Puxou quem?

A insegurança dos pais só aumenta numa época em que sobram teorias sobre como criar os filhos

O casal Cibele e Christian Oliveira, de Barueri (SP), nunca tinha ido a uma apresentação de música clássica. Quem mudou essa história foi a filha deles, Helena, 9, que subiu ao palco da Sala São Paulo para, como integrante do coro infantil da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), cantar diante de 4.500 pessoas em três apresentações. “Ela se inscreveu no coral da escola e depois avisou a gente. Viram que ela era afinada e encaminharam para a Osesp. Tudo foi iniciativa dela, e a gente apoiou”, relata a mãe.

O exemplo mostra como alguma autonomia pode ajudar na formação de uma identidade singular, que muitas vezes acaba sendo totalmente diferente do perfil dos pais. Em uma época repleta de manuais e receitas para educar, os pais buscam cada vez mais especialistas para não errar. O problema é que não há uma fórmula ideal para essa missão. “Hoje em dia, os pais leem teoria pedagógica e sabem até jargão da área, mas muitas vezes essa informação acumulada aumenta ainda mais as dúvidas. Falta cultivar a intuição e espaços para trocar experiências”, afirma Bruna Mutarelli, educadora e sócia da casa Ubá, local de atividades e aprendizagem de crianças até dez anos.

A insegurança também pode ser reflexo de casais cada vez mais atarefados e isolados. “Os pais estão mais sozinhos, conectados virtualmente a muito mais pessoas, mas de um jeito menos coletivo. São poucos os lugares públicos de encontro, como praças ou mesmo as calçadas onde as pessoas se encontravam e ajudavam a cuidar das crianças daquele pedaço”, resume Patrícia Grinfeld, psicóloga de relação familiar e parental da rede profissionais Ninguém Cresce Sozinho. “Hoje, andamos com o vidro dos carros fechados, em apartamentos que nem sempre sabemos quem é o vizinho ao lado, correndo contra o relógio. Neste modelo social, com quem os pais podem contar?”, pergunta.

Autonomia já

As pessoas têm opinião para tudo - comida, ideologia, religião, futebol, novela etc. Já as famílias têm rotinas, valores e limitações de todo tipo. Como é possível promover a liberdade de escolha das crianças dentro de mundos pré-moldados em que os pais vivem? “Autonomia não se dá. É a pessoa que conquista e não tem volta”, sintetiza Cristiane Moscou, professora que é mãe de Dorah Madiba, 6. “Ela nasceu gostando de tudo o que é oriental, adora comida japonesa e desenhos como o Pokémon. Isso é dela. Eu não participo, mas permito que ela desenvolva. Mas também ensino que ela tem uma identidade negra para ela estar preparada para encarar nossa sociedade”, conta Cristiane, que gosta de ir a shows de rap e leva sempre a filha.

Outra mãe que enfrenta os dilemas de dar autonomia ao filho é Tina Simi. “Eu sou contra o consumismo, e meu filho é consumista. Mas, de tanto conversar sobre o assunto, às vezes eu vejo ele repetindo meu discurso para outras pessoas. Isso dá uma dorzinha no coração, mas eu sou o que sou, e esse é um valor meu. Mas tenho de me controlar ao máximo para que ele desenvolva suas próprias ideias e opiniões”, confessa a mãe, que estudou letras na USP (Universidade de São Paulo) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), se define como “do povo de Humanas” e cria um filho que adora matemática.

Ela tenta controlar o apreço de Jonathan, 9, por games, streaming de vídeos e televisão, preferências comuns entre os nativos digitais. A justificativa é não deixá-lo sair da tutela dos pais para cair no colo da indústria do entretenimento. “Teve uma época que nem televisão a gente tinha em casa. Foi um inferno para ele. Hoje temos Netflix, que é o menos ruim porque evita a propaganda. Deixo ficar [assistindo] duas horas por dia”, conta.

INFÂNCIA NO DIVÃ

O pai-herói e a supermãe

Os pais ensinam mais os filhos pela dinâmica das relações do que com lições de moral, e a identidade familiar acaba sendo assimilada nessa rotina. “Se aprende mais com exemplos práticos do que com regras ditadas. As opiniões dos pais vão se manifestar de forma direta ou indireta. O dia-a-dia da casa passa muitos desses valores, coerências e incoerências. E as crianças são esponjas dessa convivência”, afirma o psicoterapeuta e educador Leo Fraiman.

E não adianta bancar a mãe protetora ou o pai super-herói porque isso também não funciona. “Será que o que meu filho precisa é ‘como eu gostaria que meus pais tivessem sido comigo’? Para ser esse ‘super-herói’ é preciso mentir, esconder fraquezas e camuflar emoções”, argumenta Paula Armond, consultora em educação.

A transmissão familiar dá à criança senso de pertencimento àquele grupo. Ela só é ruim quando não há flexibilidade. “Muitas coisas passam de pais para filho sem que isso seja um problema. Mas, se as coisas são impostas de um jeito inquestionável, sem deixar nenhuma brecha para que o desejo da criança apareça, certamente ela se prejudicará de algum modo, pois temos aí uma submissão, que aliena e atrapalha o desenvolvimento”, opina Grinfeld.

Pais para quê?

