Como os povos indígenas brasileiros veem a pandemia de Covid-19
Segundo a cosmologia do povo Huni Kuin — que vive no Acre e no leste da Amazônia peruana —, os morcegos são espíritos ou xamãs, capazes de mudar de forma e de se ligar a outros mundos. Para esses povos, quem introduziu sua etnia aos mistérios das plantas foi um ser capaz de se transformar em homem e em um destes mamíferos voadores.
É por isso que os Huni Kuin têm uma consideração diferente pelos morcegos, um dos maiores polinizadores da floresta. Chegaram, inclusive, a ser chamados de Kaxinawá, ou povo-morcego, por seus inimigos — um apelido hoje rejeitado, já que tem uma conotação ofensiva, por sugerir uma relação com as espécies que consomem sangue e caçam à noite. Em todo caso, não à toa, ainda no início da quarentena — e antes mesmo de saberem que os morcegos são possíveis vetores do novo coronavírus —, os Huni Kuin se isolaram na mata.
"Vamos nos retirar na floresta, vamos ficar quietos e não vamos deixar mais ninguém entrar, porque tudo isso é 'nisun'". A fala do líder Ibã Huni Kuin foi registrada pela antropóloga Els Lagrou, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no artigo "Nisun: A vingança do povo-morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavírus".
Como ela explica, na visão Huni Kuin, tudo o que nos cerca tem "nisun". "A primeira definição de 'nisun' que estudei foi nos rituais de ayahuasca [chá feito da mistura de plantas amazônicas]. Trata-se dessa tonteira, dor de cabeça, que pode se transformar em doença e morte", explica Lagrou ao TAB. Segundo a antropóloga, os jovens caçadores, por exemplo, consideram os rituais importantes para se protegerem dessa espécie de vingança enviada por suas caças.
Para essas populações, não existe um deus que se vinga pelo pecado dos homens, como no pensamento cristão. A lógica ameríndia é mais sutil. Ela considera a Terra como sendo habitada por uma multiplicidade de seres com os quais é preciso negociar. O xamanismo é a arte de negociar com essas forças
Els Lagrou, antropóloga da UFRJ
Segundo a professora, a confirmação da possível origem do vírus da Covid-19 não seria uma surpresa para os indígenas. "Isso se encaixaria perfeitamente no modo de pensar Huni Kuin e de outros povos, no sentido de que, se você desmata, você agride os seres que habitam um determinado ambiente, e esses seres vão reagir de alguma forma", diz Lagrou, reforçando a ideia de que, para muitas etnias, as grandes epidemias são associadas aos brancos e são trazidas pelo vento, não por animais.
Lagrou retoma o pensamento do líder Yanomâmi Davi Kopenawa, sobre as grandes epidemias (ou "xawara") enfrentadas por sua etnia, ao lembrar que, na lógica ameríndia, a natureza não é um objeto passivo a ser explorado. É por isso que os Yanomâmi entendem a fumaça proveniente dos garimpos, por exemplo, como espíritos causadores de doenças.
Para o antropólogo Bruce Albert, que traduziu a filosofia de Kopenawa para o francês no livro "A Queda do Céu" (Companhia das Letras), a atual catástrofe sanitária nos força a repensar o rumo do planeta. "Ao destruir cegamente as florestas tropicais, sua biodiversidade e os povos indígenas que as habitam com sabedoria, os 'Povos da Mercadoria' (como nos rotulou Davi Kopenawa) acabam virando contra si mesmos as consequências de sua predação desenfreada, tornando-se, assim, a vítima final de sua própria 'hybris'. Essa é a mensagem que os xamãs Yanomâmi tentam nos transmitir há décadas", escreveu ele em um artigo para o jornal francês Le Monde, traduzido pela n-1 edições.
Retorno aos encantados
Até o fim de maio, através do observatório Quarentena Indígena criado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), foram registradas pelo menos 159 mortes e 1.604 infecções entre as populações nativas, a maioria no Amazonas.
"Com esses dados, a gente mostra o descaso da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena), o descaso do poder público, que não contabiliza os casos de indígenas contaminados em contexto urbano", afirma Sônia Guajajara, coordenadora da APIB e primeira mulher de origem indígena candidata à vice-presidência do Brasil, na chapa de Guilherme Boulos, do PSOL, em 2018. "Se considerarmos apenas os dados oficiais, nunca vamos ter uma clareza sobre o número real de mortos indígenas, nem vamos poder contabilizar o prejuízo dessa pandemia para os nossos povos."
A líder Guajajara lembra do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, liberado pelo STF. "Parecia o encontro de uma organização criminosa", opinou, destacando as falas do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles — que sugeriu aproveitar a pandemia para afrouxar legislações ambientais; da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que insinuou haver "contaminação proposital" entre os indígenas para culpar o presidente; e do ministro da Educação Abraham Weintraub, que declarou odiar o termo "povos indígenas". "Não é uma surpresa, porque conhecemos a posição do governo. Mas mostra que o risco de extermínio dos povos indígenas é uma realidade que atinge a todos", disse Guajajara ao TAB.
Um pedido de instauração de inquéritos para investigação e afastamento dos ministros foi assinado por deputados como Joênia Wapichana (Rede-RR), a primeira mulher indígena eleita deputada federal.
Já faz tempo que a gente fala que as mudanças climáticas provocaram um desequilíbrio no planeta. É possível que apareçam muitas outras doenças como a Covid-19, porque esse é o resultado do uso totalmente predatório que fazem da natureza
Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Para os Guajajara, do Maranhão, o respeito aos ancestrais, conhecidos como encantados, é um pilar de resistência. "As pessoas estão olhando agora para as orientações milenares dos povos indígenas como alternativa para salvar o planeta. É o momento de nos conectarmos ainda mais aos nossos ancestrais", acredita Sonia Guajajara.
Como lembra o escritor Daniel Munduruku, segundo a filosofia dos Munduruku, que habitam a Amazônia paraense, essa conexão com os ancestrais não significa uma volta ao passado, mas ao presente. Segundo ele, a ideia não-linear de tempo de muitas culturas indígenas — diferente do padrão eurocêntrico de passado, presente e futuro — é responsável por afastá-los do conceito de "acumular para o futuro", que impulsiona a exploração desenfreada do atual sistema de produção. Ele lembra de uma frase dita pelo seu avô: "Se o momento atual não fosse bom, ele não se chamaria presente".
Na visão do escritor, os ensinamentos indígenas vão na contramão das ideias de sucesso, progresso, desenvolvimento, riqueza, individualismo e competição.
As pessoas são viciadas no futuro. Elas têm dificuldade de viver o agora, o presente, o hoje. Fomos educados para acreditar que nossa realização pessoal só poderá acontecer lá na frente. Talvez seja este o grande ensinamento que os povos tradicionais podem oferecer às pessoas: o tempo-agora
Daniel Munduruku, escritor
A antropóloga Els Lagrou afirma que pandemias como a do novo coronavírus não são causadas pelo consumo de animais exóticos, mas, sim, pelo desmatamento e extração predatória dos recursos naturais. "Isso tudo tem uma clara relação com o Antropoceno, essa ideia do próprio homem ser responsável pelas mudanças geológicas da Terra", afirma. "Esse tipo de filosofia dos ameríndios no geral não se compara à ideia destrutiva que coloca o homem acima da natureza, vendo-a como algo a ser explorado até a exaustão."
Em "Ideias Para Adiar o Fim do Mundo" (Companhia das Letras), o escritor e líder indígena Ailton Krenak reflete sobre como a humanidade se apega à sua frágil existência na Terra. "O Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é sua marca mais profunda", escreveu. Essa ideia fixa, no entanto, como mostram os povos originários, é uma ilusão. E perde quem não souber negociar com a natureza.
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