viralização de fake news pelo aplicativo de mensagens: se a informação vem de alguém em que a gente confia, tendemos a acreditar nela.

Nada mais correto que gente especializada tomando frente na divulgação de informações científicas, principalmente em um momento como esse. A palavra da vez é curadoria — e ela precisa ser cuidadosa. Mariana Varella, editora-chefe do portal de notícias que leva o nome do pai, o oncologista e escritor Drauzio Varella, explica que produzir informação correta e clara é um trabalho de equipe. "Desde janeiro, estamos acompanhando a questão do novo coronavírus, entrando em contato com profissionais da saúde, jornalistas, médicos, observando países que já estavam vivendo a epidemia", relata.

Varella conta que a redação do portal tem cerca de 30 funcionários, apesar de muita gente imaginar que Drauzio leva o trabalho nas costas e sozinho, pois é ele a tal "cara confiável" que o público conhece. Além, é claro, do trabalho do médico mais pop do Brasil, há jornalistas, pesquisadores e outros profissionais que leem estudos, entrevistam especialistas e produzem conteúdo, agora quase totalmente voltado à pandemia, para publicar no site e nas redes.

Drauzio, acostumado às câmeras, transitou com naturalidade da TV para a internet. Outros começaram direto no online. Quando Pirula decidiu publicar vídeos de ciência no YouTube, "era tudo mato", brinca. O canal é seu principal trabalho desde 2011, além da publicação de livros na área da ciência, como "Darwin sem frescura", que assina ao lado do jornalista Reinaldo José Lopes. O biólogo investiu nos vídeos para combater a falta de clareza que encontrava nos debates sobre ciência no Orkut, em princípios dos anos 2000, mas fazer divulgação científica para além da publicação em revistas especializadas ou entrevistas na mídia é um comportamento recente — e ainda raro — entre os pesquisadores brasileiros.

CHECAGEM EM TEMPO REAL

Cinco dias depois do vídeo do YouTube que viralizou, Átila postou no Twitter que precisava pisar no freio. "Pessoal, hoje não farei live. A situação está mudando muito e preciso pensar no formato e em como posso melhor informar as pessoas. As últimas lives foram muito pesadas para mim e preciso tirar um tempo. Ainda mais se quero continuar conversando com vocês", escreveu. TAB tentou entrevistá-lo, mas o biólogo-influenciador anda bastante requisitado e recusou os pedidos de entrevista. A gente entende.

Seguir a vida durante uma pandemia que nos tranca em casa — muitas vezes sem contato físico ou apoio emocional, lutando contra a ansiedade da incerteza —, já é difícil para qualquer um. Para quem lida com o tema do novo coronavírus no trabalho, as consequências de saúde mental podem ser ainda mais pesadas. "A gente está exausta", resume a jornalista Bia Guimarães, apresentadora e produtora do 37 Graus, ao lado da doutora em biologia Sarah Azoubel.

O trabalho multiplicou quando elas perceberam a necessidade de atualizar os episódios da terceira temporada do podcast, que leva o título "Epidemia". "A ideia foi usar a trajetória da zika no Brasil para falar dos bastidores da ciência durante uma epidemia: o que acontece antes de um vírus aparecer em um local, os primeiros indícios e o que acontece depois que ele sai das manchetes e todo mundo esquece — menos as pessoas que passaram por aquilo", conta Guimarães.

Além da carga de trabalho aumentada, os influenciadores de ciência também precisam lidar com a reação dos haters. "Direcionam a negação e a raiva pra mim, quando foi o mundo que mudou. Como eu levo a mensagem, fico com a impressão [essa é a minha impressão]", desabafou Átila no Twitter. Na atual conjuntura, os divulgadores científicos ainda ficam expostos a todo tipo de comentário maldoso e anticientífico — e veem os efeitos da propagação de teorias conspiratórias com frequência. "Como eu sempre dei aula de Evolução, negacionismo na ciência é comigo mesmo. Estou calibrado para lidar com isso há 16 anos", conta Pirula. "O nível de argumentação não mudou muito. O que mudou foi a facilidade de chegar a mais pessoas. É um self-service de informação na internet. Você pega aquilo que achar conveniente."

