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Entre a pandemia e panelaços: por que o Brasil não tem um estadista

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante gravação de pronunciamento à nação - Carolina Antunes/PR
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante gravação de pronunciamento à nação Imagem: Carolina Antunes/PR

Tiago Dias

Do TAB

09/04/2020 04h00

"Estamos em guerra." Foi assim que o presidente da França, Emmanuel Macron, se dirigiu à população ao apresentar medidas mais drásticas na contenção da pandemia do novo coronavírus. Dias depois, a chanceler alemã Angela Merkel fez um raro discurso televisionado, pedindo união contra o "maior desafio do país desde a Segunda Guerra Mundial". No último domingo (5), a rainha Elizabeth 2ª fez seu primeiro pronunciamento oficial em quase 20 anos, e orientou os britânicos a cumprirem o isolamento em casa: "são tempos de guerra".

Com postura sóbria e mensagem clara, firme e esperançosa, esses líderes se lembraram dos tempos bélicos para direcionar suas nações contra um inimigo que, dessa vez, não tem rosto e nem ideologia. "É o que se espera de todo líder nacional, um certo padrão de comportamento. Ele reúne o país e diz: vamos todos contra esse inimigo. É uma situação de guerra contra um inimigo invisível. Se trata de uma situação excepcional", observa o cientista político e sociólogo Alberto Carlos Almeida.

Esse é um comportamento digno dos chamados estadistas históricos, como o ex-primeiro ministro Winston Churchill, que liderou o Reino Unido na Segunda Guerra, Charles de Gaulle, responsável por organizar o sistema partidário francês, ou o presidente Franklin Delano Roosevelt, que orientou os Estados Unidos durante a crise de 1929.

Entre direita e esquerda, esse papel costuma deixar de lado o espectro partidário e ideológico. "Não importa. São pessoas de Estado, não pessoas de governo", explica Almeida. "São pessoas capazes de fazer uma boa leitura do momento que estão vivendo, das forças políticas, da opinião pública e das opções que estão na frente deles, deixando um legado relevante para a história do país."

Por aqui, Almeida não vê sinais de que haja um capitão na direção do barco. "Jair Bolsonaro fez a Academia do Agulhas Negras e não percebe como tem que se comportar na guerra."

Pronunciamento do presidente francês Emmanuel Macron: "Estamos em guerra" - Eric Gaillard Reuters - Eric Gaillard Reuters
Pronunciamento do presidente francês Emmanuel Macron: "Estamos em guerra"
Imagem: Eric Gaillard Reuters

Pandemia e panelaços

A chegada do novo coronavírus ao Brasil foi recebida com certa descrença pelo presidente Jair Bolsonaro. A liderança máxima do país chegou a chamar o novo vírus de "gripezinha", e de "histeria" as reportagens sobre a pandemia e as primeiras ações dos estados para a contenção do contágio.

Enquanto a orientação em todo o mundo era do isolamento social, Bolsonaro saiu às ruas em duas ocasiões. Em ambas, interagiu com apoiadores. Durante pronunciamento oficial, insistiu que a quarentena não era medida salutar para conter a pandemia e ameaçou abrir o comércio através de um decreto.

Um fenômeno sui generis, na opinião do cientista político e professor do Insper Fernando Schüler. "Aqui, o presidente passa a ser o elemento divergente da orientação majoritária do próprio governo. É difícil até de definir. Ele passa a ser uma espécie de líder de opinião de uma certa visão que disputa a condução do próprio governo."

Essa condição inédita fez aumentar os panelaços nas principais capitais. E se o presidente americano Donald Trump, que antes minimizava os efeitos da covid-19, passou a adotar as orientações da OMS, Bolsonaro acabou sendo reconhecido como líder do "movimento negacionista" no mundo, como manchetou a revista norte-americana The Atlantic.

Em seu quarto pronunciamento sobre a pandemia, no último dia 31, Bolsonaro chegou a sinalizar uma mudança de comportamento e fez um gesto de união para derrotar um "grande inimigo". "Estamos diante do maior desafio da nossa geração. Minha preocupação sempre foi salvar vidas", disse.

Mas o que seria um novo direcionamento serviu como ingrediente a mais numa crise que também é política. Nos últimos dias, ele convocou a nação para um jejum religioso, defendeu o uso da cloroquina, apesar da eficácia do medicamento para o tratamento da covid-19 não ser um consenso na comunidade médica e ameaçou demitir o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta — maior defensor do isolamento social e o fechamento de comércio para estancar o contágio avançado no Brasil.

Na percepção do brasileiro, o titular da pasta tem mais do dobro de aprovação que Bolsonaro, 76% contra 33%, segundo o Datafolha. É a mesma porcentagem de quem concorda com o isolamento horizontal. Na mesma pesquisa, 51% disseram que Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda no combate ao vírus.

"O estadista é aquele que cumpre com os preceitos democráticos de civilização e, obviamente, é aquele que consegue de fato transmitir e comunicar esse projeto democrático e coletivo de uma nação. É justamente nos momentos de crise que se cobra mais importância dessa figura", observa a socióloga Esther Solano. "Obviamente, nenhuma liderança dos outros países é perfeita, mas quando você compara com Bolsonaro, é um abismo."

Para ela, essa crise de representatividade durante a pandemia pode causar desfechos mais graves. "Já está acarretando certa desordem institucional, portanto, instabilidade política, econômica e social. Estamos vendo em outros países que a única forma de lutar contra a pandemia, já que não temos vacina ainda, é o confinamento estrito e o estado se encarregando economicamente dos mais vulneráveis. Não ter um plano nacional de emergência vai acarretar sim num colapso do sistema de saúde pública e a perda de vidas humanas."

