Uma jornada perigosa Mohammad fugiu da guerra na Síria. Acabou endividando sua família

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Uma jornada perigosa

A guerra entrou no caminho e se recusa a sair

Mohammad queria apenas trabalhar para ajudar sua família, mas foi convocado pelo Exército. Pensou num plano para salvar a todos. Deu errado. Essa história real conclui a trilogia em HQ publicada pelo TAB sobre refugiados sírios.

Produção PositiveNegatives

Design Denise Saito

Conheça Mohammad

Eles ainda estão na Síria com meus irmãos e irmãs mais novos. Meu pai é inválido.

Há três anos que não os vejo.

Meu irmão e eu trabalhávamos como operários para sustentar a família. Não tínhamos economias. Eu apoiava os protestos, mas eles dificultaram a vida desde o início.

Quando a guerra começa, o trabalho desaparece. E não dá para comer ideais.

Eu fui convocado para o exército. Mas não queria lutar! Como cuidaria da minha família se fosse um cadáver no campo de batalha? Por duas vezes as forças de segurança vieram me procurar. Na primeira vez, eu não estava. Na segunda, me escondi debaixo da cama. Eu sabia que teria que fugir de casa.

Eu me despedi da minha família e parti para Erbil, no Curdistão iraquiano, à procura de trabalho. Eu prometi enviar dinheiro assim que pudesse.

Erbil é seca, rochosa e pobre. Eu encontrei trabalho braçal de novo - longas horas e de quebrar as costas. Meu corpo permaneceu em agonia por dois anos. Mas conseguia enviar dinheiro para minha família.

Eu aluguei um quarto juntamente com outro sírio. Toda noite nós assistíamos às notícias de casa. E a situação apenas piorava e piorava.

Toda vez que mostravam o resultado de uma explosão, meus olhos conferiam os rostos dos mortos e feridos, pensando: será aquele meu irmão? Meu pai? Minha mãe?

Chegando à Europa

Com o tempo, a turbulência chegou a Erbil. O Estado Islâmico estava todo dia na televisão.

Quando um carro-bomba explodiu no lado de fora do consulado americano, vi para onde o vento estava soprando. Assim, parti para Istambul.

Eu não tinha autorização para trabalhar na Turquia. Todo dia mais sírios chegavam e se sentiam menos bem-vindos. Mulheres e crianças eram forçadas a mendigar nas ruas.

Eu telefonei para casa e contei ao meu pai sobre a situação. Ele ouviu atentamente e então me disse para deixar por conta dele.

Quando desliguei o telefone, senti muita vergonha. Eu sabia que meu pai teria que procurar um agiota. Eu causei o endividamento da minha família.

Na minha mente, fiz uma promessa e juramento. Que quando chegasse à Europa, eu trabalharia dia e noite, até a dívida ser quitada cem vezes.

Minha travessia foi abençoada. O barco era velho, mas em condições de navegar. Ele levou apenas duas horas e meia para cruzar de Izmir à Grécia. Meu coração se encheu de otimismo. Achei que a sorte finalmente tinha pousado no meu ombro.

Minha meta era chegar à Noruega. Eu teria que evitar as autoridades ao longo de toda a Europa.

Eu tinha um amigo em Oslo que poderia me arrumar trabalho. Eu estava viajando junto de outros três sujeitos. Nós saímos perguntando e encontramos um caminhoneiro que concordou em nos tirar da Grécia, mas por um alto preço.

Então adormeci. Tive muitos sonhos estranhos e agitados.

Não vi nada da Grécia, exceto o interior de um caminhão. Quando o caminhão deu a partida, eu telefonei para o meu amigo e disse...

Eu acordei quando o caminhão parou. A porta se abriu. Era uma noite fria do lado de fora. Nós estávamos estacionados no acostamento de uma rodovia.

O motorista nos apontou a direção que deveríamos seguir. Na sequência, partiu.

Liberdade

Durante vários dias, traçamos um caminho pelo Leste Europeu. Nós caminhamos muitos quilômetros para economizar dinheiro, com frequência à beira de ruas movimentadas.

Tentávamos não chamar atenção, especialmente da polícia. Nos separávamos nos transportes públicos, nos escondendo atrás de jornais que não conseguíamos entender, na esperança de nos misturarmos.

Nos orientávamos pelo GPS em nossos telefones. À noite, armávamos duas pequenas tendas em um lugar discreto, depois acordávamos e partíamos antes do amanhecer.

Nós cruzávamos fronteiras a pé, caminhando por campos e florestas. A paisagem era verde e exuberante.

Pássaros cantavam. Não havia armas, bombas, nem morte ou horror. Eu estava animado...

O mundo nunca havia parecido tão grande. Nem tão cheio de possibilidades.

A polícia nos pegou na Hungria. Eles me interrogaram: Nome? Para onde estava indo? Qual era minha intenção? Eles pareciam furiosos...

Quando não gostavam das respostas, me batiam com varas. Eu aceitava os golpes. Apenas implorei para que não colhessem minhas digitais.

Eles não deram ouvidos. Escanearam meus dedos, depois me jogaram em uma cela...

...e duas semanas depois, me jogaram na rua.

O fim da jornada

Na Hungria, eles ergueram uma cerca de arame farpado contra os refugiados, com mais de 150 quilômetros de extensão. O primeiro-ministro disse que a Hungria é para os húngaros, e a Europa deve permanecer cristã.

Eu voltei à estrada com um peso no estômago... meu destino estava selado.

E a polícia me trouxe a um centro de refugiados.

Eles são gentis comigo aqui. O que torna tudo pior. Pois sei que logo - algum dia - serei deportado para a Hungria.

Nesta tarde telefonei para o meu pai. Ele ficou tão empolgado ao ouvir minha voz. Ele não entendia que tinha fracassado com ele. Que tinha fracassado com todos eles.

Eu chorei quando desliguei o telefone.

Minha família está presa em uma zona de guerra. E endividada, por minha causa.

  • Produção PositiveNegatives
  • Direção Benjamin Dix
  • Ilustrações Lindsay Pollock
  • Financiado por Norwegian People's Aid

Mohammad ainda aguarda ansiosamente uma decisão que, pelo Acordo de Dublin, poderá fazer com que ele seja enviado de volta à Hungria.

Esta reportagem também contou com apoio de:

George El Khouri Andolfato, tradução.

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