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A cacica que lutou para resgatar seu povo e que agora teme a covid-19

A cacica xavante Carolina Rewaptu - Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog
A cacica xavante Carolina Rewaptu
Imagem: Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

09/04/2020 04h00

A jornalista Patrícia Cornils atendeu ao telefone dias atrás e, do outro lado, quem falava era a cacica xavante Carolina Rewaptu.

"Está preocupada com a possibilidade de o vírus chegar na aldeia. Já imaginou?", conta Cornils ao TAB. Sim, a notícia da pandemia de covid-19 também assusta indígenas. "Disse muito a ela que é para não permitir a circulação de brancos na aldeia principal."

Na Terra Indígena Marãiwatsédé, município de Alto da Boa Vista, no norte do estado do Mato Grosso, a aldeia de Carolina é a mais distante — "ela escolheu o local justamente para se afastar desses caras que vão vender álcool, doces, comida", conta a jornalista. "Recomendei também para evitarem ao máximo irem à cidade. Mas sei que precisam", prossegue Cornils. "Muito ruim sentir essa impotência. Deixei bem claro que a estratégia é não adoecer. Mas me senti meio ridícula dizendo isso. Eles sabem, há tempos."

"É meio doido você dizer a um povo que ele precisa se isolar, quando tudo o que fizeram, ao longo da história, foi tentar ficar longe de nós para viver em paz. Eles sabem que se isolar em um sentido amplo é impossível. Mas ela entendeu", reflete a jornalista. "Ela é muito sabida."

Uma das 15 mulheres perfiladas no livro "Heroínas desta História: Mulheres em Busca de Justiça por Familiares Mortos pela Ditadura", Carolina Rewaptu é uma cacica cuja respeito foi conquistado pela própria história. A obra, que já está à venda em e-book e em livrarias que fazem entrega do livro físico, deve ser lançada em breve pela editora Autêntica e pelo Instituto Vladimir Herzog.

Quando nasceu, em 1960, xavantes "começavam a enfrentar o cerco dos brancos", diz a jornalista, no perfil da cacica que consta do livro.

Quando Carolina tinha 6 anos, três aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) aterrissaram na aldeia Umréruré, no Mato Grosso.

O voo

A primeira vez que Carolina andou de avião foi assim: de uma hora para outra, sem tempo nem para pegar suas coisas, de se despedir das plantas e dos bichos dali. Os militares simplesmente ordenaram, mais por gestos do que pela fala, já que o português nem era entendido pelos xavantes daquele tempo e daquele lugar.

Toda a tribo foi sequestrada. Carolina se lembra que eram cerca de 260 pessoas. Os aviões fizeram várias viagens, umas quatro ou cinco.

O povo de Carolina foi levado para o município Barra do Garças (MT), para a Terra Indígena São Marcos, onde também viviam xavantes. Ao contrário dos que estavam no Mato Grosso, esses já eram habituados à cultura branca. São Marcos era uma missão de religiosos salesianos.

"Na chegada a São Marcos", relata Cornils, "a comunidade indígena foi desmantelada. Os missionários separaram as famílias, mandaram crianças para o internato e os adultos foram distribuídos pelas casas da comunidade, sem saber onde estavam os demais. Nos dias seguintes, começaram a adoecer. Havia uma epidemia de sarampo em São Marcos e, em três semanas, mais de 80 pessoas morreram. Alguns textos falam em 83 mortos. Outros, 85."

"Comentei com Carolina o fato de não haver uma lista de nomes das pessoas que morreram. Ela começou a enumerar: 'irmão de meu pai, meu irmão mais novo... da família de meu pai só três pessoas sobreviveram: tio do Damião, pai do Damião, irmão do Damião'", conta a jornalista. "As pessoas que morreram na missão salesiana foram enterradas em uma vala comum. Seus parentes se lembram da carreta onde os corpos eram amontoados, do trator que a puxava e os empurrava para dentro da vala. Carregam, além da perda, a marca de um desrespeito profundo que não poupou nem os mortos. Nenhum rito de sepultamento, nenhum túmulo."

Capa do livro "Heroínas desta História", lançado pelo Instituto Vladimir Herzog - Reprodução - Reprodução
Capa do livro "Heroínas desta História", lançado pelo Instituto Vladimir Herzog
Imagem: Reprodução

Em parecer técnico emitido sobre a Terra Indígena de Marãiwatsédé, em 2016, o psicólogo Bruno Simões Gonçalves atesta: "isso é contado entre olhares perdidos e muita dor".

