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Médico de famosos é acusado de deformar corpo de mulheres

"Parece que fui serrada ao meio", diz a advogada Camila Delamico, 36. "Chorava todos os dias e tive que fazer tratamento psiquiátrico", relata a vendedora Claudete Reis, 55. "Fiquei com vontade de cortar meus seios fora", afirma a dona de casa Joelita Ferreira Nunes, 51.

Essas três mulheres têm em comum a frustração com o resultado de cirurgias plásticas feitas pelo mesmo médico: Herbert Gauss Júnior, 70.

Famoso desde a década de 1990, Gauss já teve entre seus pacientes Hebe Camargo, a cantora e dançarina Gretchen e o cantor Leandro, da dupla com Leonardo.

Camila, Claudete e Joelita processaram Gauss e pediram indenizações, assim como fizeram dezenas de outras mulheres.

O UOL teve acesso a 55 processos abertos por ex-pacientes — nem todos são por erros médicos. Gauss foi condenado pela Justiça em 23 processos, sendo que em 21 não há mais a possibilidade de recurso.

A reportagem conversou com 15 mulheres que afirmam ter sido vítimas do médico.

As ações citam "erro médico", "resultado catastrófico", "pior do que o esperado" e "pesadelo".

Anexadas aos processos há fotos de cicatrizes, peitos desproporcionais e tortos e mamilos assimétricos, entre outros problemas.

O médico Herbert Gauss
O médico Herbert Gauss Imagem: Reprodução/Instagram

As acusações contra o médico vêm pelo menos desde 1999.

Ele também foi alvo de investigações do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), mas o órgão não especificou ao UOL quantas são e nem quais punições sofreu.

A reportagem apurou que o órgão investigou o médico por infração ética em 2005, após a denúncia de uma paciente que se submeteu a duas cirurgias com Gauss em 1998 — lipoaspiração e correção de mamas.

A mulher se queixa de "cicatrizes largas" nas mamas e do fato de o médico ter operado locais não desejados: coxas em vez do culote.

Gauss alegou que não existem cirurgias sem cicatriz e que a outra afirmação era falsa.

Ele foi punido em 2013 com a pena de suspensão do exercício profissional por 30 dias e recorreu, mas o Conselho Federal de Medicina manteve a punição.

Claudete Reis, ex-paciente do médico Herbert Gauss
Claudete Reis, ex-paciente do médico Herbert Gauss Imagem: Bruna Bento/UOL

O médico, então, foi à Justiça afirmando que o caso já estava prescrito. Ou seja, que a punição não mais poderia ser aplicada devido à perda do prazo legal para aplicá-la.

Procurado pelo UOL, o Cremesp frisou, sem citar casos específicos, que "já apurou denúncias" envolvendo Gauss, mas que o médico conseguiu reverter a decisão na Justiça.

"Atualmente, ele responde a processos ético-profissionais neste conselho, que correm sob sigilo", declarou o Cremesp em nota.

Após a publicação desta reportagem, a entidade procurou o UOL e informou, em nova nota, que o registro do médico foi cassado duas vezes. "Mas ele continua trabalhando por liminares judiciais", afirma o órgão. Reforça que há outros processos em curso, mas estão sob sigilo.

Gauss atende diariamente em uma clínica no Jardim Paulista, bairro nobre na zona oeste de São Paulo. Formou-se em 1978 pela Faculdade de Medicina de Santo Amaro, também na capital paulista.

Ele não tem especialidade registrada em cirurgia plástica no Conselho Federal de Medicina, mas pode atuar na área. Todo médico é habilitado a fazer cirurgias, sem necessidade de especialização.

Em um vídeo publicado em sua conta no Instagram, orgulha-se de ter feito quase 80 mil cirurgias, embora não se apresente como cirurgião plástico nas redes sociais.

A paciente Luciana Barros
A paciente Luciana Barros Imagem: Bruna Bento/UOL

Processos e condenações

As outras 28 ações analisadas pelo UOL que ainda não foram julgadas estão em diferentes estágios processuais. Muitas aguardam laudo pericial do Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo).

A Justiça só absolveu o médico em dois casos entre os 55 analisados.

Além disso, em um dos processos houve acordo com a paciente antes de ser decretada a sentença, em agosto de 2013. E em janeiro de 2024, um caso foi extinto por erro formal ou processual na abertura da ação.

Os processos apontam outras queixas além dos erros médicos.