Para segurar as pontas nesse momento, Andréa Jotta, da PUC, recomenda que os influenciadores lembrem da importância do seu papel. "Recolher esse material, digeri-lo e devolver esse conteúdo, de certa forma, é o que vai fazer com que seu comportamento afete positivamente a vida das pessoas", afirma.

Outra dica é voltar a energia e os cuidados para quem está por perto, como família e amigos, ou para atividades prazerosas, quando possível. Isso é o que têm feito as cientistas da computação Camila Laranjeira e Virgínia Mota — a Mila e a Vivi do canal Peixe Babel. Responsáveis pela geração de alguns dos dados e gráficos usados por Átila Iamarino nos vídeos, elas viram o número de seguidores nas redes sociais mais que dobrar desde que decidiram dedicar boa parte do tempo a tabelar os números do novo coronavírus. E eles são assustadores. "Não podemos falar que está fácil. Querendo ou não, a gente tem que ficar o dia inteiro 'dando F5' [atualizando] nas páginas oficiais para pegar informações", conta Vivi. "A gente tenta também trocar o contexto quando dá — ver Netflix, ler um livro, fazer outras tarefas do trabalho — para não ficarmos tão imersas nas notícias ruins."

RELATOS SELVAGENS

"Vocês acompanharam por aqui meus dias em quarentena, isolada em casa, por estar com suspeita de ter sido infectada com o [novo] coronavírus durante um evento no fim de semana passado. Fiz o teste na sexta-feira e hoje recebi a resposta. Positivo."

O relato é da atriz Fernanda Paes Leme, uma das celebridades que revelou publicamente ter sido contaminada. Gabriela Pugliesi, Tom Hanks, Preta Gil, Dinho Ouro Preto e Luisa Mell são alguns dos outros famosos que acumulam milhões de seguidores e foram infectados com covid-19.

"Uma das ironias deste momento é que, apesar de a gente se sentir menos como as celebridades do que nunca, elas parecem se sentir mais como nós — ou, pelo menos, como elas acham que somos", escreve a jornalista Amanda Hess no jornal The New York Times. Ela reflete sobre como um vídeo de famosos cantando "Imagine" de dentro de suas mansões luxuosas, e com todas as facilidades e diversões que o dinheiro permite, não é exatamente a melhor maneira de combater o novo coronavírus.

Enquanto o comportamento de alguns gera críticas — você deve ter ouvido falar que Pugliesi fez um post sobre como o vírus "restabeleceu a igualdade social" —, o isolamento e as experiências dos famosos podem servir de referência para nós, pessoas comuns.

"Anthony Hopkins tocando piano para seu gato, January Jones usando fermento e vinagre para fazer bolhas na banheira e Britney Spears revelando seu lado socialista são conteúdos que, além de ajudar a passar o tempo de forma divertida, mostram o lado mais humano dessas pessoas inatingíveis", argumenta a jornalista.

Entre os que pegaram covid-19, a forma de contribuir com com o debate público pode ser a de falar abertamente sobre a doença. "Você vai assistir a esses vídeos para ouvir a experiência dessas pessoas, entender os sintomas. É mais fácil você recorrer a um paciente para entender o que é a tal da tosse seca", exemplifica a psicóloga Andréa Jotta.

VOU CONFIAR EM QUEM?

"As pessoas estão desesperadas por informação, mas não sabem onde encontrá-la", opina Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência — organização dedicada à defesa do uso de evidência científica nas políticas públicas. Além da mídia tradicional falando do novo coronavírus, tem influenciador youtuber, tuiteiro e especialista para todo os gostos compartilhando conteúdos sobre o assunto em velocidade e volume frenéticos. Mas como saber em qual informação confiar?

Leandro Tessler, divulgador científico e professor do Departamento de Física Aplicada na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), ressalta que esse questionamento é ainda mais relevante quando até mesmo governantes passam informações ou determinam ações contraindicadas pela ciência.

Para tentar compreender a circulação de fake news e desinformação sobre a covid-19, Tessler criou, ao lado de Átila Iamarino, do doutorando Rafael Geurgas e de outros colegas, uma "hotline". Quem quiser contribuir, pode encaminhar mensagens e informações recebidas sobre o tema para o número (19) 99327-8829. "Estamos mapeando a desinformação com o objetivo de mitigar o efeito dela. O antídoto não é outro: é informação confiável", afirma Tessler. O grupo já recebeu mais de 20 mil mensagens e pretende mapear as bolhas de onde vêm o conteúdo falso — e qual caminho ele percorre.

