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Cabeleireiro e diarista na quarentena: busca por normalidade ou classismo?

Kris Atomic/Unsplash
Imagem: Kris Atomic/Unsplash

Emma Alves

Colaboração para o TAB, de Lisboa

03/05/2020 04h00

O cientista de dados Julio*, de São Paulo, dispensou a diarista no período de quarentena, decretado pelo governador João Doria Jr. no fim de março. Mas o rapaz, que mora sozinho, tem encontrado dificuldade em manter a casa limpa. "Tenho trabalhado muito de home office e não consigo manter a limpeza", diz à reportagem de TAB. Ele cogita a possibilidade de furar a recomendação de isolamento para chamá-la. O que o impede é a culpa. "Não tenho nenhuma dificuldade de locomoção, sou apto a limpar a minha própria casa e não gostaria de colocá-la em risco." Julio sabe que pagar alguém para fazer o serviço doméstico, no seu caso, é um privilégio, não uma necessidade.

A lista de serviços essenciais divulgada pelo governo do Estado de São Paulo inclui farmácias, hospitais, postos de gasolina e supermercados. Profissionais de limpeza também são citados, mas não há uma especificação sobre se é para casos em que as pessoas têm locomoção reduzida — como idosos e pessoas com deficiência — e de limpeza pública ou se engloba as domésticas. Eis a brecha conceitual para que famílias sigam chamando alguém para lavar banheiro, passar roupa e faxinar.

Outro setor que, estranhamente, tem mantido certo fôlego após um mês de isolamento é o da beleza. No início da quarentena, salões de cabeleireiro, manicures e pedicures foram obrigados a parar. Uma semana depois, os estabelecimentos tiveram autorização para oferecer os serviços em domicílio como o Singu, uma espécie de Uber da beleza. Depois disso, até mesmo rede de salões mais tradicionais, como a Jacques Janine, passaram a oferecer "delivery" de cabeleireiro e manicure. É que o povo, cansado de fazer peripécias no cabelo em momentos de tédio, estava pedindo.

"Nossas clientes estavam reclamando que elas ou que suas empregadas tinham estragado a cor do cabelo", diz o cabeleireiro e colorista Murilo Marques, do salão Jacques Janine Casa Conceito. É possível: GetNinjas, aplicativo que conecta autônomos a clientes, percebeu um aumento de mais de 160% na busca por profissionais de beleza entre os dias 14 a 18 de abril.

Pode ser difícil compreender a necessidade de, no meio de uma pandemia, fazer as unhas ou ter um profissional limpando a sua privada. Mas é uma necessidade tão grande assim, a ponto de valer o risco de se contaminar? A explicação tem a ver com a subjetividade humana e a forma com que nossa sociedade separa e hierarquiza pessoas.

Hierarquia de necessidades

O psicólogo norte-americano Abraham Maslow criou, em 1945, a teoria da Pirâmide de Hierarquia das Necessidades. Na base, encontram-se as necessidades fisiológicas: respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase e excreção; no segundo patamar, a segurança, seja por ter um abrigo, meios de sustento ou saúde; no terceiro estão a necessidade de ter uma família, amizades e intimidade emocional; seguida pela autoestima e respeito dos outros. Por fim, no topo da pirâmide, está a realização pessoal.
O ponto de partida do ser humano é a base: conforme o indivíduo se "sofistica", suas necessidades vão se tornando mais complexas e menos ligadas à sobrevivência, subindo patamares na pirâmide.

Quando a quarentena é decretada, na lógica racional e biológica deveríamos nos ater e nos satisfazer com os dois primeiros patamares, já que há um vírus altamente contagioso lá fora e a prioridade é, antes de tudo, tentar sobreviver. Mas, de acordo com o antropólogo Michel Alcoforado, existe o jogo social para bagunçar nossas prioridades. "O essencial e o supérfluo não são determinados apenas pela biologia, mas também pela cultura", diz, em entrevista ao TAB.

Mas por que tantos confundem o supérfluo e o essencial? Imagine que esteja andando pela rua e uma criança te peça um copo d'água. Se você sente empatia, não hesitaria em colocar a mão no bolso para dar a ela o que pediu. Agora, se em vez da água ela te pedisse uma Coca-Cola, haveria estranhamento. Seria compreensível até perguntar à criança por que ela faz questão do refrigerante. Apesar de a maioria das pessoas torcerem o nariz, para a criança o refrigerante é essencial: se os outros garotos tomam, por que ela não teria vontade? O psicanalista Christian Dunker tem uma explicação para isso. "Temos como característica tornar o acessório como obrigatório. A noção de necessidade se vê, então, bastante alterada".

Cultura da beleza e do poder

Nem tudo é preto no branco. Por isso, a antropóloga de consumo Hilaine Yaccoub lembra que é importante não generalizar e apontar o dedo a quem tem contratado cabeleireiros que atendem em domicílio. "Existem pessoas que estão sempre em videoconferência e que precisam aparecer bem arrumadas na câmera. E muita gente que contrata uma diarista ou babá faz isso para conseguir se concentrar no home office", afirma a especialista.

No mesmo período em que aumentou o número de pedidos de profissionais de beleza, o GetNinjas registrou queda de mais de 60% na busca por diaristas. A plataforma prevê, entretanto, que se o isolamento social se estender, pode haver aumento na demanda por serviços de limpeza e desinfecção.

O dilema de Julio sobre chamar ou não uma faxineira faz sentido para muitos brasileiros. "Aqui, a diarista se impõe em muitas famílias de classe média como algo essencial, assim como a babá. Isso se dá por conta da noção hierárquica dos brasileiros, onde a gente determina que cada trabalho serve para um tipo de pessoa", afirma Michel Alcoforado.

O antropólogo enxerga o mesmo traço na área da beleza. "É óbvio que contratar esses profissionais agora é algo a ser evitado, dentro do vocabulário biológico e sanitário. Mas, de acordo com o vocabulário social brasileiro, isso faz muito sentido", afirma Michel.

Hilaine Yaccoub lembra ainda que manter luxos, como as unhas bem feitas e uma prestadora de serviços, traz conforto emocional para as pessoas. "Cuidar-se, manter a normalidade, é importante para o psicológico", diz a antropóloga.

"A vivência é mais forte do que a sobrevivência"

Agora, mesmo essa vontade de se sentir no controle é, de acordo com Dunker, um sintoma do nosso narcisismo. Curte esportes radicais? Entra no cheque especial, mas está sempre comprando os últimos lançamentos em beleza? Então você não é muito diferente das pessoas que contratam "serviços secundários". Estamos todos em busca de pequenas pílulas de satisfação. "Somos capazes de expor nossas vidas ao risco em função de certos prazeres. A aparência, a satisfação do cuidado de si se impõe a regras mais básicas como as sanitárias. A vivência é mais forte do que a sobrevivência", explica o psicanalista.

E o desejo humano te orienta a outros desejos, criando um escalonamento. "Você não faz as unhas para torná-las mais funcionais, mais higienizadas. É porque quer capturar o olhar e o respeito do outro", diz Dunker. "Você se sente feliz e seguro porque sua imagem está impecável."

O mesmo vale para a necessidade de manter a diarista trabalhando. "Se você tem condições funcionais de limpar a sua casa, manter a empregada está orientado por uma impossibilidade de fazer coisas que ofendam seu narcisismo, algo que envolve classe, raça, etnia, a diferença que te torna uma pessoa especial. Mais uma vez, você coloca a sua vida em risco em nome de uma imagem.". Dunker lembra, ainda, que manter uma diarista por status não é nenhuma novidade. "É que agora se aplica de uma forma mais radical."

Mas as diaristas, cabeleireiros e manicures precisam continuar trabalhando para pagar suas contas, certo? Não exatamente. "Ninguém tinha de estar pensando em dinheiro neste momento. O Estado deveria prover as condições materiais para que essas pudessem se manter enquanto se cuidam, sem se colocar em risco", diz Alcorofado.

Outra saída é prover a quarentena remunerada para empregadas domésticas, mas não é isso que tem acontecido. Uma pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva deu conta de que 39% dos patrões dispensaram as diaristas sem pagamento durante a pandemia.

Julio não entra na estatística: ele manteve as diárias mesmo sem a visita da prestadora de serviços. Mesmo sentindo que tem feito a coisa certa, ele deve ficar ainda um bom tempo em conflito sobre se chama a diarista ou não. Caso caia na tentação, ele já traçou um plano. "Pretendo pagar o Uber para ela ir e voltar de casa e não se colocar em risco, além de fornecer máscara e álcool em gel." Titãs estavam certos, mais uma vez: "A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte".