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Com a Covid-19, tradicional assembleia Xukuru passa a ser online

O produtor Kleber Xukuru, em gravação de documentário no território Xukuru - Ororubá Filmes
O produtor Kleber Xukuru, em gravação de documentário no território Xukuru Imagem: Ororubá Filmes

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

20/05/2020 04h00

De dentro do Espaço Mandaru, um dos locais sagrados para o povo Xukuru, na aldeia Pedra D'Água (em Pesqueira, Agreste de Pernambuco), o cacique Marcos dá as boas-vindas aos participantes da tradicional assembleia de indígenas pernambucanos, que se reúnem sempre no mês de maio para discutir ações afirmativas e políticas de saúde, educação e do direito à terra.

Ao contrário de 2019, quando 2.300 pessoas participaram do evento, desta vez, os interlocutores do cacique assistem sua fala pelas telas do computador e do celular. Por causa da pandemia do novo coronavírus, a 20ª Assembleia Xukuru foi reformulada para uma versão online, que começou no último domingo e segue até esta quarta-feira (20).

Em duas décadas, este é o primeiro ano em que o encontro não ocorre presencialmente. Criada em 2000, em celebração à memória do pai de Marcos, o cacique Chicão -- líder dos Xukuru assassinado em 20 de maio de 1998 --, a conferência tornou-se uma das maiores mobilizações indígenas do Brasil, com participação de etnias locais e de outros estados, além de movimentos sociais e grupos engajados na defesa dos direitos humanos.

"Em virtude do que está acontecendo no mundo, temos que seguir os protocolos das autoridades competentes, do país e do Estado, com orientação para que fiquemos em isolamento", explica Marcos, no vídeo que já passa de 3 mil visualizações.

A assembleia atípica, como diz o líder dos Xukurus, teve alterada a programação que já era praxe. Em vez de debates, palestras, oficinas, apresentações culturais e cerimônias religiosas, foram agendadas videoconferências, exibições de documentários e lives de artistas da comunidade. Até mesmo a pajelança de abertura foi substituída por outro ritual, o memby, realizado pelo mestre Seu Medalha tocando, sozinho, uma flauta em louvor aos "encantados", ancestrais da tribo.

No entanto, embora aproxime as pessoas neste contexto de pandemia e permita a continuidade do evento, a internet, pondera o cacique Marcos, não substitui a essência da assembleia presencial, "do calor humano, do sentir, dentro do próprio ambiente, os rituais, falas e emoções". Em entrevista ao TAB, ele conta que "tudo isso é muito diferente e difícil, porque termina sendo uma coisa mais fria, distanciada das pessoas". "Mas a gente entendeu que, por ter essa ferramenta, não poderia deixar de acontecer, tendo em vista que é uma marca do povo Xukuru e faz parte do nosso contexto de luta."

Jovens comunicadores

A transmissão online da assembleia mobilizou a juventude Xukuru, porque é toda feita com suporte da Ororubá Filmes, produtora audiovisual criada em 2008 na comunidade, formada por 15 jovens locais. O grupo é responsável, no dia a dia, pela cobertura de eventos nas comunidades e pela produção de conteúdo — tanto de divulgação quanto de formação em escolas.

O cacique Marcos, líder dos Xukuru e filho do cacique Chicão, que foi assassinado em 1998 - Acervo Alespe - Acervo Alespe
O cacique Marcos, líder dos Xukuru e filho do cacique Chicão, que foi assassinado em 1998
Imagem: Acervo Alespe

"Eles também estão envolvidos em movimento de juventude a nível nacional, se pautando pela luta pela terra e direito indígena, e dão palestras nas escolas para falar sobre a luta do povo Xukuru, mostrando entrevistas com os mais velhos, para que não se perca a referência das origens", explica o cacique. "A internet é outro mundo, e, se não tiver cuidado, deixa a juventude se dispersar. Por isso, incentivamos o trabalho com essa ferramenta para fortalecimento da identidade étnica do povo Xukuru, registrando e falando essa história, para que não percamos a nossa origem."

