Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bloqueio bilionário na Educação deixa o Brasil do jeito que o diabo gosta
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A coleção primavera-verão de 2022 veio com tudo em suas cores e estilos inspirados nas masmorras medievais.
Na entressafra dos dois turnos de uma disputada e endoidecida eleição, os eleitores guardaram no armário as roupas do Iluminismo e já desfilam em tons soturnos das discussões sobre satanismo, sociedades secretas, pânico moral e vestimenta para a guerra das cruzadas.
As primeiras horas da nova estação atualizaram discussões sobre maçonaria, rituais satânicos e a criação de bodes. Baphomet virou grife e entrou na moda.
No TikTok, a ágora dos novos tempos, um influencer identificado como "sacerdote da igreja luciferiana" posa até com bandeira do "inimigo" para anunciar uma alucinógena união entre vertentes religiosas e facções ligadas ao satanismo e ao ocultismo. Tem quem acredite nisso? Tem.
Não mais que de repente, a grande questão nacional envolve agora os riscos da democratização de banheiros unissex pelo país, que não consta do programa de nenhum presidenciável que ninguém nem sequer se preocupou em ler. Achava que o nome disso era "banheiro família", onde casais podem trocar as fraldas e as roupas enlameadas dos infantes endiabrados em restaurantes e clubes frequentados pelos reles mortais. Mal sabia que era tudo parte de um plano.
A tentativa desesperada de transformar o segundo turno em uma guerra santa, dessas que opõem cidadãos dotados do monopólio da virtude a aberrações morais, patologizadas e criminalizadas, deveria provocar risos num país onde seus habitantes, ou a maioria deles, soubessem ligar ao menos lé com cré.
Não é o caso, e a sensação de que estamos rodeados por uma multidão tão vulnerável quanto manipulável é de longe a maior ferida narcísica de um país que acreditou em algum momento estar pronta para liderar e pavimentar as pontes de um novo século, complexo, diverso e compartilhado.
A trava dos desvios de foco sobre os temas que realmente interessam aos eleitores fez com que passasse batido, como se fosse um assunto de menor importância, o bloqueio de ao menos R$ 2,4 bilhões do Ministério da Educação — aquela pasta esquecida num dos prédios da Esplanada onde pastores negociavam propina em Bíblias e pneus em troca de dinheiro fácil. Um bloqueio que deixa o Brasil do jeito que o diabo gosta.
O contingenciamento promete matar por asfixia o funcionamento das universidades federais. Com elas, os laboratórios do futuro de qualquer país.
A boiada passou enquanto discutimos em qual passado glorioso devemos depositar as esperanças: um que abriu as portas para o filho da empregada estudar ou outro disposto a acabar com essa "festa danada" e levar o país aos "bons tempos" da colônia pré-Lei Áurea.
Universidades como a federal de Ouro Preto e o Centro Federal de Educação Tecnológico de Minas Gerais, onde Jair Bolsonaro (PL) aposta agora todas as suas fichas na dobradinha com o governador recém-reeleito Romeu Zema (Novo) para reverter a vantagem do ex-presidente Lula (PT) no estado, já avisaram que não consegue operar sem os recursos previstos.
A proposta do governo é cortar 90% dos programas para educação em 2023. Os recursos para infraestrutura das escolas devem sofrer queda de 97% em relação a este ano, chegando a meros R$ 3,45 milhões (metade da mansão de um dos filhos do presidente). É como deixar uma população inteira de futuros profissionais morrer por inanição.
O recurso deveria ser destinado para obras de construção, reforma, adequação e ampliação da estrutura de ensino. Nem que algum gestor quisesse mesmo adaptar os banheiros das instituições ao primado da demoníaca "ideologia de gênero" haveria dinheiro para isso.
O anúncio serve como lembrança de que o candidato à reeleição ainda é o presidente e ainda pode muito. Pode agir como um exército em retirada que, prevendo a derrota, foge queimando pontes e plantações do caminho para inviabilizar a vida de quem tomar o território a partir de 2023.
E pode também, pensando no próprio futuro, apagar todas as lâmpadas para seguir projetando em sombras os espectros e espantalhos que já não podem ser observados e desconstruídos à luz da razão.
O quadro revela em números um projeto de poder que tem como base a substituição de escolas e bibliotecas por armas. Nada aqui é acaso.
O embrutecimento destitui as ferramentas básicas da educação, da reflexão, do espírito crítico e da criatividade (essas "pragas" que povoam o sistema de aprendizagem das nações desenvolvidas) e torna um país inteiro refém da ignorância e dos debates vazios e manipulados do campo do pensamento mágico.
É por isso que estamos agora debatendo satanismo e ocultismo enquanto potências que apostaram na educação constroem foguetes.
Pelo rumo das coisas, o Brasil estará pronto para competir com carroças num mundo guiado pela informação e pela tecnologia. Mas pelo menos nossas crianças estarão livres dos banheiros unissex.
É justo e compreensível que os eleitores se preocupem com o futuro de suas famílias na hora de decidir o voto. Mas fariam melhor se analisassem o que pensam (e o que fazem) os candidatos sobre a escola de seus filhos em vez de girar em falso em discussões que só servem para colocar em nossa testa o certificado da estupidez.
Esse projeto não se revela apenas em cortes e ausência total de propostas para a educação. Envolve o municiamento de um estado de espírito que permite a qualquer criança ou adolescente pegar emprestada a arma de seus pais e promover uma carnificina dentro dos muros da escola onde todo seu sofrimento com o bullying e os maus tratos foi classificado de "mimimi". Isso sim é um risco às crianças e às famílias.
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