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O que necropolítica tem a ver com a pandemia e com falas de Bolsonaro

Cemitério de Perus, em São Paulo, onde foram encontradas ossadas de presos políticos da ditadura militar - Folhapress
Cemitério de Perus, em São Paulo, onde foram encontradas ossadas de presos políticos da ditadura militar
Imagem: Folhapress

Mateus Araújo

Colaboração para o TAB

03/04/2020 04h00

Na Itália, o aumento exponencial de casos de covid-19 levou os médicos a escolherem salvar aqueles com "maior chance de sobreviver", entre os milhares de pacientes que lotam os leitos dos hospitais, seguindo orientação das autoridades do país. No Brasil, na semana passada, em entrevista a um programa de TV, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) relativizou a situação em que vivemos: "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida. Não pode parar uma fábrica de automóveis porque tem mortes no trânsito", disse.

Em ambas as situações, fazer viver e deixar morrer - ou definir que vai sobreviver e quem vai morrer - faz parte de um conjunto de políticas de controle social através da morte: a chamada necropolítica, como define o conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe.

Professor da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, Mbembe cunhou o termo em 2003, em estudo sobre "mundos de mortes" da sociedade contemporânea, na qual "vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de 'mortos-vivos'", escreve. O poder, explica o autor, se materializa pela "expressão da morte".

No contexto da pandemia do novo coronavírus, como o necropoder atua sobre a gente? Em entrevista à Folha, Achille Mbembe disse se tratar de um momento de calamidade que nos traz uma série de questões incômodas. "A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento (...) está relacionado ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa própria morte a outras pessoas", analisou o filósofo, para quem a quarentena é uma forma de regular o poder sobre a morte - mesmo que não absoluto, já que dependemos também das outras pessoas.

Corpos descartáveis

O controle dos cidadão - e da morte deles - está diretamente ligado ao processo histórico de colonização e racialização, explica o professor de Filosofia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Edson Teles. "Um país como o Brasil, nascido e estruturado com base no racismo e no patriarcalismo, tem produzido práticas e relações sociais extremamente desiguais e cujos sujeitos que sofrem a ação de precarização de suas vidas seguem os critérios de classe, raça e gênero", diz. Assim, precarizar vidas é torná-las também "descartáveis".

No caso da pandemia, analisa o professor, a "estrutura de morte se alastra a todos, em temporalidade muito rápida". Segundo ele, a "política da morte", que "estava em prática para grande parte da humanidade", é potencializada e generalizada. Estamos suscetíveis ao vírus - tanto para sermos infectados por ele quanto para transmiti-lo.

O filósofo Achille Mbembe, autor de "Necropolítica" - Daniel Bockwoldt/dpa/AFP (Maio/2017) - Daniel Bockwoldt/dpa/AFP (Maio/2017)
O filósofo Achille Mbembe, autor de "Necropolítica"
Imagem: Daniel Bockwoldt/dpa/AFP (Maio/2017)


"Agora somos, cada um de nós, portador de um corpo matável, e, ao mesmo tempo, podemos efetivar a necropolítica transmitindo o vírus, como se fôssemos uma pequena máquina de morte do Estado e dos dispositivos de morte que já atuavam", diz.

Coordenador do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Unifesp, onde é feita a identificação de ossadas encontradas no cemitério de Perus, em São Paulo, Edson Teles relembra os casos dos desaparecidos da ditadura militar como exemplo da necropolítica no Brasil.

"A ditadura produziu os corpos desaparecidos, quando um opositor (ou um corpo matável) era preso, torturado, assassinado, como forma de apagar a história e eliminar evidências dos crimes. E esses corpos não receberam os rituais de despedida da vida", conta o professor. "Os corpos das vítimas do covid-19 não terão os rituais de velório e enterro -- e muitos morrerão em leito hospitalar distante de seus familiares e amigos. A morte passa a habitar todos os territórios onde um ser humano se encontra. Na ditadura, os corpos matáveis tinham a aparência de inimigos visíveis, determinados", completa.

Necropolítica nas prisões

Para a advogada Dina Alves, coordenadora do departamento de justiça e segurança pública do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-SP, a atual crise da saúde "mostra a face mais perversa da atuação do Estado brasileiro e suas 'necropoliticas' raciais".

"Exemplo disso é a forma como tem sido tratada a população carcerária. As dinâmicas de punição no Brasil com foco na privação da liberdade e a superlotação das cadeias, com péssimas condições sanitárias, já favorecem a proliferação de doenças como tuberculose, pneumonia e Aids, e agora se torna também terreno fácil para disseminação do novo coronavírus", diz ela, que estuda o sistema carcerário brasileiro com base no conceito de necropolítica.

Na última sexta-feira (27), o PSOL, as defensorias públicas do Rio de Janeiro e São Paulo e as ONGs Conectas Direitos Humanos e IBCCrim protocolaram uma ação no STF (Superior Tribunal Federal) pedindo, entre outras coisas, a prisão domiciliar de pessoas que fazem parte do grupo vulnerável ao novo coronavírus, além do fim do racionamento de água nos presídios e a entrega de itens de higiene e limpeza para celas. O Brasil tem mais de 750 mil presos e um déficit que ultrapassa 300 mil vagas.

"Vários movimentos anti-prisionais e denúncias de familiares demonstram as possibilidades dos prejuízos irreversíveis no caso da expansão da covid-19 no sistema prisional", destaca Alves. "Na contramão das medidas que outros países adotaram, as recomendações do governo brasileiro, encabeçadas pelo ministro da Justiça e Segurança Pública [Sergio Moro], além de serem totalmente divorciadas da realidade dos presídios, atentam contra a integridade física, psicológica e material da população."

As políticas de Bolsonaro

Na opinião dos dois pesquisadores entrevistados pelo TAB, os recentes discursos do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia exemplificam ações de necropolítica na atuação do governo.

"Ao relativizar a gravidade da situação ou dizer que 'muitos vão morrer', está muito clara a política macabra e intencional contra a população mais vulnerável", critica Dina Alves. "A população racializada está jogada à própria sorte nestas declarações. Seja porque não tem sequer acesso ao sistema de saúde, seja porque não possui saneamento básico de higienização necessária de combate ao coronavírus."

"Quem pode se manter em isolamento social, em termos de estrutura de moradia e de acesso aos bens necessários para sobreviver? Quem terá renda para manter o lar? Quem não terá acesso a uma UTI, ou a um leito hospitalar, ou ainda, a um teste para covid-19?", questiona Edson Teles. "Nós sabemos quem -- e estes sujeitos são aqueles que a estrutura classista, racista e patriarcalista tem produzido ao longo de nossa história. Serão as mulheres, os negros, os indígenas, os mais pobres, entre outros segmentos sociais, que mais sofrerão o impacto de morte do vírus, como perda de emprego, suspensão de ganhos e salários."