O produtor Kleber Xukuru, 31 anos, é um dos integrantes da Ororubá Filmes. Ele conta que o trabalho desenvolvido por eles "utiliza o que temos de moderno para fortalecer o que temos de ancestral, e contrapor o estereótipo folclórico de que indígenas têm que ser atrasados".

Há três anos, a internet é aliada da atuação política dos Xukuru -- que, além dos documentários e transmissões, também lançaram recentemente o OrorubáCast, Um Sinal de Fumaça do Povo Xukuru -- podcast que disponibilizam no Spotify e no Soundcloud. "A ideia é, tanto nos vídeos como no podcast, estabelecermos uma comunicação própria que transmita a nossa perspectiva sobre fatos, atividades e cultura", diz Kleber.

Mais da metade das 24 aldeias que compõem os 27 hectares de território Xukuru têm acesso à internet. Para garantir o sinal, entretanto, a comunidade negocia com operadoras que instalam na região antenas de fornecimento de rede. Nas escolas, postos de saúde e em alguns espaços públicos, o sinal é gratuito.

Bastidor das transmissões da Assembleia Xukuru - Ororubá Filmes - Ororubá Filmes
Bastidor das transmissões da Assembleia Xukuru
Imagem: Ororubá Filmes

"A internet ainda é uma das dificuldades, mas embora não seja um sinal forte, em muitas das aldeias ela é um facilitador da comunicação. E foi incorporada mais intensamente de 2017 para cá, quando aderimos às transmissões ao vivo. Porém, antes disso, já usávamos o Facebook como forma de colocar [em visibilidade] nossa pauta", lembra. "Mas muitas mobilizações já são feitas pelo WhatsApp de algum tempo para cá, então a nossa luta já tem a internet e as redes sociais como instrumento."

Pandemia

Neste ano, inventivamente, a Assembleia Xukuru discute a pandemia de Covid-19 - tema de uma videoconferência com a participação de profissionais de saúde da região e antropólogos, que falaram sobre as ações sanitaristas na aldeia e reforçaram a conscientização sobre os cuidados para evitar contágio do vírus.

Apesar de não haver casos de Covid-19 no território, o cacique Marcos conta que toda a comunidade está mobilizada em ações de prevenção da doença. Nas aldeias onde há maior fluxo de visitação, por exemplo, os moradores restringiram a entrada de pessoas de fora -- e eles mesmos se revezam no controle das porteiras. Também há três equipes médicas orientando a população sobre os riscos e formas de evitar a contaminação do vírus, além de fazer monitoramento constante do Distrito Especial Sanitário Indígena, unidade de saúde responsável pela comunidade.

Para o enfermeiro Israel Cavalcanti, coordenador da equipe multidisciplinar que atende os Xukuru e participou do bate-papo, um dos desafios trazidos pela pandemia está ligado aos costumes da população. "O coronavírus é desconhecido, e por si só traz angústia e medo", diz. "Mas é importante lembrar que estamos seguindo protocolos de atendimento. Por exemplo, com os agentes de saúde, durante as visitas domiciliares, eles não podem adentrar as residências e a visita é feita do lado de fora, o que é bastante difícil, porque a população é muito acolhedora. Mas temos que entender que não é momento de adentrar [as casas], abraçando, conversando", exemplifica.

Divulgado em 15 de maio, o último levantamento de dados da Remdipe (Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco) mostrou que o coronavírus já chegou em cinco das 15 etnias do estado com a maior população indígena do Nordeste. Ao todo, 18 pessoas tiveram a doença, e quatro delas morreram.

Ao fim da Assembleia Xukuru, os organizadores do evento vão divulgar uma carta com as principais demandas da população das aldeias que devem pautar ações políticas das etnias.