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Falta de dados impede de saber quem são os super-ricos no Brasil

Favela da Tavares Bastos, no Rio de Janeiro (RJ) - Brunomartinsimagens/Getty Images/iStockphoto
Favela da Tavares Bastos, no Rio de Janeiro (RJ) Imagem: Brunomartinsimagens/Getty Images/iStockphoto

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB

23/01/2020 04h00

Autor de "Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil - 1926-2013" (Hucitec Editora), grande vencedor da categoria Livro do Ano do 61º Prêmio Jabuti, em 2019, o sociólogo Pedro Ferreira de Souza afirma que as disparidades de renda e de oportunidade andam juntas no país.

Em entrevista ao TAB, o pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) lamenta que, ainda hoje, "muita gente ache que a desigualdade de renda não importa, que deveríamos olhar só para a desigualdade de oportunidades e favorecer a meritocracia". "O problema é que as duas desigualdades costumam andar juntas. Países com maior desigualdade de resultados tendem a ter maior desigualdade de oportunidades."

Os motivos para isso são fáceis de serem entendidos, afirma. "Quando as disparidades são muito grandes, pais ricos possuem muito mais recursos para investir nos seus filhos e fica muito mais difícil reverter essas discrepâncias com serviços públicos. Como comparar esforços quando os pontos de partida são tão diferentes? Para mim não faz sentido."

As ponderações do pesquisador não são mera opinião. Referência nos estudos sobre desigualdade, o trabalho Ferreira de Souza chegou a ser comparado com o do economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller "O capital no século 21". Foi o que fez, por exemplo, a jornalista Miriam Leitão, que acompanha seus estudos já há algum tempo.

O frisson em torno do livro é compreensível.

Orientador da tese, o economista e sociólogo Marcelo Medeiros lembrou, em entrevista recente, que a maior parte da história econômica do país foi contada em termos de crescimento do PIB e composição dos setores econômicos. Em outras palavras, uma "história de quanto o Brasil produziu".

Economista francês Thomas Piketty, em visita a São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress - Eduardo Knapp/Folhapress
Economista francês Thomas Piketty, em visita a São Paulo
Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

Seu ex-aluno, por sua vez, conta a história de quem ganhou com isso. "É mais do que ter dados novos, é ter uma ótica diferente de análise. Além disso, ele produz a série mais longa e mais completa de desigualdade e, com isso, traz o longo prazo para o debate", disse Medeiros.

Nem utopia, nem distopia

Essa visão de longo prazo sobre a desigualdade permite identificar duas características muito claras, segundo o autor. "Primeiro, a desigualdade tem uma inércia muito grande — não é fácil mudar radicalmente a distribuição de renda de um país. Segundo, a desigualdade não tem nenhuma tendência óbvia de longo prazo. O futuro não é nem a utopia nem uma distopia. O que a gente vê é uma flutuação com ondas de maior ou menor desigualdade, em geral depois de mudanças abruptas, muitas vezes em meio a crises fortes."

Desempenho do Brasil só é pior que o da Colômbia em estudo sobre mobilidade social da OCDE - DABLDY/GETTY/BBC BRASIL - DABLDY/GETTY/BBC BRASIL
Desempenho do Brasil só é pior que o da Colômbia em estudo sobre mobilidade social da OCDE
Imagem: DABLDY/GETTY/BBC BRASIL

Segundo o pesquisador, "estamos em um momento de maior desigualdade em muitos países do mundo", o que politiza ainda mais o tema. "Há muitos paralelos com a situação no começo do século 20, mas o futuro ainda está totalmente em aberto", diz ele, por e-mail.

Pedro Ferreira de Souza conta que seu orientador foi uma figura decisiva para que ele começasse a pensar na questão da desigualdade a partir do topo. Ambos se tornaram amigos. "Ele é um dos pioneiros no Brasil nessa perspectiva e sempre me desafiou e me encorajou muito, um cara com uma generosidade intelectual incrível."