O modelo tradicional de família vem sendo desmontado desde a década de 1960 com o surgimento dos anticoncepcionais e a aprovação de leis de divórcio. Antes, não havia grandes dilemas existenciais na criação dos filhos. “Daí em diante, especialistas de todas as áreas foram convocados para entrar na vida privada das famílias. O saber dos especialistas, difundido inclusive pela mídia, se tornou um saber absoluto a ser seguido pelas famílias. Diante de um saber que vem do outro (às vezes, imperativo), que pode até fazer sentido na teoria mas não na prática, muitos pais acabam ficando inseguros”, afirma Grinfeld.

Um dos livros mais iconoclastas nesse assunto foi escrito em 2016 pelo casal de antropólogos Robert e Sarah Levine, ambos da Universidade de Harvard (EUA): “Do Parents Matter?” (“Os Pais Realmente Importam?”, em tradução livre para o português). A conclusão básica é que os pais não são tão essenciais quanto pensam. Eles cumprem papéis de patrocinadores e protetores, mas nem tudo que eles fazem será parte da psicologia da criança.

O casal estudou relação entre pais e filhos em áreas da África, Ásia e América Latina, comparando com a criação nos Estados Unidos e Europa e mostrando que o mundo é um laboratório gigante do desenvolvimento humano. Sempre foi. Eles citam tribos africanas em que a mãe não pode olhar diretamente para o olho da criança, e nem por isso as crianças viraram adultos sem boas relações familiares e sociais. Para os autores, educar é mais uma arte que uma ciência e encorajam os pais a serem mais céticos e menos esquemáticos quando escutam as instruções e dicas dos tais especialistas. E convidam os pais a relaxarem: deixem as crianças serem elas mesmas.

Deixa a criança brincar

Há pais que escolhem escolas maternais trilíngues acreditando que estão garantindo o futuro dos bebês no mercado de trabalho. Será que eles sabem o que os filhos vão precisar daqui a 20 anos? “Os pais não têm esse controle. Acham que devem dar muitos estímulos para achar um talento da criança e investir nele. É importante o ócio. Sobrecarregadas, elas roem unha e ficam ansiosas como adultos”, sentencia Mutarelli.

Para Fraiman, não dá para medir o tamanho da influência dos pais. “A influência percorre muitos caminhos inconscientes, não-verbais, como os pais se vestem, por exemplo”, afirma. Também não adianta tentar moldar o temperamento das crianças. “Antes, acreditava-se que a formação da personalidade terminava na infância. Já, hoje em dia, se sabe que a plasticidade cerebral vai até a vida adulta. Nosso cérebro muda até o último dia de vida”, argumenta. O psicoterapeuta acredita que os pais devem buscar se conhecer para ter segurança na educação das crianças. “Só o auto-conhecimento ajuda a escolher as regras, valores para oferecer uma coerência e um senso de familiaridade minimamente organizado.”

Fraiman aponta a terceirização como uma medida equivocada dos pais. “No consultório, vejo as famílias que delegam para as escolas ou para os avôs as responsabilidades educação, horários e outras necessidades básicas. Lavar as mãos sobre a criação costuma sair muito caro, financeiramente e emocionalmente. A sensação de abandono, de não ser visto e de não ter real valor para os pais pode ser devastador para o espectro emocional da criança.” Talita Oliveira, educadora e diretora da Associação de Educação Montessoriana, concorda com ele. “Essa terceirização é prejudicial para a formação, principalmente em relação às habilidades e competências socioemocionais”, completa.

Com voz e sem birra

Um consenso entre educadores e psicólogos é a necessidade de dar voz às crianças. Mas isso está bem longe da ideia de que a família é uma unidade democrática. Afinal, cabe aos pais a palavra final sobre assuntos que exigem a maturidade ausente aos outros habitantes da casa, como finanças (principalmente), educação, saúde, alimentação, horários e vestimenta, entre outros. Há muito espaço para acordos e combinações, mas nada de birra. Aliás, dar opções para as crianças é uma das formas de evitar horas de choro e gritaria no chão, segundo Alan Kazdin, diretor do Centro de Cuidados Parentais da Universidade de Yale (EUA). Levando em conta pesquisas da instituição, a sensação de que está escolhendo entre alternativas diminui a teimosia infantil.

“Tem criança que chega aqui e pergunta: ‘o que eu tenho que fazer?’ São tantas atividades que os pais determinavam, que as crianças ficam sem vontades próprias, nem têm ideias de brincadeiras”, conta Lilia Standerski, sócia da casa Ubá, espaço de jogos e aprendizagem.

Isso é bem diferente com Cristiane e sua filha, Dorah. “Dependendo do assunto, ela argumenta bastante. Eu acho ótimo que ela argumente”, afirma Cristiane. “Se a criança não fica o tempo todo perguntando para a mãe o que pode fazer, ela ganhou espaço para experimentar. Ela está fora da asa. Mas, nesses casos, o desafio dos pais é proteger essa criança, para que ela tenha liberdade sem entrar em perigo. Eu tenho que ser ninja no olhar porque a Dorah é lisa e desaparece em um instante”, relata a mãe.

Educar um filho vai ser sempre trabalhoso. E cada criança é uma experiência única, então, não adianta projetar um “júnior” ou um “mini me”. Os pais autoritários, da educação tradicional, estão saindo de cena, mas o problema é substituí-los pelos “pequenos ditadores”, filhos de uma formação muito permissiva, com genitores que sonham em proporcionar a felicidade para seus rebentos. Entre esses extremos, há muitas formas boas de criar. “Cada ser humano deve ter a chance de se desenvolver para ser quem ele é de fato. Não ser o que os pais esperam ou o que a sociedade espera”, resume Tina. Deixe seu filho ser ele mesmo.

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