Nas mãos da máfia

Refugiados contam como funciona o tráfico de pessoas na Europa

Já são quase 2h em Atenas, capital da Grécia. A mochila está pronta, o check-in feito. A roupa - bermuda cargo, camisa pólo e tênis de marca, tudo novo - deixa Amin* impecável a caminho ao aeroporto. Suor na testa e música ao fundo, ele tenta controlar o nervosismo. Revela uma última dúvida para a viagem mais importante de sua vida: "Tiro ou deixo o piercing?". Após breve deliberação com um amigo, ele decide retirar a joia fake da orelha direita.

Amin caminha pela sala, se olha no espelho, troca de camiseta, uma, duas vezes, antes de voltar, em definitivo, à camisa pólo. "Você tem que andar mais tranquilo, relaxado. Você tem que pensar que é francês", afirma o companheiro que o hospeda em Atenas. Ele volta a praticar, com a calma possível e alguma classe no andar, os passos que em breve daria no embarque: check-in no scanner do QR code, olhares de seguranças, alfândega, despedidas (?) etc.

Esse zelo ao conferir os preparativos para uma viagem de avião poderia ser sobre um jovem francês vaidoso que, daqui a pouco, pegaria um voo de duas horas rumo a um país da União Europeia. Para essa pessoa, ter um cartão de embarque em mãos não custaria mais do que 50 euros em uma companhia de baixo custo. Só que a história é diferente. No mundo real de Amin, a passagem custou 3.500 euros (cerca de R$ 15 mil) na classe econômica. Ele não é francês: trata-se de um refugiado sírio, fugitivo da Guerra Civil naquele país, se passando por um turista europeu que volta para casa após férias na Grécia. Detalhe: até esse dia, Amin, nunca havia entrado em um aeroporto.

"Os traficantes (de pessoas) te dão um documento nacional de identidade, ou mesmo um passaporte, de acordo com as características físicas de cada pessoa", explica Amin. A semelhança entre o dono da cédula de identidade - muito provavelmente roubada - e o jovem sírio é espantosa. "São eles quem determinam se você parece com um italiano ou um espanhol. Para as pessoas com cabelo e pele claros, por exemplo, eles vendem documentação de pessoas suecas ou alemãs", completa.

A saga de Amin é uma das histórias que o TAB investigou durante meses em Atenas. O foco era conhecer pessoas e colher depoimentos de refugiados e imigrantes na capital grega, que virou o maior centro europeu de operação dos "smugglers", como são chamados esses traficantes de pessoas. Os nomes de todos os envolvidos foram alterados por motivos de segurança, mesma razão que impede a publicação de imagens dos entrevistados.

PIB DO TRÁFICO

A OIM (Organização Internacional para as Migrações) aponta que, em 2017, a atividade criminosa ligada ao tráfico de pessoas faturou aproximadamente US$ 35 bilhões (R$ 130 bilhões) no mundo. É mais que o PIB (Produto Interno Bruto) de países como Camarões (US$ 34,8 bilhões) e Paraguai (US$ 29,73 bilhões). Esse cenário ocorre justamente no momento no qual a política de fechamento de fronteiras ganhou espaço entre nações europeias.

Para ter uma ideia mais precisa do faturamento dessa máfia, ao passar pelo controle aeroportuário e, enfim, embarcar ao seu destino, Amin já havia gasto desde o fim de 2017, quando havia deixado a Síria, cerca de 8 mil euros. Chegou a tentar viver em Istambul, na Turquia. "Eu queria continuar estudando, mas a condição para os sírios ali é terrível", afirma. Restou a ele trabalhar 12 horas diárias, sem folgas, até juntar dinheiro para chegar ao território grego pelo norte, via Evros, o rio que divide os dois países. Na sequência, seguiu para Atenas. "Eu só queria continuar estudando até que as coisas se acalmassem em meu país", completa.

A Europa vive um momento tão complicado no que diz respeito ao tráfico de pessoas que, pela primeira vez na história, um grupo especializado foi criado para avaliar o poderio dessas organizações e pensar em novas medidas de segurança. Em fevereiro de 2016, formou-se o EMSC (sigla em inglês para Centro Europeu de Tráfico de Pessoas), financiado pela própria União Europeia, Europol (Serviço Europeu de Polícia) e ONGs que colaboram com informações.