Os de Marãiwatsédé que sobreviveram fizeram um pacto: eles iriam retornar à sua terra, sabe-se lá onde estivesse, sabe-se lá quanto tempo iria levar. A menina Carolina, uma das sobreviventes, colocou na cabeça: esta seria sua luta. "Os velhos falavam do conhecimento e das memórias do território sagrado de Marãiwatsédé. Eles deixaram tudo para nós. Nunca deixaram [de contar] essa história", diz a cacica.

Saídos da missão salesiana, os xavantes de Marãiwatsédé foram pingando de aldeia em aldeia entre 1966 e 2004. Eram sempre forasteiros. Carregavam sempre a sensação de não-pertencimento. Seguiam em busca da terra original, a terra prometida, o Eldorado coletivo que haveria de estar para eles reservado.

O último bandeirante

A operação que retirou os xavantes do norte do Mato Grosso foi engendrada por um paulista de Agudos conhecido pela alcunha de "o último bandeirante". Ariosto da Riva (1915-1992) começou a desbravar terras desconhecidas aos 17 anos, quando decidiu virar garimpeiro de diamantes no norte do Paraná. Dali, embrenhou-se pelo hoje Mato Grosso do Sul, onde ajudou a fundar cidades como Naviraí.

Riva passou a colecionar conflitos com povos indígenas, nestas terras sertanejas. Beneficiado por um incentivo estatal para "colonizar" a então desocupada região norte do Mato Grosso, o "último bandeirante" comprou 418 mil hectares de terra por um preço baixo — e ganhou do governo federal outros tantos 400 mil. Uma enormidade, mais de cinco vezes o município de São Paulo.

Patrícia Cornils sintetiza a dicotomia da biografia de Riva: no mundo dos brancos, "uma espécie de herói do progresso"; para os xavantes, "lembrado como um predador".

Marãiwatsédé estava no meio do empreendimento do colonizador. Arranjos com o governo militar se encarregaram de "limpar a área". "Removidos os índios, os 'heróis desbravadores' se beneficiaram diretamente de sua ausência, não só pela propriedade e ocupação das terras, mas também com incentivos governamentais e financiamentos concedidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). A ditadura civil-militar brasileira, por meio da Sudam, destinou milhões aos empreendimentos", conta a jornalista, no livro.

A voz da mulher

É raro entre os xavantes uma mulher ter voz na sociedade. Carolina aprendeu português, estudou e ensinou aos seus o beabá. Formou-se em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Mato Grosso, foi professora e dirigiu a escola da Terra Indígena Pimentel Barbosa, no Mato Grosso.

A cacica xavante Carolina Rewaptu, rodeada pelas crianças da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso - Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog - Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog
A cacica xavante Carolina Rewaptu, rodeada pelas crianças da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso
Imagem: Mariana Leal/Instituto Vladimir Herzog

Foi nessa terra, em 1984, que parte do grupo de Marãiwatsédé começou a articular a retomada de suas terras ancestrais. Muitas pressões e a volta da democracia fizeram com que a Funai instalasse, oito anos depois, um grupo de trabalho destinado à questão. Com a coordenação das antropólogas Patrícia de Mendonça Rodrigues e Iara Ferraz e muitas pesquisas, ficou decidido que uma área de 200 mil hectares voltaria a ser Marãiwatsédé.

O timing era perfeito, porque o território tinha como dono a empresa italiana Ente Nazionale Idrocarburi, a Eni. E com o Brasil sediando a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, a Eco-92, um grupo de xavantes tratou de ir ao evento. Houve atenção internacional. E a presidência da Eni concordou em restituir o território aos indígenas.

Mas a novela ainda estava longe de terminar. Políticos da região passaram a questionar a validade da iniciativa e, da noite para o dia, o ponto exato que deveria se tornar aldeia passou a abrigar um povoado, o Posto da Mata.

A questão indígena não podia ser resolvida. Em 1998, o governo federal homologou a terra Marãiwatsédé. Ao menos no papel. O território havia encolhido um pouco, tinha 165 mil hectares. Mas como os xavantes podiam voltar lá, se era espaço dominado por fazendeiros?

As batalhas foram para o campo jurídico. Em 2003, cansados de esperar, um grupo de xavantes decidiu ir para a guerra. Saíram de Pimentel Barbosa com destino ao local. Encontraram uma barreira de homens armados, a mando dos fazendeiros.

