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Lidia Zuin

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Mais ponderado, horror gótico retorna nas 'serious fictions' tecnológicas

Cena do filme "Blood Red Sky" - Reprodução
Cena do filme 'Blood Red Sky' Imagem: Reprodução

Colunista do TAB

01/08/2021 04h01

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O enredo é simples: um voo transatlântico com terroristas a bordo e também... vampiros. Parece até sinopse de filme de terror trash do começo dos anos 2000, como aquele em que havia cobras no avião, mas, na verdade, "Red Blood Sky" surpreende ao apresentar a criatura fantástica repaginada (ainda que seguindo muito da estética canônica de Nosferatu) e no papel de uma mãe a proteger seu filho humano.

O longa-metragem alemão chegou recentemente à Netflix e já chamou atenção de roteiristas como Hideo Kojima, justamente por pegar uma premissa tão batida, mas que consegue aqui subverter. Há quem diga que todas as histórias já foram contadas, a diferença e o desafio para o futuro são o "como".

É isso também o que diagnostica a pesquisadora Lauren Collee no ensaio "Is It My Body" para a revista Real Life. Collee acredita que os mais recentes títulos de histórias de gênero (ficção científica, horror, fantasia) acabaram se aproximando mais de um formato "serious fiction" (ficção séria) ao usar o sobrenatural como uma metáfora para dilemas contemporâneos. Não é algo necessariamente novo, tanto que Collee afirma que estamos resgatando muito do romance gótico, repaginado com as tecnologias atuais. Se "Frankenstein" foi escrito em um período em que o romance gótico estava em alta (com a diferença de que Mary Shelley trazia essa reflexão sobre tecnologia e ciência), no século 21 vemos novamente a mesma abordagem sob uma outra ótica.

Em "Haunted Media", Jeffrey Sconce comenta como os dispositivos comunicacionais, do telégrafo à televisão, foram imbuídos de uma certa agência ao longo da história. É possível até categorizar essas abordagens em três tipos recorrentes de narrativa. Primeiro, Sconce argumenta que esses dispositivos permitem uma forma de descorporificação que o autor relaciona com o personagem Mike Teavee de "A Fantástica Fábrica de Chocolates" (provavelmente a versão de 2005 do filme, em que Mike aparece como um viciado em televisão e jogos violentos). Em segundo lugar, essas mídias seriam capazes de fornecer uma conexão com uma espécie de "além eletrônico", algo como uma adaptação das histórias de fantasia do século 19 e que permanece no imaginário hoje no imaginário da realidade virtual — o que Margaret Wertheim chama de emulação do céu cristão no ciberespaço em "The Pearly Gates of Cyberspace". Por fim, a tecnologia pode ainda ser tornada antropomórfica, que é o que vemos em personagens androides e ciborgues.

Filmes como "Tetsuo The Iron Man" e "Videodrome" acabam levando esse tipo de assunto para uma espécie de "horror tecnológico", o que diz muito respeito, justamente, à maneira com que "Frankenstein" fez um híbrido entre os dois gêneros. Nesse caso, Sconce enxerga que há um "rompimento do Eu de seu corpo físico [que] permite a sua ilimitada dispersão e difração, resultando por fim em um estado de hibridização (ou possessão) pelo qual não é mais possível de se separar o humano da máquina." Isso se conecta particularmente à vertente transumanista que acredita na transposição do corpo biológico para a forma de dados em uma simulação, assim possibilitando a conquista da imortalidade. Como argumenta Collee, citando o filme "Cam", que já mencionei aqui, assim como as criaturas mortas-vivas e imortais (vampiros, zumbis, bruxa ou androide), a hibridização é uma característica imprescindível — e esta corrompe a humanidade. Em outras palavras, a autora argumenta que o "hibridismo é a condição da imortalidade".

Nas "serious fictions" atuais, não necessariamente a hibridização ou transformação em algo além do humano é vista como positiva. O filho de Cronenberg, por exemplo, trouxe em "Possessor" a transposição clara dessa ideia, ao contar a história de uma mulher que trabalha possuindo os corpos de outras pessoas depois que são sequestradas e têm um chip implantado em seu cérebro. Assim como nas histórias de possessão demoníaca, em que o Eu é corrompido, fragmentado ou mesmo anulado pela entidade, em "Possessor" vemos como isso poderia se dar através da tecnologia (por exemplo, o implante Neuralink proposto por Elon Musk).

Cena do filme 'Possessor' - Reprodução - Reprodução
Cena do filme 'Possessor'
Imagem: Reprodução

Para Collee, o resgate desse tipo de diálogo na ficção tem a ver com essa ansiedade e instabilidade que vivemos. Através do livro "The Great Derangement" de Amitav Gosh, ela fala sobre a maneira como o clima em si também está cada vez mais instável, tornando-se algo mais próximo de uma "força sobrenatural da natureza" que, assim como argumenta Bruno Latour, provoca um "particionamento" da ideia de que a natureza se separa da cultura na imaginação ocidental. Em "Take Shelter", por exemplo, vemos Michael Shannon cada vez mais angustiado por suas visões apocalípticas sobre a chegada de uma tempestade avassaladora, misturando fenômeno climático com a própria perda de sanidade. Em outros filmes como "O dia depois de amanhã" e "2012", há ainda um moralismo que impregna os fenômenos com a mensagem de que "fomos avisados" e agora "estamos sendo punidos", repetindo o arquétipo da Arca de Noé.

Collee relaciona também essa desfragmentação ou "particionamento" como uma consequência da maneira como tudo tem se tornado cada vez mais comodificado sob o "tecnocapitalismo". Porém, para que isso ocorra, é preciso que haja uma espécie de alienação na qual o mundo (ou a realidade) é tido como previsível e inerte, de modo que ele pode ser tecnológica e cientificamente controlado — a mesma premissa do seriado "DEVS", também analisado aqui. Quando as coisas não funcionam, quando a tecnologia e os elementos da natureza saem do controle (lembrando que a própria cibernética é tida como uma ciência de sistemas de controle), então é como se estivéssemos diante de um fenômeno paranormal.

De maneira ainda mais direta, um ensaio publicado também na Real Life fala sobre como casas inteligentes são uma retomada tecnológica e contemporânea do tropo gótico da casa mal-assombrada — dessa vez, através de uma tecnologia falha ou mesmo de uma invasão cibernética — o hacker como um feiticeiro e encantador demoníaco. O mesmo vale para a alegação de Ghosh sobre como nossas próprias criações também acabam escapando da lógica aplicada, sendo a mudança climática uma "obra misteriosa feita pelas nossas próprias mãos e que retorna para nos assombrar de formas e maneiras impensáveis". Esse tipo de arco narrativo é extremamente parecido com os contos estranhos (weird tales) do romance gótico: a ideia do fantasma que retorna para se vingar, a casa onde um crime terrível foi cometido que segue punindo moradores futuros etc.

Para Ghosh, no entanto, hoje esse tipo de metáfora é usado também para uma crítica política. Collee escreve que, para o autor, "o capitalismo não é uma força gerando as assombrações; ele próprio é assombrado pela sua história, uma história que inclui forças para além do humano. O fantasma na máquina, em outras palavras, não é apenas uma alegoria para tecnologias avançadas. E se as figuras não-humanas evocadas por Ghosh — animais, rios, pedras e tempestades — acharam uma forma de "invadir" o espaço digital, assim "nos invadindo" também? E se isso já estivesse ali desde sempre?" As tecnologias emergentes foram, ao longo da história, usadas para tentar medir, provar ou acessar o sobrenatural — desde a radioatividade em sessões espíritas, até o uso de microfones para a captação de ruídos fantasmagóricos ou o uso de inteligência artificial para se comunicar com os mortos.

Em "Red Blood Sky", uma mãe "contaminada" por uma doença, que a princípio suspeitamos ser um câncer raro, passa na realidade por uma transformação em vampiro. Diante da ameaça de vida de seu filho, ela deixa ser tomada pela monstruosidade, ainda que lute para sempre se lembrar de que é humana. Se, por um lado, um dos terroristas propositadamente se contamina para tornar-se vampiro e, portanto, tecnicamente imortal e mais forte, no caso da mulher, ela aprende que essa condição é antes maldita por ter seus contras muito mais avassaladores do que seus prós.

O que vemos hoje nessas obras é, na verdade, a ponderação sobre nossas ambições e se elas valem mesmo a pena, o quanto estamos dispostos a abdicar. Não é sobre proibir, assim como em uma fábula ludita, mas sobre compromisso: não há como conquistar a imortalidade (ou qualquer que seja o desejo almejado) sem antes tornar-se híbrido (e, portanto, desumanizar-se, despersonalizar-se). Mais do que um desdobramento da sina de Frankenstein, parece que vivemos em novos tempos fáusticos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL