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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eleições de 2022 indicam fim da linha do bolsonarismo, certo? Errado

Jair Bolsonaro (PL) em conversa com apoiadores no cercadinho do Palácio da Alvorada - Reprodução/Facebook
Jair Bolsonaro (PL) em conversa com apoiadores no cercadinho do Palácio da Alvorada Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

04/10/2022 04h01

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Jair Bolsonaro (PL) chegou ao segundo turno com 51 milhões de votos. Conseguiu, assim, quase um milhão de votos a mais do que havia obtido em 2018. Nenhum instituto de pesquisa projetou essa demonstração de força.

Seu partido elegeu 99 deputados e se tornou a maior bancada da Câmara — quase 20 cadeiras a mais do que conquistou a federação encabeçada pelo PT.

O Senado elegeu uma bancada de ex-ministros que serviram Bolsonaro em algum momento dos últimos quatro anos. Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Tereza Cristina (Agricultura), Damares Alves (Direitos Humanos) e Sergio Moro (Justiça), que se descolou e depois se reaproximou do eleitor bolsonarista, puxam a fila. Terão a companhia do atual vice-presidente Hamilton Mourão e outros nomes que transitam entre o campo conservador e o reacionarismo puro. Se saírem do prédio encontrarão nos corredores da Câmara puxadores de voto como Ricardo Salles (Meio Ambiente), Eduardo Pazuello (Saúde) e outras figuras conhecidas do time.

Aliados do presidente venceram ou largaram na frente para o segundo turno das corridas pelos governos estaduais em diversas frentes. Romeu Zema (Novo) e Cláudio Castro (PL) levaram no primeiro turno em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Tarcísio de Freitas (Republicanos) está a um passo de se eleger em São Paulo. Isso para ficar apenas nos três maiores colégios eleitorais.

O desempenho permite colocar de lado (ou sepultar de vez) algumas ferramentas que deram as chaves para tentar entender o bolsonarismo e o resultado da eleição de quatro anos atrás. A de domingo (2) serviu para mostrar que o movimento seguirá vivo e forte, mais do que supõem os pensamentos desejosos, mesmo que seu "mito" seja derrotado daqui a três semanas.

Por muito tempo (talvez até o último domingo) a explicação consensual para o triunfo de um deputado despreparado e conhecido por opiniões bizarras sobre ditadura e repressão foi entendido como uma espécie de apagão moral do país alimentado por crise política, fake news, falsos kit gay, redes de ódio e outras extravagâncias. Mais ou menos assim: zonzos pela avalanche provocada a partir da Lava Jato ou mesmo das manifestações de junho de 2013, os eleitores foram às urnas em 2018 munidos apenas pelo ódio e o desejo de exclusão.

Esse desejo faria com que qualquer quadro da chamada política tradicional fosse moído, naquele momento, diante de qualquer pastiche de outsider, alguém que dizia vir de fora para combater um sistema carcomido. Bolsonaro vestiu essa camisa e foi eleito.

Pela explicação corrente, esse figurino se encaixou num parlamentar com quase 30 anos de vida política devido a uma série de circunstâncias isoladas e específicas: antipetismo, antipolítica, memes mal-intencionados, e o saldo da Lava Jato. Eis que ele logo depois enterra a Lava Jato, expurga seu maior símbolo, faz uma banana aos mecanismos de combate à corrupção e se associa com quem foi preso ou investigado na mesma operação. Fim da linha, certo? Errado.

Hoje, passados quatro anos, é possível concluir que não, Bolsonaro não foi eleito (só) por causa do antipetismo, da mamadeira de piroca ou da facada de Adélio Bispo, que lhe garantiu visibilidade sem o risco de expor, nos debates dali em diante, quem ele era de fato (ou não era, no caso).

Assim, dizíamos, o desejo de mudança num momento de crise econômica, política e social (a tempestade perfeita, enfim) colocou o ranço e o ressentimento na mesma esquina e o resto é história — uma história com hora para acabar assim que as pessoas voltassem a si.

As eleições municipais de 2020, realizadas em momento peculiar (o auge da pandemia), até indicavam isso, mas não foi o que aconteceu dois anos depois. Esperava-se que a eleição de 2022 servisse como um referendo ao papel do governante nos momentos-chave dos últimos quatro anos. Só que o resultado desse referendo tem mais de uma mensagem.

Uma delas é que Bolsonaro se revigorou na crise sanitária, e não o contrário. Outra é que a vitória de Bolsonaro em 2018 não se deu por votos de exclusão, mas de convicção.

A pandemia mostrou quem Bolsonaro era de fato e isso não impediu que 51 milhões de pessoas votassem nele. Lição número zero: Bolsonaro não é um fenômeno apenas em um cercadinho.

Uma explicação corrente, e agora em xeque, para seu desempenho em 2018 era que ele se beneficiou do antipetismo que direcionava automaticamente o voto em qualquer cone que se apresentasse como oposição aos candidatos petistas.

Por alguma razão, essa explicação ficou de pé até ontem, mesmo que o candidato petista naquele ano tenha ido ao segundo turno e obtido 44,8% dos votos — um contingente de 47 milhões de eleitores. Fosse um candidato de um partido menos estruturado, é possível imaginar (só imaginar, claro) que Bolsonaro tivesse vida ainda mais fácil naquele ano e neste (neste, aliás, segue ainda em desvantagem, só pra lembrar).

Na análise corrente das redes, já está decretado que metade do país tem inclinações fascistas e fim, a história está perdida. Isso não explica a surra que outras pessoas que surfaram ou tentaram surfar no bolsonarismo tomaram nas mesmas urnas, como Ana Cristina Valle, Sergio Camargo, Eduardo Cunha. A barca do atraso era grande, mas não cabia todo mundo.

