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Guerra às drogas é pretexto para atacar negros e pobres, diz criminalista

O advogado criminalista Joel Luiz Costa montou seu escritório na favela do Jacarezinho, onde cresceu - Ricardo Borges/Folhapress
O advogado criminalista Joel Luiz Costa montou seu escritório na favela do Jacarezinho, onde cresceu Imagem: Ricardo Borges/Folhapress

Ana Paula Grabois

da agência Eder Content, colaboração para o TAB, no Rio

10/04/2019 04h02

Filho de um ex-traficante e de uma empregada doméstica, criado na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro, Joel Luiz Costa é um advogado defensor de mudanças nos processos judiciários que penalizam o jovem negro das periferias.

Costa é formado em direito graças a um acordo com o pai: quando ele se formasse em um curso universitário, o pai abandonaria o tráfico. Hoje, com pós-graduação em Processos Penais e Garantias Fundamentais e uma passagem pela advocacia empresarial no Rio, tem escritório próprio no Jacarezinho. Lá, atende a moradores com casos nas áreas criminal, trabalhista e previdenciária civil.

Ao longo de sua formação e prática, tornou-se um crítico feroz da nova Lei de Drogas, aprovada em 2006. A política de segurança pública adotada nos últimos anos no Rio de Janeiro e o combate às drogas no país, afirma o advogado, formam "uma cortina de fumaça" que encobre a manutenção do rentável negócio das drogas ilícitas e a discriminação racial e de classe na Justiça. "A pobreza no Brasil tem cor. A Lei de Drogas faz parte disso", afirma.

Atualmente, esse grupo forma o maior contingente nas penitenciárias do país, acusado ou condenado por crimes relacionados ao narcotráfico. Com a experiência de criminalista com escritório na comunidade onde cresceu, Costa afirma que há seletividade racial na Justiça a partir das leis e das interpretações e decisões de diferentes instâncias do Judiciário.

Detalhe das anotações do advogado Joel Luiz Costa durante entrevista - Andréia Lago/Eder Content - Andréia Lago/Eder Content
Detalhe das anotações do advogado Joel Luiz Costa durante entrevista
Imagem: Andréia Lago/Eder Content

Hoje, o tráfico de drogas é o crime que mais resulta em prisão no Brasil, e 62% da população carcerária é constituída por negros, segundo estatística do Ministério da Justiça de 2014. Muitos poderiam ser encarados como usuários, diz Costa, citando pesquisa de 2015 do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro - o trabalho aponta que 60% das apreensões de maconha no Rio seriam consideradas posse legal em Portugal, enquanto na Espanha o índice subiria para 80%. Ou seja, livres de detenção.

É fácil ver essa lógica racial em uma semana que um músico negro foi morto após seu carro, em que estavam a mulher, o filho e o sogro, receber 80 tiros disparados por militares em Guadalupe, zona norte do Rio. Os dez agentes envolvidos foram presos e vão ser julgados pela Justiça Militar.

Lei de Drogas

Para Costa, a lei brasileira peca por aplicar um critério subjetivo ao diferenciar traficantes e usuários. Como não há uma quantidade especificada na lei, é o delegado quem decide. "Na periferia, não existe o benefício da dúvida", diz.

"Um moleque negro, sem trabalho formal, em um bairro de periferia à noite em um local dito como controlado por determinada facção, necessariamente vai ser enquadrado como traficante independentemente da quantidade (de droga) que tenha", explica. Sem meias palavras, o advogado afirma que adotar um critério subjetivo na lei "num país racista, classista e preconceituoso" só reforça o preconceito racial e de classe.

A Lei de Drogas, sancionada pelo ex-presidente Lula em 2006, não especifica uma quantidade mínima que estabeleça o que é posse ou tráfico. Após o delegado encaminhar a denúncia, é o juiz que determina se o portador de droga é considerado usuário ou traficante a partir da quantidade, do contexto da ocorrência e das suas circunstâncias pessoais e sociais.