A questão é que a Europa deu um tiro no próprio pé e gastou ainda mais recursos para cuidar das próprias feridas. O faturamento e fortalecimento dos smugglers ocorreu, justamente, em função de cinco episódios importantes da história recente, todos relacionados com a negativa em se criar um plano eficiente de acolhimento no continente que foi o berço da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e do Pacto de Genebra (do status de refugiado, em 1951).

1 - Em 20 de março de 2016, um acordo entre União Europeia e Turquia, chamado de Pacto da Vergonha por ativistas de direitos humanos, despejou 6 bilhões de euros em Ancara como forma de conter o fluxo migratório, principalmente o de sírios e afegãos. A Turquia seria o "porto seguro" desses refugiados/solicitantes de asilo. Só que a história não é bem assim. Os botes continuam a chegar às ilhas gregas de Lesbos, Chios e Samos, dentre outras. O movimento só fez com que os lugares nos botes fossem ainda mais caros e os riscos, maiores.

2 - No mesmo período, a rota dos Bálcãs, principal ponto de passagem dos refugiados que chegavam à Europa via Grécia, foi totalmente fechada. Países como Macedônia, Albânia, Sérvia e Hungria construíram muros e fortificações, que impuseram um nível de controle que não deixou aos refugiados e imigrantes outra opção que não a de pedir asilo em território grego ou, claro, recorrer aos smugglers.

3 - Em fevereiro de 2017, Itália e Líbia firmaram um acordo de 200 milhões de euros, referendado pela União Europeia, no qual os líbios se comprometeram a controlar a rota mais mortal do mundo: a dos botes que partem abarrotados de imigrantes subsaarianos em direção à península italiana. Desde a queda do ditador Muammar Gaddafi, em agosto de 2011, a Líbia é um território de conflitos, tomado por milícias, gangues rivais e que, em pleno século 21, promove leilões de imigrantes africanos. A Guarda Costeira líbia tornou-se a "xerife" do Mediterrâneo. Mas essa "ofensiva" não atrapalhou os planos da máfia: Marrocos assumiu o posto de escape, direcionando os botes para a Espanha via Estreito de Gibraltar.

4 - Até hoje o Parlamento Europeu não chegou a um consenso sobre a revisão do Regulamento de Dublin. Resumidamente: para requerer a proteção internacional via Convenção de Genebra (1951), o refugiado deve pedir asilo em seu primeiro país de entrada em território europeu. A questão é que se viu um aumento da clandestinidade, já que ninguém quer ter suas impressões digitais recolhidas ao banco de dados até chegar ao país de destino escolhido ou àquele onde já vivem parentes. Esse quadro promove situações desumanas, sobretudo na Grécia e na Itália, portas de entrada da Europa e onde chegam os deportados. E, obviamente, separa famílias, que vão apelar às máfias para se reunirem outra vez.

5 - Por último, e não menos importante, o programa de realocação de refugiados assinado em 2015 pela União Europeia, que se comprometeu com a integração de 160 mil pessoas provenientes da Síria e da Eritreia - casos de solicitantes de países como Afeganistão e Iraque foram analisados separadamente. Em dois anos, no entanto, esse programa foi encerrado com um retumbante fracasso: apenas 27.695 refugiados fora desse dois países ganharam uma passagem e foram recebidos num centro de acolhimento.

Com o fim desse acordo, milhares de refugiados se viram sem qualquer perspectiva de integração em duas sociedades em crise econômica, onde conseguir um emprego é uma façanha mesmo para gregos e italianos. É o caso de Khaled, personagem do minidocumentário abaixo, que não conseguiu entrar no programa de realocação. Resolveu arriscar, juntou todo o dinheiro que tinha e conseguiu, ilegalmente, chegar à Espanha.

A Grécia tem em seu território cerca de 60 mil solicitantes de asilo. A maioria ainda é de sírios - que chegaram depois do acordo UE-Turquia e não foram inseridos no programa de realocação -, afegãos e iranianos, além de imigrantes da África subsaariana. Atenas é um centro de migrantes basicamente por dois motivos: o alto número de escolas e edifícios ocupados que dão um lar - ao menos provisório - para cerca de três mil pessoas, e as ONGs e voluntários independentes que atuam para suprir as diversas lacunas do sistema de acolhimento grego.

A CAPITAL DOS SMUGGLERS

QUEM É TRAFICANTE?

- Qachakbar sok De? (pashto)
- Qachakbar Ke ast? (dari /farsi)
- Fi ahad mohareb hon? (árabe)

Na tradução para português: "alguém aqui é traficante?".