"Decidiram acampar à beira da estrada, próximo a um córrego e o nomearam Rowatsétédzépa, 'córrego de conflitos'", narra a jornalista. "Carolina foi uma das primeiras mulheres a chegar, com cinco outras e três crianças, para apoiar os guerreiros."

"As pessoas que queriam impedir a retomada estavam acampadas na ponte", Carolina conta. "Estavam armados, tinham também facões, foices. E nós sem nada. Ficamos frente a frente. Tivemos coragem."

Foram dez meses de luta. Em alguns momentos, apenas tensão. Em outros, pontes queimadas, tiros, ameaças de morte, emboscadas. Três crianças morreram.

Munidos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2004 os indígenas resolveram se apossar daquilo que lhes pertencia. Conseguiram apenas 10% do terreno determinado.

A batalha seguiu. No fim de 2012, o governo federal finalmente liberou o restante das terras para os Marãiwatsédé.

Quando voltaram às terras ancestrais, Carolina mal reconheceu o local onde passou a primeira infância. O que era mato tinha dado lugar a pastagens. "Desde a retomada de Marãiwatsédé, seu principal trabalho é recriar o mundo. Replantar não só as hortas, mas as árvores, as matas", diz Cornils.

O livro

A jornalista Patrícia Cornils, que assina o perfil de Carolina no livro, contou ao TAB que já conhecia a história Marãiwatsédé, "mas nunca tinha ouvido que havia uma cacica em uma aldeia xavante". "O que mais me surpreendeu em Carolina foi... ela mesma. De muitas maneiras. Sua forma de falar, sua compreensão das coisas, sua postura de quem é responsável por um povo", avalia. "A gente não é habituado a pensar nesses termos, mas essas lideranças de povos indígenas têm o mesmo estatuto de estadistas. Suas decisões e formas de agir têm impacto sobre povos inteiros."

A ideia de contar a história da cacica em ''Heroínas desta História" veio da preocupação em "não falar apenas de mulheres de classe média e do Rio de Janeiro e São Paulo", explica a jornalista. "Era importante mostrar, por meio das perfiladas, que a violência de Estado durante a ditadura civil-militar atingiu pessoas de todo o País", comenta. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período investigado.

A jornalista lembra que foi muito difícil contatar a cacica e convencê-la a dar entrevista — o TAB tentou falar com a líder indígena, sem sucesso. "Levei alguns dias para conseguir falar com o filho dela, Cosme, e mais uns dias para que ele falasse com ela e me desse retorno. Quando finalmente combinamos a data de ir para Ribeirão Cascalheira (MT), cidade mais próxima da Terra Indígena... Carolina estava em Cuiabá e Cosme, no Pará", recorda-se. "Tive que esperar uns dias na cidade e buscar contatos de onde ambos estavam para finalmente encontrá-la na volta e irmos para a aldeia. Deve ter sido o perfil mais caro de fazer [dentre todos do livro], e isso é outra coisa importante a notar: se a gente estivesse em uma situação onde o custo de fazer o perfil determinasse quem aparece, o que deve acontecer bastante, Carolina seria mais uma vez relegada à invisibilidade. Não foi isso que aconteceu. Apesar do orçamento limitado, a gente sempre soube que não podia abrir mão dela."

Carla Borges, uma das organizadoras da obra, acredita que a persistência é o elo entre todas as perfiladas. "Essas mulheres não desistiram, apesar de tudo o que passaram. Mostram que a gente também não tem o direito de desistir", comenta ela, ao TAB.

Em tempos como os atuais, a liderança de Carolina segue necessária. Em vídeo divulgado em 2018, alguns políticos da região ameaçam os indígenas e prometem "montar um processo" para retomar as terras deles. E, conforme lembra a jornalista, em fevereiro de 2019 a Câmara Federal discutiu a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de "revisar a demarcação".

Angústias assim são compartilhadas com a jornalista. Assim como Carolina Rewaptu e Patrícia Cornils se tornaram amigas, esses laços foram construídos, acredita Carla, em todo o livro. "Foram criados vínculos que vão muito além do livro, tanto para autora quanto para a perfilada", comenta ela.

Mas, neste momento, mais do que a terra, os indígenas precisam defender a vida. Carolina tem medo do novo coronavírus. Desde o primeiro contato com o homem branco, povos como o dela sofrem também com doenças.

Errata: este conteúdo foi atualizado
No décimo parágrafo, o povo de Carolina foi deslocado para a Terra Indígena São Marcos em Mato Grosso e não para a Terra Indígena São Marcos no Estado de Roraima. A informação foi corrigida.