Joel Luiz Costa argumenta que a justiça criminal faz uma seletividade racial que classifica os brancos como usuários e os negros como narcotraficantes - Andréia Lago/Eder Content - Andréia Lago/Eder Content
Advogado diz que Justiça faz uma seleção que separa branco como usuário e negro como traficante
Imagem: Andréia Lago/Eder Content

Segundo Costa, trata-se de um critério subjetivo que representa um grande retrocesso e impulsionou o Brasil a ter a quarta maior população carcerária do mundo. Para o advogado, quando a legislação entrou em vigor, o Brasil já tinha maturidade jurídica suficiente para saber que "um país racista e dividido como o nosso, onde as pessoas são julgadas pelo seu CEP, esse tipo de critério não seria mecanismo de justiça".

"Essa lei é um cheque em branco para a polícia prender pessoas em situação de vulnerabilidade e encarar pobres, favelados e negros como traficantes e não como usuários."

Seletividade racial

Costa diz que a seletividade racial no Judiciário brasileiro é histórica. Para ele, a legislação que criminalizava e prendia pessoas que estavam nas ruas sem condições de se manter financeiramente está na origem desse tratamento.

"Nascida no Código Penal do Império, que tratava dos vadios e mendigos, até chegar no atual texto da Lei de Contravenções Penais, de 1941, a Lei de Vadiagem, foi o grande mecanismo legal de controle do corpo preto livre, antes e depois da abolição. Depois houve a criminalização do samba, da capoeira e das religiões de matrizes africanas", resgata Costa.

No começo do século 20, afirma, esse papel passou a ser desempenhado pela criminalização do consumo e comércio de drogas. A partir da década de 1930, quando o Brasil passou a punir também o usuário de drogas, a política de combate às drogas tornou-se um mecanismo para controle para grupos específicos. Costa cita as sentenças de porte de drogas da década de 1970 e 1980, nas quais jovens brancos e negros tinham tratamento diferenciado.

"Um moleque negro apreendido com uma certa quantidade de drogas ficava internado em uma instituição para menores. Já o menino branco era liberado para que os pais levassem para casa sob o argumento de que teria um tratamento especializado. O Estado brasileiro se vale de mecanismos legais para fazer controle dos corpos negros."

Joel Luiz Costa observa maquete de favela após dar entrevista   - Andréia Lago/Eder Content - Andréia Lago/Eder Content
O advogado Joel Luiz Costa observa maquete de favela após dar entrevista
Imagem: Andréia Lago/Eder Content

Segundo o advogado, basta olhar os números. Um levantamento realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em 2016 mostrava que na zona norte do Rio, área mais pobre e com maior população negra, a incidência de crimes relacionados ao tráfico é sete vezes maior do que na zona sul da cidade, mesmo tendo o dobro de moradores que a área mais rica e branca da cidade onde predominam favelas controladas pelo tráfico. "Ou o pessoal da zona norte comete muito esse crime ou o Estado se preocupa muito em vigiar esses corpos", questiona.

A favela do Jacarezinho


Costa não vê sentido eu advogar para uma grande empresa ou ter escritório em outro lugar que não seja a favela onde nasceu. "Não há sentido que todo aquele grupo que vive no lugar de onde eu vim não tenha algum benefício desse meu privilégio de ter tido instrução, de ter estudado.

É para que o moleque da favela pense 'olha, esse moleque aqui é um neguinho igual a mim e é advogado, então posso virar advogado', para que ele veja que ele pode fazer outra coisa além do tráfico." Representatividade importa, afirma. "Os negros não estão nos programas de TV, nos cargos de gestão, no Judiciário e nem no Legislativo. Quando estão, é em número irrisório."

O resgate pela educação

"Eu não deixei de entrar no tráfico por medo de ser preso, eu deixei de entrar para o tráfico porque eu tive a oportunidade de escolher uma cadeira na faculdade", diz Costa. No fim de fevereiro, ele conseguiu colocar em funcionamento o NICA (Núcleo Independente e Comunitário de Aprendizagem), um cursinho pré-vestibular gratuito para jovens do Jacarezinho.

As duas primeiras turmas terão aulas à noite em dias úteis já neste semestre e ele promete que abrirá em breve turmas de alfabetização de adultos. "O medo do cárcere não faz com que ninguém deixe de cometer crimes. Com 15 anos, um garoto da favela já tem que botar dinheiro dentro de casa para sustentar a família. Como fazer, onde arrumar trabalho com 15 anos?", questiona.

A figura paterna

Além do acesso à educação universitária, crescer numa família com pai e mãe vivos e casados fez uma diferença, diz o advogado carioca. "Se eu não tivesse pai, aos 15 anos teria que ajudar em casa seja com dinheiro ou cuidando dos moleques. Isso iria minar o meu futuro. Eu não teria feito uma faculdade se eu não tivesse tido um pai. Nem digo um pai traficante, que pagou os meus estudos. Um pai como figura paterna, que dá o equilíbrio."

Ele mesmo observa que esse não é o caso de 40% das famílias brasileiras, que são chefiadas apenas por mulheres: na maior parte dos lares pobres das periferias, o pai sumiu, está preso ou está afundado em drogas. "O abandono paterno contribui muito para esse cenário de violência porque se cria uma família desestruturada. Além disso, a falta de perspectivas para além do tráfico e a falta de oportunidades para seguir com os estudos reforça esse quadro."


Segurança Pública no Rio

"Não se combate violência com mais violência." A frase não é nova, mas resume a avaliação que o advogado faz da política de segurança pública do Rio de Janeiro nos últimos anos. Ele cita a favela do Jacarezinho, onde vivem 50 mil pessoas e que funciona numa dinâmica própria há anos.

"Não vai mudar com ocupação bélica, não faz nenhum sentido. O moleque não vai deixar o tráfico por medo do cárcere. Ele vai deixar por oportunidades de estudar e trabalhar. Não vai ser com o policial armado que o neguinho da rua de baixo que precisa alimentar o irmão vai deixar o tráfico. Ele vai deixar se ele tiver outra forma de alimentar o irmão que não seja botando a vida dele em risco, ou ainda tendo um pai presente, uma família estruturada, uma ajuda do Estado."

Guerra às drogas

"A guerra não é às drogas, a guerra é aos pobres. Isso é uma cortina de fumaça. Se fosse para realmente combater as drogas, a gente vigiava as fronteiras", afirma, ou os portos de Santos e do Rio, por onde chegam grandes quantidades de drogas ao Brasil.

Para Costa, o combate às drogas no país é "esquizofrênico". Ele questiona, por exemplo, o fato de uma megaoperação policial no Jacarezinho resultar na apreensão de 3 quilos de cocaína e 20 quilos de maconha enquanto a maior apreensão no aeroporto do Galeão Tom Jobim, no Rio, ter sido de uma 1,2 tonelada. "A sociedade tem que parar para pensar: é assim há 500 anos porque o Estado é burro e não sabe fazer, ou o Estado quer que seja feito assim?", provoca.

O novo governador

Crítico do novo governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), o advogado não mostra surpresa com a polêmica declaração feita pelo ex-juiz federal após ser eleito, em 2018.

Em novembro passado, Witzel disse que "o correto é matar o bandido que está de fuzil". "A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... fogo! Para não ter erro", declarou o governador. Para Joel Costa, a naturalização da morte pelo Judiciário no Rio de Janeiro já existe. Segundo ele, 98% dos casos de autos de resistência (mortes por policiais em confronto por resistência do suposto bandido) no Estado são arquivados sem investigação.

"A morte de determinado grupo já está naturalizada pelo Judiciário. Eu não consigo esperar que um juiz que saiu dessa estrutura e hoje detém a caneta de governador aja diferente. A Polícia Militar do Rio não mata sozinha, mata com autorização do Judiciário e da sociedade. Não à toa, é a polícia que mais mata."