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Brasileiros no front: como vive quem deixou o país para lutar pela Ucrânia

Os brasileiros JC*, 60, Pablo Silva, 29, e Carlos Eduardo Cândido, 31, têm algo em comum além do apreço por armas: todos decidiram lutar pela Ucrânia na guerra contra a Rússia.

Os três são voluntários em meio a um contingente de estrangeiros —em sua maioria, latino-americanos, segundo relatam— e viram de perto a escalada do conflito.

A reportagem do UOL manteve contato com eles ao longo de um mês e ouviu seus relatos e motivações.

Todos veem na experiência de guerra uma missão pessoal e uma chance de um futuro melhor.

Apesar de arriscarem a vida por uma pátria que não é a sua, os brasileiros rejeitam a definição de 'mercenários' —combatentes que lutam sem vínculo oficial e apenas por lucro, segundo o Direito Internacional Humanitário.

Mais do que isso: dizem se identificar com a cultura, o estilo de vida e os valores ucranianos, e por isso decidiram lutar.

A inscrição é feita pela internet. Soldados estrangeiros admitidos assinam um contrato de seis meses com as Forças Armadas Ucranianas. Recebem fardamento, hospedagem e equipamentos.

Após o período, passam a ser considerados veteranos de guerra e podem encerrar o contrato ou renová-lo por mais seis meses.

Entre os benefícios do soldado veterano estão o atendimento médico e a livre estadia na Ucrânia por dez anos. É o que os brasileiros pretendem fazer.

Salários podem chegar a R$ 25 mil mensais.

Eles dizem que vale a pena, mesmo com o risco constante de morte --a deles e a dos inimigos. Atirar e matar no front traz consequências para uma vida inteira.

"Não é uma mudança instantânea [após matar alguém]. Mas existe um antes e depois", admite Pablo, hoje em acompanhamento psicológico.

O UOL procurou o Itamaraty, que informou não ter dados sobre o número de brasileiros alistados, já que o Brasil não participa desse processo, cabendo às autoridades ucranianas.

O curitibano JC, que recruta estrangeiros para o exército da Ucrânia
O curitibano JC, que recruta estrangeiros para o exército da Ucrânia Imagem: Reprodução

Um brasileiro que recruta estrangeiros na Ucrânia

Com a arma empunhada em um trecho de mata na Ucrânia, o curitibano JC foi arremessado após ouvir uma grande explosão e sentir um deslocamento de ar.

"Deve ter vindo de um ataque de morteiro de tropas russas. Bati nas árvores e por sorte não tive ferimento de estilhaço, mas desloquei o ombro e a bacia", lembra JC.

Há seis meses, após se ferir, ele foi transferido para o Foreigner Recruiting Center, um centro de recrutamento para estrangeiros, onde foi promovido a sargento e ocupa o cargo de recrutador.

Ele passou a entrevistar e ajudar na seleção de novos soldados estrangeiros.

Para falar com o UOL, JC precisou de autorização de um oficial ucraniano, que conferiu as credenciais da reportagem.

Há receio de que células russas interceptem a comunicação usando espiões para coletar dados como localização ou número de soldados —que ele não revelou.

JC é veterano de guerra. Lutou em Kosovo também como voluntário em 1999.

Agora, ele vê uma guerra diferente, com drones, inscrições pela internet e divulgação de seu centro de recrutamento pelas redes sociais.

"Cheguei à Ucrânia numa sexta e na segunda já estava na unidade de combate. Agora temos treinamento, assistência com psicólogos e atendimento médico. O soldado estrangeiro é reconhecido aqui", conta JC.

Carlos Eduardo Cândido na Ucrânia
Carlos Eduardo Cândido na Ucrânia Imagem: Acervo pessoal

Silva e Cândido também têm uma motivação extra: gravam e postam conteúdos da guerra nas redes sociais e YouTube.

Como continuo no front, a preocupação é postar na minha página pelo menos um mês depois da ação, para evitar identificação de posição.
Carlos Eduardo Cândido soldado e dono do canal CandidoSkull

Silva posta esporadicamente vídeos de ações em campo de batalha em sua conta no Instagram, com quase 10 mil seguidores, chamada Snow PL.

O pior da guerra

Douglas Burigeau, dono de uma loja de pneus, em São José dos Ausentes (RS), decidiu ir para a guerra na Ucrânia, em março de 2022.

Fez todo o processo de alistamento via redes sociais.

Poucos meses depois, em julho, ele morreu durante um bombardeio.

"Uns dois dias depois da morte, fui comunicada de que ele havia sido atingido", conta Cleuza Búrigo, 63, mãe de Douglas, que vivia com ele.

O aviso veio por uma videochamada do comandante. O filho foi alvo de um ataque. Ele havia voltado para o alojamento para ajudar uma oficial que não conseguiu sair a tempo.

"Ele nos contou que queria ir para ajudar, não para ir para a linha de frente. Pedi muito, chorei, implorei para ele não ir", contou.

Douglas deixou uma filha de 18 anos e, para a família, o luto permanece.

Pablo Silva
Pablo Silva Imagem: Acervo pessoal

Ele e Pablo estão listados no site russo Foreign Combatants, página criada por civis com informações de combatentes estrangeiros. Lá está listado o nome de André Hack, que morreu aos 44 anos combatendo na Ucrânia.

"Reconhecemos o corpo dele pelas tatuagens, através do Itamaraty, por ligação de vídeo", conta Letícia Hack Bahi, irmã de André.

Apenas as cinzas dele retornaram ao Brasil, entregues pela Ucrânia às vésperas do natal de 2022. Neto de militar e filho de ex-integrante da Aeronáutica, André sempre quis seguir carreira no Exército.

Ele serviu como sargento na Legião Estrangeira da França e, em 2015, sobreviveu a um bombardeio na Costa do Marfim, que lhe causou perda parcial da memória e deixou sequelas físicas.

O brasileiro André Hack, que morreu aos 44 combatendo na Ucrânia
O brasileiro André Hack, que morreu aos 44 combatendo na Ucrânia Imagem: Foreigncombatants/Reprodução

Recuperado, voltou ao Brasil e trabalhou como socorrista do Samu em Porto Alegre. Depois, mudou-se para o Ceará, onde teve a filha caçula. Foi de lá que partiu para a Ucrânia em 2022, já como veterano de guerra.

André participou de seis missões, incluindo em Bucha, onde relatou à família ter visto abusos contra civis cometidos por russos.

Em Severodonetsk, o brasileiro foi escalado para a chamada "missão sangrenta" e acabou morto em combate.

"Ligaram e deram a notícia pelo Instagram", diz a irmã dele ao UOL.

André foi o primeiro brasileiro oficialmente registrado a morrer na guerra da Ucrânia.

"Ele estava ciente do que estava fazendo e dizia que se morresse lutando iria estar feliz. Então, foi um certo conforto que tivemos", diz Letícia.

Brasileiros do exército ucraniano posam com bandeira nacional
Brasileiros do exército ucraniano posam com bandeira nacional Imagem: Acervo pessoal

Salários, drones e linha da morte

Todos os soldados, estrangeiros ou ucranianos ganham salários por igual, sem distinções. O valor, no entanto, muda conforme a função e o local de trabalho.

Para chegar ao cargo de comandante, é preciso falar ucraniano. Para se tornar sargento, não é necessário dominar a língua.

A linha zero, zona de confronto direto da infantaria, uma das mais perigosas, tem salários mensais que podem chegar ao equivalente a R$ 25.000 com bonificações.

Já a retaguarda, local com menos riscos, a remunerações são em torno de R$ 6.000.

"Na linha zero, ninguém consegue ficar os 30 dias exigidos para receber todas as bonificações —a chance de morrer é enorme", conta Cândido, que atualmente está nas linhas de retaguarda.

"Hoje a situação está ainda mais difícil: a infantaria perde espaço com o avanço tecnológico. Já vimos posições serem tomadas com drones aéreos e terrestres."

Antes de viajar à Ucrânia, Cândido serviu por três anos no Exército no Rio e migrou para a área de segurança privada.

Ele deixou dois filhos, de mães diferentes no Brasil, mas mantém contato com eles durante a guerra.

Para falar com eles [filhos], é preciso estar na zona segura. Na linha zero não vamos com celulares pessoais, pois drones inimigos tentam rastrear e interceptar nosso sinal. Carlos Eduardo Cândido soldado

Fora de posição, geralmente ao fim das missões, os militares são encaminhados ao que chamam de "casa segura", residências fornecidas pelo Exército. Eles recebem pouco mais de R$ 2.600 mensais.

No local, compram comida, roupas e até "souvenirs" de guerra —como miras telescópicas, a laser e extensores de pente de munição para as armas.

"Tinha fuzil modificado com mira e extensão do pente. Gastei meu primeiro salário de soldado nisso. Há lojas na região vendendo esses equipamentos", diz Silva, que hoje vive em Portugal, três meses após deixar as forças ucranianas.

Estrangeiros contra estrangeiros

JC e Pablo, que também atuavam na área de segurança privada antes de viajarem à Ucrânia, se depararam com uma realidade totalmente diferente na Europa.

Passaram a manusear armas longas, usadas acopladas a caçambas de caminhonetes para abater drones espiões e de artilharia.

Fiz muitas missões de assalto e sabotagem, em que as chances de baixa são grandes pelo confronto direto com o inimigo. Sempre pensei 'ou é eles ou sou eu'. Pablo Silva soldado

Pablo afirma que sua primeira baixa na guerra foi, possivelmente, um militar africano contratado pela Rússia.

Ele lembra de uma operação de dez dias no setor urbano de Chasiv Yar, cujo objetivo era a tomada de três prédios de pequeno porte ocupados por forças inimigas.

Durante a travessia de um campo aberto, um dos operadores da equipe foi atingido por estilhaços na perna. O grupo conseguiu alcançar os prédios e eliminar a resistência interna.

"Neutralizamos cerca de 16 inimigos com a nossa equipe", conta.

Mas logo as complicações surgiram. O setor foi cercado por forças russas, que receberam reforços.

O combate se prolongou, com perdas. "Do nosso lado foram cerca de 26 baixas, incluindo um brasileiro da equipe", relata.

Do outro lado, segundo ele, morreram 47 combatentes, "a maioria deles coreanos".

O cenário ficou insustentável. Com pouca munição e quase sem comida, o grupo resistiu por dez dias até a ordem de recuar.

A missão atingiu o objetivo tático imediato, mas o preço pago foi alto. "As baixas foram muito significativas e marcaram profundamente todos nós", resume Pablo.

Matar foi algo que mudou Pablo, que já voltou ao Brasil.

"Não é uma mudança instantânea, mas com o tempo você percebe diferença no psicológico, na forma de olhar para as coisas e até no jeito de se portar", conta ele, que agora trabalha na área de telecomunicação.

Pablo empunha uma arma RPG (granada lançada por foguete)
Pablo empunha uma arma RPG (granada lançada por foguete) Imagem: Acervo pessoal

Passe de guerra

Poucos anos atrás, estrangeiros como Pablo, Cândido e JC chegavam à Ucrânia geralmente por meio de contatos pessoais.

Hoje, o processo é oficial: o cadastro é feito pelo site do Ministério da Defesa, divulgado pelo Instagram do centro de recrutamento, com mais de 4.000 seguidores.

"Fazem perguntas e, depois, uma videochamada. É como uma entrevista de emprego. Caso dê certo, mandam carta convite da Ucrânia", explica o recrutador.

Ao chegar, o voluntário passa por triagem, treinamento e testes físicos.

"Se não for qualificado, vai para a infantaria. Muitos chegam animados, mas quando começam a ouvir as histórias, veem os amigos morrendo, dão para trás", diz JC.

O dia a dia é pesado: 16 quilos de equipamento, treinamentos intensos e lei marcial.

Aqui não é colônia de férias. Isso não é só ser um voluntário, é uma profissão. Não somos mercenários, temos contrato com o Ministério da Defesa da Ucrânia. JC sargento do Exército ucraniano

Para Cândido, a experiência é existencial. Ele tatuou uma caveira com a inscrição 'memento mori' —'lembre-se de que você deve morrer' em latim.

"A guerra é uma vocação. Nunca me senti completo em empregos normais. Essa era minha missão de vida", diz Cândido.

*Como ele prefere ser chamado, por temer rastreamento do Exército russo.

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