QUERER E PODER

Isolar-se durante a pandemia virou posição política na era da negação, mas muitos sequer têm a chance

Arte/UOL

Entre as realidades de uma e de outra, há muitas outras situações em que quarentenar não é uma escolha: balconistas que trabalham em farmácias e supermercados, mães e pais de família que precisam ganhar o sustento na informalidade, gente que não tem opção de fazer home office porque não tem computador em casa nem conexão de banda larga. E há, ainda, quem pode ficar em casa mas não segue recomendação alguma de se isolar.

Para Daniela e Geovana, que entenderam a gravidade da pandemia, o isolamento social acontece mais ou menos assim:

As marcas da classe social se traduzem nos mais diversos aspectos da quarentena. Embora todos sejam afetados pela pandemia, os pobres serão os mais atingidos pela doença e suas consequências. A começar pelo isolamento: a necessidade de ficar em casa escancarou questões mais profundas sobre temas que variam desde a nossa relação com a ciência, com outros cidadãos, até o acesso à tecnologia no Brasil.

Geovana tem ajudado os filhos nas tarefas escolares realizadas online, já no começo da pandemia. A filha de Daniela, que estuda em escola pública, entretanto, só começou a ter aulas no formato a distância em 27 de abril, mais de um mês depois de decretado o isolamento social no estado de São Paulo. A família correu para improvisar a conexão de banda larga, mas segue sem computador em casa.

"O que a pandemia está fazendo é expor os níveis extremos de desigualdade, não só de renda, mas de raça, gênero e oportunidades. Portanto, a redução da desigualdade tem que estar no centro da resposta a essa pandemia, e às próximas", afirma o cientista político canadense Robert Muggah, um dos fundadores do Instituto Igarapé, com atuação no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e no Banco Mundial.

Se antes da pandemia o acesso ao digital já desempenhava um papel fundamental nas nossas rotinas, agora eles foram colocados à prova. Da interação social ao trabalho remoto, de serviços de delivery e consumo de entretenimento até estratégias de prevenção à doença, não é exagero dizer que todas as esferas do cotidiano passaram a ser mediadas pelo avanço tecnológico. A Covid-19 catalisa processos de automatização onde a presença humana não é mais necessária.

Na análise de Muggah, "enquanto a Amazon fatura US$ 11 mil por segundo e seu fundador Jeff Bezos lucrou US$ 24 bilhões, desde janeiro de 2020, com o aumento das vendas online, uma grande classe de trabalhadores está vendo seus empregos desaparecer, tendo em vista que o comércio migra para o online e se torna cada vez mais automatizado".

Ninguém da família de Geovana precisa se deslocar do condomínio -- eles só saem para fazer compras e buscar encomendas e mantimentos. O brechó já nasceu como e-commerce, e ela divide seu tempo entre o trabalho, as tarefas domésticas e a educação dos filhos.

O negacionismo se tornou um desafio extra no combate à Covid-19. Apesar de diversos estudos e exemplos empíricos terem comprovado a eficácia da quarentena no achatamento da curva de contágio, chefes de Estado, celebridades de ocasião e outras fontes supostamente preocupadas com a crise econômica seguem defendendo o fim da quarentena, ou o afrouxamento das regras de isolamento, para dar sustentação à economia. Poucos propõem um modelo alternativo: criticam, mas não sugerem nada para frear a pandemia.

O debate sobre o efeito do distanciamento no controle da doença altera a percepção popular e a adesão às medidas de prevenção propostas pelos órgãos internacionais de saúde. Países que impuseram controle rigoroso começaram a flexibilizar, mas voltaram atrás pelo aumento no número de casos. O Brasil segue descoordenado, a rede hospitalar colapsa em várias cidades, mas há muitos que seguem frequentando as ruas. "Até se sentirem pessoalmente atingidas, [as pessoas sentem que] não há problema", diz Schwarcz.

Para a psicóloga Giovana Del Prette, pós-doutora em psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), é difícil mapear os efeitos, que serão sentidos de forma diferente no âmbito coletivo e na esfera pessoal.

A reação de cada pessoa, afirma, depende principalmente da capacidade de se adaptar e se reinventar diante da extinção de velhas necessidades e o surgimento de novas. "Se todo o contexto voltar a ser como era, talvez tudo volte a ser como era antes", avalia Giovana. "Mas existe potencial para coisas muito saudáveis permanecerem depois. Depende se haverá espaço para isso ou se novas demandas vão se impor."

Lilia Schwarcz arrisca dizer que a pandemia de Covid-19, que colocou três bilhões de pessoas em quarentena mundo afora, marca em definitivo o fim do século 20. "Nós nos fiamos pela lógica dos calendários, e na verdade não é assim que os séculos passam. Eles passam a partir de momentos que de alguma maneira revelam as suas mazelas, suas finitudes, os seus limites", diz a historiadora. "Podemos dizer que esse vírus teve a capacidade de parar impérios, nações, que jamais imaginaríamos que iriam frear sua atividade frenética."

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