MP apura se ViaMobilidade está 'desmanchando' trem da CPTM que vale milhões
A área de patrimônio público do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) apura se a ViaMobilidade estaria usando peças de um trem emprestado pela CPTM para consertar outros trens emprestados pela companhia estatal paulista.
A situação está no radar do promotor Silvio Marques, que já ouviu ao menos três testemunhas sobre as supostas irregularidades.
Os empréstimos de trens feitos pela estatal ocorrem desde que a ViaMobilidade assumiu as operações das linhas 8 e 9 de São Paulo, em janeiro de 2022.
Como parte da frota da CPTM e, portanto, patrimônio público, os trens devem ser devolvidos ao Estado em um prazo estabelecido.
O trem que estaria passando por desmanche é o H556. Ele foi comprado pela CPTM em 2013 em um contrato de 65 trens por R$ 1 bilhão, conforme dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação).
O H556 custou cerca R$ 15,3 milhões à época —R$ 28,8 milhões em valores atuais.
Um trem tem oito carros. A reportagem teve acesso a fotos que mostram o H556 desmontado pela concessionária, com carros espalhados no pátio da oficina da ViaMobilidade, em Osasco (SP).
Procurada, a ViaMobilidade afirmou que o H556 está passando por uma manutenção para reparação de componentes eletrônicos e substituição de 64 rodas.
"Por esse motivo, os oito carros [do trem] encontram-se separados e alguns deles apoiados em truques falsos. A previsão é de que esse trem seja devolvido em plenas condições operacionais à CPTM até março de 2025", afirmou em nota.
Por que o H556?
O trem H556 foi emprestado à ViaMobilidade em junho de 2022, informou a CPTM via LAI.
Em nota à reportagem em novembro de 2023, a concessionária diz que o H556 foi "cedido em caráter temporário", pois o trem que originalmente seria emprestado (Q148) não tinha "condições operacionais".
O Q148 "foi, mas não foi": a ViaMobilidade diz que não recebeu o trem na época certa, em janeiro de 2022, mas fontes da CPTM relatam que o Q148 foi entregue à concessionária e, três meses depois, teria sido devolvido "sucateado" para conserto.
Questionada diversas vezes via assessoria de imprensa, a CPTM não respondeu se o Q148 já foi entregue nessas condições -apenas afirmou que mandou o H556 para substituí-lo.
Não há consenso sobre quando o H556 deve ser devolvido ao Estado.
Enquanto a concessionária indica março de 2025, órgãos governamentais não preveem data para a devolução.
"A CPTM não tem como definir data, uma vez que aguarda, por parte da ViaMobilidade, o agendamento de vistoria", informou a estatal, via LAI, em junho de 2024.
A SPI (Secretaria de Parcerias e Investimentos), órgão do governo estadual que acompanha as concessões, informa via LAI que o H556 não está na lista de devolução porque foi emprestado em um "acordo direto entre a CPTM e Via Mobilidade".
'Desmanche'
Fontes da CPTM afirmam que o Q148 já foi consertado, mas que a ViaMobilidade não quer pegá-lo para não precisar devolver o H556.
O motivo é o suposto "desmanche" do H556 para consertar outros trens da CPTM que a concessionária danificou e agora precisa devolver em condições aceitáveis.
O UOL teve acesso a laudos de vistoria: relatórios originais, preenchidos de próprio punho por inspetores, e relatórios da auditoria independente Poyry, digitalizados e compartilhados via LAI pela SPI.
Nos laudos originais foram apontados problemas como câmeras e monitores inoperantes, falha no pantógrafo (dispositivo que leva energia elétrica ao trem) e vazamento de óleo nos redutores (equipamento composto por engrenagens para transferir força dos motores para os eixos).
Nos laudos digitalizados também foram apontados problemas similares, além de anormalidades nos rodeiros (elemento que possibilita direcionar o trem nas curvas) e indisponibilidade do sistema de detecção de incêndio.
Um trem da linha 9-Esmeralda teve princípio de incêndio em 10 de outubro. Outro teve explosão e incêndio em 24 de novembro.
Há trens que precisaram passar por diversas vistorias até que a concessionária resolvesse todas as pendências, segundo relatórios da auditoria independente.
Os trens R508 e R516, por exemplo, precisaram passar por seis inspeções cada um, entre maio e julho.
Uma fonte que participou de inspeções confirma as irregularidades, descrevendo "sistema de ar-condicionado degradado, sistema de incêndio rodando com cilindros de água vazios, rodas com medidas fora da norma internacional de segurança, discos de freio gastos e por aí vai".
"Isso quer dizer que os trens da ViaMobilidade estavam rodando nessas condições precárias, o que pode comprometer a segurança", diz Davi Shakur, que atua na área de segurança do trabalho na CPTM e integra o CLCP (Comitê de luta contra a privatização da CPTM), que organiza atos, campanhas de conscientização e mobilização contra as concessões.
'Improviso'
Segundo fontes da CPTM e da ViaMobilidade, muitos dos problemas nas linhas 8 e 9 ocorrem porque a concessionária não tem trabalho especializado de ferrovia.
"Todo mundo faz tudo", conta Gustavo Lousado, que trabalhou oito anos na CPTM e um ano na ViaMobilidade.
Lousado conta que a jornada é diferente (na CPTM, eram 8 horas; na ViaMobilidade, 12 horas) e as funções, também (na estatal, era especializado; na concessionária, não).
"Não tem treinamento, não tem conhecimento técnico de trem. É tudo improviso. Uma vez fui escalado para consertar escada rolante. Ninguém me ensinou e eu nunca tinha feito", relata.
Conforme o contrato de concessão, a ViaMobilidade deveria ter devolvido os trens da CPTM até abril de 2024, o que não ocorreu.
"Os trens precisam passar por auditorias para a devida devolução, esse processo tem consumido mais tempo do que o esperado", a ViaMobilidade afirmou ao site MetrôCPTM.
Procurada pelo UOL, a ViaMobilidade não se pronunciou sobre o motivo da demora nas devoluções.
Via assessoria de imprensa, a CPTM afirmou que mantém "diálogo constante" com a ViaMobilidade "para garantir que os trens sejam devolvidos em conformidade com os padrões técnicos e operacionais estabelecidos".
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