"Você pergunta isso e logo alguém se aproxima perguntando para onde você quer viajar", conta Roman*, um jovem afegão que, cansado da longa espera por entrevistas para o seu pedido de asilo (pelo menos oito meses), foi até a praça Viktoria, no centro de Atenas, buscar um modo de viajar ilegalmente a outro país europeu.

Viktoria é o reduto dos traficantes da ala "pashto/dari/farsi/urdu", ou seja, as línguas faladas no Afeganistão, Irã e Paquistão. Os bares e cafeterias, a grama bem aparada, onde crianças passam a tarde brincando, dão um ar falso de bosque familiar.

Os smugglers são pessoas perigosas. O governo e a polícia estão conectados com eles. Temos que ter medo dessas pessoas. Eles conhecem muita gente, falam grego, já estão aqui trabalhando há muito tempo. É perigoso para qualquer refugiado. Mas não temos outra opção, precisamos buscar um futuro melhor

Roman, refugiado afegão em Atenas

"A polícia não incomoda esses caras", diz Roman. Não incomoda nem os traficantes, tampouco a rede de prostituição homossexual que também atua no local e envolve jovens refugiados. A saída do metrô favorece ainda mais a chegada e concentração de imigrantes. "A coisa aqui é separada. Você não vai tratar de algo assim, delicado, com alguém que não fala a sua língua", completa o rapaz.

Loiro e com domínio de inglês, o que facilita na hora de passar por qualquer tipo de controle policial, Roman conseguiu uma "façanha" entre os refugiados numa negociação com os smugglers: arrumou uma cédula de identidade alemã supostamente original e negociou seu escape via aérea por 1.200 euros.

"São refugiados como eu que trabalham para os chefes do bando (veja relatos abaixo). Te oferecem lugares, preços e sobretudo os contatos. É o primeiro passo da negociação. É tudo muito fácil. Não existe escritório, você negocia ao ar livre". Na sequência, como mostra o minidoc deste TAB, a conversa segue por redes sociais e aplicativos de mensagem (WhatsApp, Messenger e IMO) até a emissão da passagem. Por fim, chega o grupo que se encarrega de levar os imigrantes ao aeroporto.

Mohamed* conta a mesma história de Roman. A diferença é que, quando precisou organizar a viagem do irmão, ambos sírios, sabia que tinha que ir a outro ponto de Atenas: o bairro de Omonia. "Basta eu me encontrar com qualquer pessoa árabe, e perguntar na minha língua por algum traficante, que me dão vários [números de] telefones", afirma.

"Os encontros e reuniões com os traficantes, os lugares e a hora, é decisão deles, mas não tem nada a ver com cinema, quero dizer, não é às escondidas, nem de noite, nem em lugares solitários. É em plena luz do dia, na rua mesmo, em cafeterias", explica. "É algo simples, até mesmo para não chamar muito a atenção, é como se você estivesse com algum familiar ou amigo tomando um café ou um chá", completa.

Os valores que esses caras pedem para essas viagem de desespero é à custa de muito sofrimento. São cifras manchadas de sangue, por mortes no mar dos botes e lanchas. Muitas vezes sem uma pessoa que saiba conduzir, guiar esses botes. São a essas coisas que temos que nos submeter

Mohamed, refugiado sírio em Atenas

É nesse momento que se iniciam as negociações. "O cara tinha uma pasta no celular com um monte de fotos de documentos. Ele olhava para cara do meu irmão, e com o celular embaixo da mesa, já buscava quem se parecia com ele", afirma. "Eles vão fazer de tudo para tirar o máximo possível de dinheiro de você", completa. O preço pedido pela viagem ilegal foi de 4 mil euros. Tudo depende do destino de cada um.

"Reino Unido é o mais caro. Um voo e um documento para lá te pode custar até uns 15 mil euros. Ele me disse que não tinha problema, que me levava para lá se eu quisesse. Mas não temos esse dinheiro", explica. "Os traficantes, inclusive, trabalham com passaportes originais para os que têm traços árabes ou subsaarianos. São passaportes de pessoas com [permissão de] residência ou visto legal em países estrangeiros", detalha Mohamed, com o olhar de quem sabe que está alimentando uma organização criminosa, mas que não vê outra saída diante do desespero do fechamento das fronteiras e da perspectiva de um futuro sombrio.

E A VIDA?

Em setembro de 2018, uma lancha com 19 imigrantes marroquinos partiu de Tetuan rumo ao litoral espanhol. A Marinha Real do Marrocos a interceptou e atirou diante da negativa do piloto em desacelerar. Três feridos e uma vida perdida: a jovem Hayat Belkacem, 19, que havia prometido aos familiares mandar dinheiro com o trabalho que arrumaria na Espanha. Hayat, em árabe, significa vida.

A imprensa espanhola publicou ainda em dezembro de 2018 que, com o consentimento de Bruxelas - cidade sede do Parlamento Europeu -, Marrocos recebeu 140 milhões de euros para conter esse fluxo de imigrantes. Passar o bastão para outros, sem qualquer tipo de plano de acolhimento, não resolve os dois principais problemas das crises migratórias: a quantidade de vidas que se perde e o aliciamento das máfias a jovens refugiados que, com fome e sem perspectivas, aceitam guiar botes mesmo sem terem qualquer treinamento.

O nível de organização [dos mafiosos em solo europeu], que antes era baixo, fez dos smugglers um mercado em separado. Eles não estão mais nos barcos: colocam os imigrantes no lugar para correr o risco de prisão. Como os barcos são destruídos após a chegada à Europa, eles tampouco se preocupam com a qualidade

Thomas Spijkerboer, professor de imigração da Universidade de Vrije, em Amsterdã (HOL)

"O resultado das políticas europeias têm tido o efeito inverso do que se propunha inicialmente, ou seja, um prato cheio para o serviço dos smugglers, com preços mais caros e riscos muito maiores", escreve o professor Thomas Spijkerboer em artigo para o jornal britânico "The Guardian". Ele lidera um estudo inédito que catalogou mortes no contexto migratório europeu desde 1993 até 5 de maio de 2018. Segundo o trabalho, 34.361 pessoas perderam a vida viajando de forma ilegal.

Mas esse número já está desatualizado não só pelos riscos das rotas, mas principalmente pelo fato de que, novamente com o intuito de conter a chegada de imigrantes e refugiados, os governos europeus fecharam seus portos ? Malta e Itália não autorizam mais a chegada de navios de resgate ? e dificultam ao máximo a concessão de licenças para as ONGs de salvamento marítimo atuarem no Mediterrâneo. Depois de quase dois meses sem voluntários em alto mar, a alemã Sea Eye, junto com a ONG espanhola Proem-Aid, zarparam há menos de duas semanas. Muito pouco para o enorme campo de busca.

Um acordo está sendo discutido por Alemanha e França para que haja uma alternância de abertura dos portos e, assim, seja criado um equilíbrio de desembarques no continente europeu. O consenso, porém, ainda não foi estabelecido.

Document
Mortes na crise migratória Nos primeiros 38 dias de 2019, já morreram 369 pessoas - quase 10 mortes por dia
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Fonte: Missing Migrants Project

REFUGIADO E CONDENADO

"Eu cometi um erro e paguei por ele".

Assim resume a sua vida Samuel, um imigrante argelino que vive em Atenas. Inteligente, tem francês, inglês, árabe, berbere (idioma do norte da África) e grego como línguas fluentes em seu currículo. Só que o último idioma ele aprendeu porque passou dois anos e meio detido na ilha de Kos, no mar Egeu. Condenação: tráfico internacional de pessoas.

Ainda com 19 anos, Samuel deixou sua terra natal. "Eu queria fugir do passado, dos meus problemas pessoais, ter uma nova vida, estável, um futuro, porque onde eu vivia não tinha trabalho para ninguém", afirma. Em Istambul, "tinha apenas 20 euros no bolso". Viveu por semanas pelas ruas da principal cidade turca sem comer até conhecer um rapaz que lhe ofereceu uma carona para Izmir, principal rota de atuação dos smugglers rumo à Grécia.

"Continuei dormindo nas ruas. Estava com uma alergia muito forte, mas o sonho de chegar à Europa era mais forte do que qualquer coisa", relembra, complementando que "todo dia os traficantes tiravam das ruas argelinos, marroquinos e tunisianos com a tentadora proposta de ir grátis à Europa". Só que o risco era grande.

AS ROTAS DO TRÁFICO Refugiados e imigrantes revelam os caminhos usados para tentar escapar em definitivo da guerra
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  • Síria

    São diversos os pontos de passagem para o lado turco, ainda em solo asiático, mas às portas da Europa. "Nos cobraram US$ 800. Há um ano fizemos esse caminho pelas montanhas", conta Amin. "Eles (smugglers) se encarregam de pagarem os policiais turcos. Caminhamos por cerca de sete horas até chegar a uma aldeia turca, onde tinha alguém nos esperando em um carro".

  • Dentro da Turquia

    Segue o depoimento de Amin: "Esse homem no carro te cobra aproximadamente US$ 150 para te levar até Istambul, Ancara, onde você quiser". Tudo em dinheiro vivo, claro. E com riscos: "nos deixaram esperando numa garagem logo depois. E desapareceram. Contatei um amigo e consegui comprar uma passagem até Istambul". Existe também uma outra possibilidade, como a mãe de Amin, que pagou US$ 2.100 por não poder caminhar pelas montanhas - preço da Síria para ir direto até uma cidade turca a ser escolhida.

  • Litoral da Turquia

    Esmirna, Bodrum e Dikili são os pontos de partida do litoral turco para as ilhas gregas. "Custa entre US$ 1.500 e US$ 2.000 (os botes)", conta Mohamed. "Também existe a opção de iates (para ir infiltrado). Te dão documentos búlgaros ou gregos, e também pode chegar até as ilhas por US$ 1.700 a 2.200", explica. "Mas esse preço sempre varia".

  • Ilhas gregas

    Saindo de Lesbos e Chios, as duas principais portas de entrada pelo mar Egeu, a chegada ao continente (porto de Pireus) tem um valor de cerca de US$ 220 pelo percurso. Os refugiados presos nas ilhas não tem permissão de chegada ao continente - devem esperar o seu processo de asilo em campos oficiais, o que facilita a atuação dos smugglers.

  • Evros

    O rio que divide Grécia e Turquia, antigo ponto de conflito entre os dois países (Guerra Greco-Turca 1919-22) também é uma rota bastante utilizada por imigrantes que temem o registro e detenção nas ilhas gregas. "Atravessamos um rio largo de bote, um percurso rápido", recorda Amin. "Bem perto há uma estrada, e um carro esperando para te levar".

  • Evros

    Se a polícia grega detém o veículo e o motorista escapa, como ocorreu com o personagem desta história, te devolvem automaticamente ao território grego. "Não importa se você é sírio, iraquiano, palestino", recorda. "Vão todos com os rostos tapados para que não se possa reconhecê-los. Eles não te batem, nem te roubam o dinheiro, mas apreendem tudo o que possa armazenar fotos, ou informação. Alguns amigos disseram que jogaram os celulares deles no rio. O meu nunca devolveram. Perguntei e não responderam nada".

  • Patras

    É o ponto mais "hollywoodiano" da saga dos refugiados em território grego. "Existem três fábricas, todas elas controladas por traficantes. Ninguém pode entrar nesses lugares sem permissão. Você precisa pagar, ou mesmo fazer um depósito de mil euros, para estar nesses lugares e esperar", conta Roman. Nesse porto, eles se escondem em porta-malas, em rodas de caminhão, qualquer lugar onde possam embarcar nos ferries - barcos - rumo ao porto de Bari, na Itália.

  • Patras

    "A polícia tem feito muitas operações por ali, então o "passageiro" tem que se mover por sua própria conta. Eles te colocam dentro do caminhão, e a sorte é sua. Depende da sua sorte". Roman foi pego pela polícia e, depois de seis tentativas frustradas, voltou a Atenas para negociar seu voo ilegal. "Eu bloqueei o dinheiro e o recuperei. É uma segurança que eles te dão, porque sabem que precisam da gente também".

  • Líbia - Itália

    Nas imediações da capital líbia, Trípoli, está a rota mais mortífera - 2.832 pessoas morreram em 2018 tentando cruzá-la. Ela não é mais utilizada após o acordo de cooperação entre os dois países e pelo fechamento dos portos estabelecido pelo governo italiano, impedindo as embarcações da ONGs de transportarem os imigrantes à costa do país. "Eu paguei US$ 1.000 e quase morri. Tinha tanta gente dentro, todos temiam voltar para a Líbia", recorda Abunor*, um imigrante sudanês que hoje vive em Roma.

  • Marrocos - Espanha

    Partindo de Tanger ou Nador, essa é a rota marítima do Mediterrâneo mais utilizada atualmente. Os preços subiram: reportagem do diário El Mundo, da Espanha, que percorreu o trecho, aponta que os traficantes passaram a cobrar de US$ 560 a US$ 1.100 o espaço no bote.

  • Ventimiglia

    O ponto de intersecção entre Itália e França é o principal ponto de passagens de milhares de subsaarianos e imigrantes do norte da África que buscam uma vida melhor não apenas no país vizinho, como também no Reino Unido. A questão é que as estações de trem em solo francês estão controladas - a reportagem presenciou no meio de 2018, na estação de Menton, quatro policiais entrarem (dois no primeiro vagão, e outros dois no último) e tirarem do trem dois imigrantes sudaneses, que foram levados ao outro lado da fronteira. Esconder-se no teto das locomotivas é perigoso - há diversos relatos de mortes.

  • Ventimiglia

    O caminho pelos Alpes e pelo rio, além de exigir muito fisicamente (recentemente um imigrante foi encontrado morto por hipotermia perto do vilarejo de Val-des-Près), também está muito controlado pela polícia francesa. "A única solução que encontramos foi pagar US$ 220 para um traficante passar a gente para o outro lado de carro. É um trecho super curto, uns poucos quilômetros. Logo eu segui viagem de trem desde Nice e cheguei a Paris", conta Hadum*, um imigrante afegão, que pediu asilo em solo francês.

O bilhete "sem riscos" para a viagem custava 3 mil euros. "Mas como eu poderia pagar isso se eu não tinha um euro no bolso?", lembra. Acabou aceitando a proposta que lhe faria viver os piores pesadelos de sua vida. "Entrei no barco sem ter nenhuma ideia do que fazer".

"Apenas me disseram que se eu girasse (o leme) para a direita, o barco viraria para a esquerda, e vice-versa. Gravei essa informação na cabeça e, junto com a ideia de dormir nas ruas, a falta de dinheiro, o cansaço, minha alergia, juntei tudo para me dar força e seguir o meu destino. O traficante me apontou uma luz e disse que eu deveria seguir naquela direção", afirma.

Era madrugada. O mar estava agitado. Samuel se perdeu no caminho à ilha grega de Rodos e acabou chegando a outra, Kalimnos, onde todos foram detidos. Começaria ali o seu longo calvário de arrependimento e sonhos interrompidos. "Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei guiar essa lancha", lamenta.

CICLO SE FECHA

Mohammad* pede o segundo freddo expresso, o café gelado típico grego, e acende o quarto cigarro. Tudo isso em menos de 15 minutos. Tinha dificuldade em olhar nos olhos e um cansaço evidente de quem se vê na velha sinuca de bico: para sustentar os seis irmãos e toda a família na Síria, juntou-se ao bando. Virou um smuggler atuante em Atenas e nas ilhas.

As ilhas gregas, aliás, foram seu último ponto de trabalho antes daquela conversa - tinha trazido outros refugiados, como ele, ao continente para seguir viagem a outro país. "A Grécia é um país onde todos desejam ficar, mas todos acabam saindo porque não conseguem ver nenhum futuro", afirma.

A possibilidade de dar conforto a família num país em guerra e os dois mil euros mensais que ganha não lhe trouxeram paz. Aliás, ele teria que enviar esse valor em poucos dias ao país árabe. "Para que meu irmão não seja recrutado pelo exército (do ainda presidente Bashar al-Assad)", explica. Trabalhando para a máfia para pagar outra? máfia. "Eu olho para o espelho e já não me reconheço. O Mohammad já não existe", afirma.

Há três anos em Atenas, ele já tentou a vida em outros países, mas acabou voltando, porque não conseguiu encontrar nada que pudesse seguir ajudando a numerosa família. "Aqui eu não tenho amigos, eu não confio em ninguém", diz, com os olhos mareados, e sempre desconfiado que alguém possa escutar a conversa confidencial. "Atenas é o epicentro, é a capital dos smugglers. Não é a Itália, não é a Espanha. É aqui", afirma.

"Minha função é buscar as pessoas e fazer com que elas passem no controle. Não negocio preço, não cobro, nada. Minha função é fazer com que elas consigam entrar no avião (seja para outro país, ou das ilhas para o continente grego)", explica. Entre outras coisas, é distrair os fiscais, pagar algum suborno, e dar dicas por onde ir, o que fazer, principalmente para aqueles que nunca estiveram num aeroporto na vida.

Ou seja, exatamente a pessoa que Amin, o personagem de início deste TAB, esperava, ansioso, na casa do amigo, enquanto praticava o scanner do cartão de embarque, e decidia se viajaria ou não com o piercing fake na orelha - que lhe deixaria mais parecido com um turista francês. Mohammad finaliza a entrevista com uma frase, que, seguramente, também vale para o conterrâneo Amin: "Não me sinto nada orgulhoso do que eu faço".

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