Nessa hora, a melhor tática para se blindar da desinformação é evitar mensagens encaminhadas que não remetam a um link confiável, como a um site de um jornal reconhecido ou de uma universidade. Aquele áudio que o seu amigo te mandou, de um suposto médico, pode ser falso. Nas redes sociais (e principalmente no WhatsApp, onde as mensagens são criptografadas e, portanto, não há checagem de conteúdo), qualquer pessoa pode escrever ou gravar o que quiser. A desinformação está cada vez mais profissionalizada, incluindo os temerosos deepfakes.

Para tentar diminuir a circulação de conteúdo falso, o YouTube informou ao TAB que mudou as regras de monetização dos vídeos sobre o novo coronavírus. Agora só monetizam canais verificados. Há uma "prateleira de notícias específicas sobre covid-19" para destacar atualizações provenientes de canais jornalísticos na página inicial do site. Além disso, vídeos relacionados ao assunto trazem um painel com link de informações fornecidas pela Organização Mundial da Saúde.

Outro exemplo de iniciativa contra a difusão de notícias falsas sobre o novo coronavírus partiu do Twitter, que vem removendo conteúdos que atentam contra a saúde pública — até mesmo de contas oficiais, como foi o caso de dois posts do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ainda assim, nenhuma das plataformas é capaz de remover todo o conteúdo falso no momento em que ele é postado. Nesse caso, é importante não baixar a guarda.

Se, por um lado, é responsabilidade individual conferir a fonte da informação que estamos consumindo, por outro, é essencial que produtores de conteúdo sejam cautelosos e não se empolguem com o número de cliques, escorregando na informação. Mariana Varella faz um alerta para os próprios profissionais da saúde: "Você pode passar um áudio para uma pessoa da família, que vai encaminhar, e aquilo pode sair de controle", avalia.

Pasternak vai na mesma linha: "Não é o momento de postar como pessoa física", alerta aos colegas cientistas. "Nesse momento, as pessoas vão olhar para nós como 'os caras que sabem do que estão falando'. Não podemos nos dar ao luxo de fazer hype por empolgação", adverte.

FÔLEGO PARA A CIÊNCIA

Sem informação de fonte confiável, embasada, não temos nenhuma chance contra o novo coronavírus. "Quando você faz uma afirmação dizendo que a Terra é plana, isso não muda a vida de ninguém. Agora, você dizer que vacina para cachorro cura covid-19 em humanos, pode custar a vida de alguém", compara Tessler, da Unicamp. A esperança de muitos especialistas é que a pandemia ajude ao menos a recuperar o prestígio de uma área que vem sendo sistematicamente atacada.

Primeiro, as más notícias: não começamos muito bem nesse quesito. Em fevereiro de 2020, um dos primeiros médicos a tentar dar o alerta sobre o possível surgimento de uma epidemia de síndrome respiratória aguda morreu em decorrência da covid-19. O oftalmologista Li Wenliang, de 34 anos, foi forçado a assinar um termo, junto a outros colegas, em que prometia não "espalhar boatos" sobre a situação que presenciou no Hospital Central de Wuhan, na China. Em dezembro de 2019, ele havia avisado alguns companheiros de trabalho sobre a situação preocupante que observava no trabalho.

A descrença em especialistas não é exclusividade da China — nem mesmo é marca apenas de regimes autoritários. "Estamos num clima político desfavorável no Brasil", diz Tessler, citando o comportamento do presidente Jair Bolsonaro, que insiste em diminuir a gravidade da pandemia. "Mas eu continuo acreditando na ciência. Nas bolhas pró-governo federal, tem muita gente tentando desqualificar gente como o Átila, dizendo que ele está causando pânico. Mas são informações muito sérias. E aí, a gente vai acreditar na ciência ou no sentimento das pessoas?", questiona o professor.

"Estamos tentando fazer uma cobertura do novo coronavírus da maneira mais racional e segura possível. Sem fazer alarde, mas passando calma e segurança", diz Pasternak, do IQC. "Nós, cientistas, precisamos mostrar que sabemos o que estamos fazendo, para que as pessoas se mantenham calmas e lembrem: tem gente muito séria lidando com essa questão."

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