A pandemia global fará então uma seleção natural entre os grandes mandatários do planeta para ver quem atravessa o período causando menos danos à nação. "Estadistas que não sabem responder à altura da crise, sem dúvida nenhuma, sairão prejudicados. Boris Johnson se deu conta que, se ele seguisse negando a pandemia, ele sairia mais prejudicado", observa, citando o primeiro-ministro britânico. Hoje, diagnosticado com a covid-19, Johnson está internado na UTI. "Digamos que o novo coronavírus vai reeleger presidentes, mas também vai derrubar presidentes."

Angela Merkel na televisão: Maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial - FABIAN STRAUCH AP - FABIAN STRAUCH AP
Angela Merkel na televisão: Maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial
Imagem: FABIAN STRAUCH AP

Senso comum do brasileiro

Um dia depois do pronunciamento mais ameno, Bolsonaro lançou uma nova analogia para falar sobre o avanço da covid-19 no Brasil: "É igual a uma chuva. Ela vem e você vai se molhar, mas não vai morrer afogado", argumentou.

A frase é símbolo de como o presidente se desconectou do senso comum na sociedade brasileira, na avaliação de Alberto Carlos Almeida. "Quem está na chuva, abre o guarda-chuva", observa o cientista político. "O Bolsonaro não fez essa leitura, resolveu se agarrar nas crenças mais profundas dele e não fez a leitura do valor predominante da sociedade."

Almeida radiografou os desejos dos eleitores brasileiros em três livros e observa que o senso comum da população, em tempos de pandemia, é um só. "Nossa sociedade valoriza a defesa da vida. É defesa da vida de pessoas mais velhas? Não importa. É um símbolo. A sociedade diz: 'nós valorizamos tanto a vida que inclusive aqueles que estão mais próximos de cumprir a jornada devem ser poupados de morrer precocemente'. Esse é um valor social que o Bolsonaro está indo contra, batendo de frente."

Reflexo disso está na avaliação das lideranças estaduais. Muitos tiveram aprovação superior a de Bolsonaro por justamente não afrouxarem as orientações internacionais de isolamento social e fechamento de comércio.

O jogo como está posto fez até o impossível acontecer, como o gesto virtual entre o governador de São Paulo, João Doria, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antagonistas no processo político. Longe da unanimidade, a troca de mensagens foi interpretada por uns como oportunismo eleitoral, mas visto por outros como símbolo de união e de respeito a esse valor social. Na ausência do direcionamento claro de uma figura no âmbito federal, se tornou comum ler comentários nas redes sociais, de pessoas de diferentes espectros políticos, elogiando figuras até então controversas, como Doria, Lula ou o governador do Rio, Wilson Witzel.

"É algo conjuntural, mas é onde as pessoas se sentem protegidas. É como se elas falassem: 'Bolsonaro não está tomando essas medidas, mas meu governador e meu prefeito estão, e eu me sinto protegido por eles', e aí se aplaude com maior entusiasmo", observa Almeida.

18.mar.2020 - Projeção em prédio de Santa Cecília, no centro de São Paulo, durante panelaço contra Bolsonaro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Projeção em prédio de Santa Cecília, no centro de São Paulo, durante panelaço contra Bolsonaro, em 18 de março
Imagem: Arquivo pessoal

Contra a corrente

Bolsonaro é um dos poucos chefes de Estado no mundo que tem ido contra as orientações internacionais em meio à pandemia. Ao seu lado está o presidente da Bielorússia, Alexander Lukashenko — que insiste em uma tese original no combate ao novo coronavírus: sauna e vodca. Quase um mês depois de ter casos confirmados na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega não se dirigiu nenhuma vez à nação.

"É necessário senso de responsabilidade, seriedade, estratégia e uma comunicação constante com a população. Em uma crise como essa, não se pode ficar em silêncio, tem que comunicar de forma contínua", observa Solano.

Mas é fato que um estadista não nasce da noite para o dia. É uma figura que se desenha através de um período específico, um ofício que se aprende no cargo. "É muito cedo para raciocinar nesses termos, tem que esperar mais água passar por debaixo da ponte. A questão é que em nenhum momento ficou claro que Bolsonaro, desde que assumiu, seria um estadista", observa Almeida.

Para o cientista político Fernando Schüler, seria desejável que essa figura surgisse em um momento sensível como esse, mas ele acredita que esse vazio no Brasil revela as raízes de um problema mais profundo na nossa sociedade.

"Isso diz respeito à democracia contemporânea hoje, que é um ecossistema fragmentado, tornando mais difícil o surgimento dessa figura. Você tem centenas de redes políticas difusas, especialmente no mundo digital. Além do fato do Brasil ter um enorme fragmentação no sistema partidário, os partidos perderam potência de produzir consenso, de expressar a vontade da sociedade. As instituições perderam representatividade".

Ele exemplifica a questão com a última eleição presidencial, em que as candidaturas com propostas de união da nação foram dizimadas nas urnas. "O presidente Bolsonaro é o político de polarização, forjado pelo conflito, pela retórica divisiva — e isso faz parte da história dele. De alguma maneira, ele é o produto de uma sociedade e do sistema político polarizado."

Para ele, o Brasil vai passar o período da pandemia no meio do dilema do prisioneiro. "A sociedade e o sistema político brasileiro têm uma certa dose de responsabilidade nisso. A oposição não me parece disposta a consenso. Eu vejo o contrário. E vejo um presidente que não quer consenso nenhum, que se ancorou a um terço do eleitorado que lhe é fiel, e imagino que pretenda atravessar a crise dessa maneira."