Também não explica o fato de que São Paulo, o estado declarado como fonte do reacionarismo mais perverso, tenha consagrado nas urnas um líder sem-teto com votação recorde.

Quatro anos após uma eleição dada como "acidental", Bolsonaro ainda é uma força política para além do antipetismo. E seria uma força política, não uma marola, com ou sem um quadro petista como desafiante no caminho da reeleição. Antipetismo por antipetismo, havia ao menos dois outros candidatos em campo para destronar uns e outros.

A questão é que Bolsonaro é uma figura mais resiliente do que supunha a análise, essa sim nada apressada, segundo a qual ele era um fenômeno passageiro, um político de nicho que arrancava suspiros apenas em um limitado cercadinho formado por fanáticos, terraplanistas, militantes antivacina e adeptos da servidão voluntária — debochadamente chamados de "gado" pelas cabeças pensantes do país.

Entender a força de Bolsonaro para além de suas posições extremistas exige abrir mão das chaves de compreensão com que sua trajetória foi analisada até 2 de outubro.

Sua vitória em 2018 não era um soluço nem o momento final de um fenômeno ou movimento que se estourou numa onda e recuou como ressaca. Não era também um ponto de partida. Era um evento em curso.

Esse fenômeno passou bem, obrigado, pelo seu maior teste, a pandemia. E o que ele ofereceu na pandemia? A ideia de que o indivíduo é uma entidade sagrada sobre a qual as regras mais básicas de convívio social não devem servir como amarras.

A "lei" primeira do bolsonarismo (ou da direita populista à qual ele obedece e replica) serve para o tio que quer fazer piada livremente sem censura, serve para o motorista cansado dos radares na estrada (ou das multas porque os filhos andaram sem cadeirinha no banco de trás), serve para o empreendedor que não quer fiscal da vigilância fechando seu negócio, ou do Ibama na porta da sua fazenda. Serve também ao pequeno comerciante que faliu por não conseguir arcar com os custos fiscais e trabalhistas de seu pequeno negócio.

Seu discurso de que menos direitos garantiriam mais empregos e mais progresso, por mais impreciso que seja, serviu como uma luva para uma multidão de pequenos empreendedores (não necessariamente o fazendeiro devastador ou escravista) que viram em Bolsonaro um raro contestador do papel do Estado na elaboração de normas de distanciamento social e critérios sobre trabalho essencial.

Quantos, nos quase um milhão de votos a mais recebidos por Bolsonaro agora em relação a 2018, não decidiram seu voto no momento em que estenderam na frente de seu estabelecimento uma faixa que replicava um mantra repetido à exaustão por Bolsonaro e companhia: "todo trabalho é essencial"? Quantos donos e funcionários de academia, restaurantes, comércios, pequenos negócios — tudo, enfim, que faz movimentar o dinheiro em um país de pessoas jurídicas em relações de trabalho desregulamentadas e sem seguridade social — não referendaram seu voto em 2018 porque alguém ao menos fingia olhar para eles?

Corta a cena para o desfecho da carreira política de João Doria, a encarnação da figura repressora do Estado que supostamente tirou a "liberdade" e o direito ao trabalho do cidadão comum, mesmo quando as regras de distanciamento eram condições básicas de sobrevivência, e a resposta parece óbvia.

Quando se negava a respeitar as regras ou usar uma simples máscara de proteção, Bolsonaro só reforçava o que já vendia como projeto político (e existencial) muito antes de 2018: a promessa de um mundo em que cada um é responsável por si, até pela sua segurança, inclusive para morrer ao tentar sobreviver como bem quisesse — de preferência com a liberdade de ir e vir com o tanque cheio de gasolina barateada na marra.

Um erro comum da análise da personalidade de Bolsonaro é associar o seu pendor autoritário a uma figura essencialmente repressora. De maneira artificial, é verdade, o que ele vende é justamente a ideia de que o inferno repressor são os outros — os que obrigam os trabalhadores a pagar impostos, respeitar normas ambientais, mandam fechar igrejas na crise sanitária e obrigam a todos a usar máscaras.

Recusando o papel de estadista, Bolsonaro se fortalece ao representar não um Estado regulador, mas um indutor do direito ao gozo, inclusive andar de moto e jet-ski quando o bom senso pede algum respeito ao luto. O que pra muita gente (metade dos eleitores, provavelmente) é acinte, para boa parte é encanto. Uns dizem para os outros: eu autorizo.

Por ironia, a postura artificial de Bolsonaro o conduz até a profundidade da alma de um tipo de eleitor que está cansado de ouvir dos pais repressores representados pelo Estado que precisam tomar banho e escovar os dentes. Bolsonaro desorganiza essa ideia dizendo que todo mundo pode dormir como quiser, e se alguém morrer por isso, azar: ninguém ali é responsável por ninguém além de si. Não somos coveiros, lembra?

Há muito de falência de uma ideia de coletividade quando essa massa amorfa e bem organizada é composta por projetos de hiperindivíduos que vislumbram, mas não se realizam de todo — porque o STF não deixou, porque a esquerda ainda elege sua bancada, porque o politicamente correto é uma imposição moral, etc.

Uma análise até a segunda página permite dizer que Bolsonaro, para além do discurso vulgar, é sim, uma figura repressora. Basta ver o que acontece, a longo prazo, com quem se atreve a não dobrar a espinha para seu projeto.

Mas esse é outro ponto que a análise corrente e desejosa se esqueceu de trazer à discussão: quem é que lê alguma coisa para além da segunda página por aqui?