Questionado se o prêmio colocava o tema da concentração de renda no centro do debate no país, o sociólogo diz que o Brasil sempre teve muitos estudos de alta qualidade sobre o assunto. "Nossa tradição é de fazer inveja a muitos outros países. Historicamente, o tema nunca fica muito tempo fora do debate público, e nem poderia ser diferente. Nos últimos anos, a crise política e econômica ocupou grande parte do debate, mas estamos em um momento de retomada da discussão da desigualdade."

Ele afirma que sua porta de entrada para o tema se deu com a literatura sobre igualdade de oportunidades e mobilidade social com a qual teve contado no início do mestrado. "Em seguida passei a me interessar por desigualdade de renda, especialmente depois que entrei no Ipea."

De Einstein até hoje

Não existe bala de prata capaz de dar cabo da questão distributiva no Brasil. Nem modelos internacionais que possamos copiar com facilidade.

Desempregados enfrentam fila na 4ª edição do Mutirão de Emprego, no centro de São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress (17.9.2019) - Danilo Verpa/Folhapress (17.9.2019)
Desempregados enfrentam fila na 4ª edição do Mutirão de Emprego, no centro de São Paulo
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress (17.9.2019)

O alerta foi feito por Ferreira de Souza, então doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília, em um artigo publicado em fevereiro de 2016 na Folha de S.Paulo. Ele tinha, na época, 33 anos.

Quase quatro anos depois, o resultado de suas pesquisas sobre a desigualdade de renda no Brasil, que ele já apresentava no artigo, está hoje disponível para consulta no site da UnB. São 378 páginas que apresentam estimativas para a desigualdade de renda no país ao longo de nove décadas — a mais longa e completa série histórica sobre desigualdade para o Brasil, segundo o autor.

Na extensa referência bibliográfica da obra está até mesmo o físico Albert Einstein, que em 1949, já radicado nos Estados Unidos e detentor do prêmio Nobel, escreveu um pequeno ensaio falando sobre "a anarquia econômica da sociedade capitalista, com sua ênfase irracional no lucro e na competição e sua tendência a concentrar a propriedade dos meios de produção em poucas mãos".

Na tese, o sociólogo apresenta estimativas para a desigualdade de renda de 1926 a 2013 com base em tabulações publicamente disponíveis do Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF). Os dados, afirma, permitem recontar a história do Brasil desde a década de 1920 do ponto de vista da concentração no topo — segundo ele, algo impossível de ser realizado com outras fontes de dados mais conhecidas, como as pesquisas domiciliares amostrais.

Defendida em 2016, a tese rendeu a ele os prêmios Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), e foi considerada a melhor tese na área de sociologia do Brasil em 2017.

O livro, publicado logo depois, rendeu ao autor o primeiro lugar na categoria humanidades do Jabuti — desbancando pesos-pesados como "Valsa Brasileira", de Laura Carvalho, e "Ser Republicano no Brasil Colônia", de Heloisa Starling.

Quem procura a tal "bala de prata" nas muitas páginas da obra, ou mesmo em pedidos de entrevista com o autor, descobre que o problema é mais embaixo. Ou melhor: em cima.

Logo na introdução da tese, Ferreira de Souza afirma que a desigualdade é diferente vista do topo. "Quando os ricos estão no centro das atenções, os diagnósticos, hipóteses e interpretações não são os mesmos que emergem ao se analisarem outros estratos, como os mais pobres ou a dita classe média", escreve. "Uma sociedade com uma pequena elite abastada e uma massa empobrecida tende a ser radicalmente diferente de uma sociedade em que a hierarquia de renda ou riqueza é relativamente achatada, ainda que ambas tenham a mesma renda per capita."

O topo da desigualdade

O estudo permite concluir que o Brasil é um dos países com maior concentração no topo — "quiçá o maior", escreve Ferreira de Souza.

Aqui, descreve ele, o 1% mais rico recebe em torno de 23% da renda total, enquanto, em outros países muito desiguais, como EUA e Colômbia, esse percentual fica próximo a 20%. Nos países mais igualitários, ela não ultrapassa 10%, como na França e no Japão.

Essa concentração, mostrou o sociólogo, pouco se alterou ao longo da história, apesar da euforia em torno da chamada "nova classe média" que teria se formado nos governos petistas e se tornaram "um pilar retórico das campanhas e dos governo Lula e Dilma Rousseff".

Esse pilar se enfraquece quando analisados os dados do Imposto de Renda e se percebe que, no período, houve ganhos para os mais pobres, sobretudo com a queda na pobreza provocada por políticas como o Bolsa Família, mas houve ganho também para os mais ricos, enquanto as camadas intermediárias ficaram achatadas.

Em 2013, ano dos protestos que se tornaram um ponto de inflexão na popularidade petista, assim estava o quadro distributivo do país, segundo o estudo: no milésimo mais rico estavam aqueles que recebiam mais do que R$ 913 mil anuais (R$ 76 mil mensais), valor quase quatro vezes maior do que os cerca de R$ 235 mil anuais (R$ 19,5 mil mensais) do centésimo mais rico, 13,4 vezes superior aos R$ 68 mil anuais (R$ 5,7 mil mensais) dos 5% mais ricos e 25,5 vezes maior do que os R$ 35,8 mil anuais (R$ 2,9 mil mensais) do décimo mais rico.

"Quando se olha para os 5% e 10% mais ricos, não só a distância relativa continua aumentando muito - o 0,1% ganha 12,2 e 19,6 vezes mais, respectivamente - como os próprios valores médios se tornam mais próximos da experiência cotidiana do que muitas vezes se chama de 'classe média assalariada': as médias de R$ 230 mil anuais (R$ 19 mil mensais) para os 5% e de R$ 140 mil anuais (R$ 12 mil mensais) para os 10% mais ricos são compatíveis com os salários de grandes contingentes do funcionalismo público federal", mostra o autor.

Ferreira de Souza defende que as instituições favorecem a reprodução da desigualdade e da concentração. Dois exemplos são os privilégios do funcionalismo público e os contínuos refinanciamentos de dívidas de produtores rurais, que ele chama de "vantagens de bastidor" — "mecanismos que colaboram para a concentração de renda no topo e que, no conjunto, dão poucos sinais de arrefecimento".

Outra conclusão do estudo é que, em diferentes épocas do século passado, o aumento da concentração coincide com rompimentos democráticos. Entre 1945 e 1964 houve queda razoável da desigualdade, uma tendência revertida no regime militar. Na ditadura, a concentração de renda aumentou.

Quem é rico, mesmo?

No artigo publicado na Folha, em 2016, Ferreira de Souza mostrava que, ao contrário do que se possa pensar, o 1% mais rico do país não é composto apenas por banqueiros e donos de empreiteiras, mas por um universo em torno do 1,5 milhão de pessoas com renda bruta mensal a partir de R$ 20 mil.

Ainda assim, quando questionado pela reportagem sobre o perfil dos super-ricos, ele diz que a falta de informações ainda é um obstáculo à melhor compreensão da desigualdade brasileira. "Para conhecer melhor os muito ricos, precisamos de mais acesso aos dados do Imposto de Renda. A Receita Federal tem feito um ótimo trabalho nos últimos anos, divulgando cada vez mais informações de forma regular e padronizada, mas poderíamos avançar ainda mais."

Isso, segundo ele, acontece em países como Colômbia e Dinamarca, que dão acesso amplo a pesquisadores, sempre respeitando o sigilo fiscal e o anonimato dos contribuintes.

"No Brasil, isso nunca ocorreu - nunca pesquisadores fora da Receita Federal puderam trabalhar com os microdados das declarações, apenas com tabelas bastante agregadas. Isso dificulta muito o debate. Os obstáculos não são técnicos, mas jurídicos e políticos. Seria muito bom se pudéssemos avançar nisso nos próximos anos, até em nome da transparência."