  • Procedimentos pagos não realizados (exemplo: prótese foi colocada, mas as mamas não foram levantadas na mastopexia);
  • A ausência de aviso de riscos em procedimentos que não tiveram resultado esperado;
  • Valores pagos não devolvidos após cirurgias serem canceladas (exemplo: uma paciente descobriu que estava com câncer).

As sentenças contra Gauss costumam ser contundentes.

Uma delas foi dada pelo juiz Mário Daccache, em março de 2018, ao analisar uma ação de indenização aberta por uma agente administrativa, moradora da zona leste de São Paulo.

"A cirurgia não alcançou sua finalidade; pelo contrário, obteve resultado desastroso, causando dores físicas, emocionais e sequelas estéticas. O dano é evidente", afirmou o juiz, que determinou o pagamento de uma indenização de R$ 27 mil.

A paciente, com 28 anos à época, procurou Gauss para tirar nódulos benignos que lhe incomodavam e deixavam o peito "flácido e um pouco caído".

O médico sugeriu uma prótese de silicone e teria convencido a paciente a levantar as pálpebras.

As duas cirurgias seriam feitas em 10 de outubro de 2015 por R$ 9 mil (cerca de R$ 14 mil, em valores corrigidos). Mas só a das mamas foi realizada.

O médico alegou que ela ficaria muito dolorida e que seria melhor deixar a das pálpebras para depois. Essa operação, contudo, nunca foi feita.

A dor, disse a paciente à Justiça, foi intensa, e ela acabou internada com uma grave infecção no SP Day Hospital — o mesmo da primeira cirurgia.

Camila Delamico
Camila Delamico Imagem: Bruna Bento/UOL


Sem que ela fosse informada, segundo relato à Justiça, Gauss realizou um novo procedimento para a troca da prótese no dia 5 de novembro de 2015.

Mesmo após a segunda cirurgia, os problemas continuaram e a paciente acabou procurando outro médico, que lhe deu uma notícia de causar espanto: os nódulos não haviam sido extraídos.

Gauss foi intimado, mas não apresentou defesa no processo. Tampouco recorreu da condenação, que transitou em julgado em maio de 2018. Até hoje ele não pagou a indenização.

'Resultado desastroso'

A reportagem teve acesso a um laudo que levou a outra condenação do médico, em primeira instância, em dezembro de 2023, em um processo com indenização de R$ 43 mil — Gauss ainda não recorreu.

O perito do Imesc concluiu que as próteses foram colocadas dobradas dentro do corpo da paciente, causando dores. Os seios ficaram caídos e uma nova cirurgia foi feita, mas nada mudou.

A paciente decidiu pedir o dinheiro de volta.

Ele propôs me devolver parcelado em seis vezes. Eu disse: 'doutor, a pobre aqui sou eu. O senhor é rico e quer me devolver em seis meses?'. Começou um bate-boca. Valquíria* 55, que trabalha como vigilante.

Após ser ameaçada pelo médico, segundo seu relato, ela decidiu deixar a clínica e procurar um advogado.

Em um terceiro caso, o juiz deu ganho de causa a uma ex-paciente porque o médico "atuou com culpa" em uma cirurgia para a colocação de próteses mamárias e a realização de uma abdominoplastia (remoção de gordura e pele em excesso na região do abdômen).

Sete dias após o procedimento, a paciente foi internada com tromboembolismo pulmonar.

A "culpa" foi apontada por dois motivos: primeiro, pois, segundo um laudo médico, Gauss deveria ter avisado previamente a paciente sobre o risco de tromboembolismo em cirurgias de abdominoplastia.

Não o fez.

Joelita Ferreira Nunes
Joelita Ferreira Nunes Imagem: Bruna Bento/UOL

Além disso, ele ignorou exames prévios que descobriram que a paciente tinha nódulos nos seios. Segundo o perito, a cirurgia não poderia ter sido realizada sem saber se os nódulos eram benignos ou malignos.

Se não bastasse tudo isso, o resultado do procedimento, diz a mulher no processo, foi "desastroso": seios flácidos e tortos e acúmulo de gordura na cintura.

O laudo pericial confirmou os problemas: "Houve, sim, má prática médica".

O juiz Luiz Carrer referendou a conclusão do perito ao condenar o médico a pagar uma indenização de R$ 40 mil à paciente.

"O médico atuou com culpa e sua atuação causou danos irreversíveis à paciente", sentenciou. Gauss não pode mais recorrer.

Defendido por Gretchen

A carreira do médico foi impulsionada por uma forte presença na mídia ao longo dos anos.

Nos anos 1990, ele era assíduo no programa "Domingo Legal", de Gugu Liberato, no SBT. Confraternizava com celebridades como as modelos Vanessa de Oliveira e Enoli Lara e o cabeleireiro Jassa.

A cantora Gretchen já passou por cirurgias plásticas com o médico e é citada por algumas pacientes como fonte de confiança em Gauss.

Gretchen usa palavras elogiosas e carinhosas quando se refere a ele. A cantora já disse que costuma trocar as próteses dos seios a cada dois anos.

"Eu só ligo para ele, falo 'Herbert', e ele responde: 'Já sei, vai trocar o peito'. 'Obrigada, doutor Herbert, obrigada'", afirmou Gretchen em entrevista à apresentadora Luciana Gimenez, em 2017, na RedeTV!.

Nenhum bem em nome de Gauss

A satisfação de Gretchen, no entanto, contrasta com o sentimento de outras pacientes.

A cabeleireira Elisângela da Silva Faria, 48, é uma das mulheres que processa Gauss. Ela contratou a cirurgia de prótese de silicone e mastopexia, para levantar os seios.

Percebeu sozinha, após alguns dias, que a segunda não foi feita. Os pontos abriram após a cirurgia.

Elisângela da Silva Faria
Elisângela da Silva Faria Imagem: Bruna Bento/UOL

O advogado de Elisângela, Guilherme Fleury, diz que o esforço agora é conseguir fazer com que as ex-pacientes recebam as indenizações. Para sua cliente, o valor pedido é de R$ 130 mil.

No processo, Fleury afirma que o médico transferiu dinheiro e bens para outras pessoas, entre familiares e amigos.

"O processo é contra ele, a esposa, o filho e duas filhas, além de cinco empresas que são de amigos dele. O pagamento feito pela Elisângela foi para a conta de um amigo. Minha preocupação é encontrar todos os envolvidos", diz o advogado.

A própria Justiça atesta a incongruência da falta de pagamentos de dívidas.

"Chama a atenção o fato de as contas bancárias do devedor estarem sem saldo, o que contrasta com sua condição de cirurgião plástico renomado, com pacientes famosos e que desfruta de elevado padrão de vida", afirmou o desembargador Rui Cascaldi, do TJ-SP, em fevereiro deste ano.

Gauss foi proibido de deixar o país em fevereiro deste ano por não pagar uma indenização determinada em 2013. O valor era de R$ 272 mil, em cálculos feitos em 2022, levando em conta juros e correção monetária.

Fleury montou um grupo de 20 advogados com casos envolvendo o médico, e a estimativa é de que o número de ex-pacientes pedindo indenização chegue a 200.

O que o médico diz

Procurado pela reportagem, o médico aceitou dar entrevista no começo de abril, mas na data marcada a conversa foi cancelada pelo seu advogado, Mário de Oliveira Filho.

O advogado disse que o cliente não irá se manifestar sobre os casos. O UOL enviou mesmo assim 12 perguntas por email para ouvi-lo sobre as acusações, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Nas defesas apresentadas à Justiça, Gauss costuma afirmar que as acusações são "absurdas e ilógicas", que "não possuem embasamento técnico" e que são feitas visando ao "desejo de lucro fácil".

De acordo com ele, a obrigação de um médico é fazer uso de todo seu conhecimento científico, bem como dos meios técnicos de que dispõe, para tentar "eliminar ou reduzir o mal que acomete um paciente". Mas "não há obrigação de curar o paciente ou garantir a ausência de sequelas", declara.

O médico afirma que sempre agiu com o zelo que os casos necessitavam e que os processos não trazem qualquer comprovação de erro médico. "Não há comprovação de culpa, negligência, imperícia ou imprudência."

Ele diz ainda que sempre informa previamente os pacientes sobre os riscos intrínsecos aos procedimentos, uma vez que as cirurgias plásticas estão sujeitas às variações inerentes aos mecanismos fisiológicos de cada pessoa.

"Idade, peso, espessura e textura da pele, influências hereditárias e hormonais, o momento psicológico vivido pelo paciente, entre outros fatores irão influenciar os resultados sobre os quais o cirurgião não tem a menor ingerência", diz nas defesas apresentadas.

"Não se trata de uma ciência exata."

*Nome alterado a pedido da entrevistada.

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