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Linhas privadas ganham 4 vezes mais, mas transportam menos que Metrô e CPTM

Expectativa: privatizar os trilhos de São Paulo vai trazer mais eficiência e economia para o Estado.

Realidade: falhas graves nas linhas operadas pela iniciativa privada, enquanto Metrô e CPTM, estruturas públicas, ficam com o prejuízo.

Dados inéditos obtidos pelo UOL revelam que os repasses do Bilhete Único (BU), em 2022, foram quatro vezes maiores para as concessionárias do que para Metrô e CPTM.

O BU é a principal fonte de receita tarifária para as operadoras desse tipo de transporte. No ano passado, o valor total arrecadado chegou a R$ 7 bilhões.

Só que, pelos contratos, as concessionárias levam vantagem na hora de sacar sua fatia desse bolo. Metrô e CPTM vêm por último e têm ficado, literalmente, com as sobras.

Responsável pela operação das linhas de trem 8-Diamante e 9-Esmeralda desde 2022, a ViaMobilidade, empresa do grupo CCR, é uma das que tem prioridade nos saques.

Entretanto, a concessionária tem sido alvo de muitas reclamações. Em um ano de operação foram registradas 166 falhas, entre trens que pararam nos trilhos, descarrilamentos e até uma trombada na estação Júlio Prestes.

O Ministério Público pediu indenização de R$ 150 milhões para compensar as falhas — o acordo foi feito em 14 de agosto e homologado em 14 de novembro.

O monitoramento das concessões fica a cargo da SPI (Secretaria de Parcerias em Investimentos), do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que pretende privatizar todos os trilhos até o fim do mandato, em 2026.

O próprio secretário da SPI, Rafael Benini, considera "complicada" a questão dos repasses.

"O Bilhete Único é um pouco uma caixa-preta, então a gente não tem tanta informação quanto a gente queria", afirmou, em entrevista exclusiva ao UOL (confira a íntegra neste link).

A caixa-preta do Bilhete Único

Toda vez que alguém carrega o BU, o dinheiro arrecadado vai para uma conta única. A verba é repartida entre SPTrans (responsável pelos ônibus, controlada pela prefeitura paulistana), as públicas Metrô e CPTM, e o grupo CCR (que inclui ViaMobilidade e ViaQuatro).

Representantes das empresas públicas e privadas reúnem-se mensalmente para discutir essa partilha no Convênio de Integração Operacional e Tarifária.

Responsável por mais da metade das viagens na cidade de São Paulo, a SPTrans é a primeira na fila na hora da divisão e fica, hoje, com 58% do dinheiro.

Logo depois vêm as concessionárias — primeiro, a ViaQuatro, pela linha 4-Amarela; na sequência, a ViaMobilidade, pela linha 5-Lilás; depois, a ViaMobilidade de novo, pelas linhas 8 e 9. Hoje, elas recebem juntas cerca de R$ 10 milhões por dia.

Nas atas das reuniões, obtidas pelo UOL, não há menção sobre quanto Metrô e CPTM devem receber.

O convênio diz a ordem de prioridades nos repasses, mas não diz como é feito o cálculo para a partilha.

Mais de uma fonte relatou, em off, que o governo de São Paulo dificultaria o acesso aos dados dos repasses.

O UOL apurou que ViaMobilidade e ViaQuatro receberam juntas R$ 2 bilhões de repasses em 2022. Isso para transportar cerca de 500 milhões de passageiros.

Já Metrô e CPTM carregaram mais que o dobro (1,23 bilhão de passageiros transportados), mas ficaram só com R$ 460 milhões no período. Em 2018, antes das últimas concessões à ViaMobilidade, Metrô e CPTM receberam R$ 1,8 bilhão.

'Informações complexas'

O UOL conseguiu os valores após uma saga junto a fontes, às assessorias de imprensa dos órgãos e via Lei de Acesso à Informação.

Um deles respondeu com as palavras "classificação: restrita", grafadas em letras amarelas. Outro pediu prorrogação de prazo para responder, por se tratar de "informações complexas".

Especialistas criticam a falta de transparência do governo com relação aos repasses do BU.

"Todos os documentos jurídicos, contábeis e administrativos que envolvem a matéria devem ser, a princípio, públicos", diz o advogado Augusto Neves Dal Pozzo.

"É gravíssima a falta de transparência", acrescenta o geógrafo Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). "Isso indica uma tentativa de se esquivar das discussões de qual é o custo real desse modelo."

Questionado sobre a sustentabilidade desse modelo, o governo respondeu, via STM (Secretaria dos Transportes Metropolitanos), que Metrô e CPTM recebem compensações através de um termo de "recomposição tarifária", firmado em 2022.

Segundo o governo, o Metrô recebeu R$ 291 milhões extras; a CPTM, R$ 235 milhões. Esse dinheiro vem dos cofres públicos.

Ao UOL, o secretário Rafael Benini admitiu que o modelo, firmado por governos anteriores, é insustentável. "É um cenário que vai ficar cada vez mais inviável."

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Imagem: Arte/UOL

Prioridade às privatizadas

O Bilhete Único foi lançado pela então prefeita Marta Suplicy (à época no PT), em 2004.

Era usado para ônibus, mas já estava preparado para atender CPTM e Metrô — a integração só começou a valer um ano depois, quando o prefeito era José Serra (PSDB) e o governador, Geraldo Alckmin (então no PSDB).

O Convênio de Integração Operacional e Tarifária foi firmado em 2005, originalmente entre SPTrans, Metrô e CPTM.

A ViaQuatro entrou no comitê em 2007, após a concessão da linha 4-Amarela (que só foi inaugurada em 2010).

Foi a partir da entrada da ViaQuatro que as concessionárias conquistaram, por contrato, prioridade nos repasses antes do Metrô e da CPTM.

Em 2017, no governo Alckmin, a ViaMobilidade ganhou a concessão da linha 5-Lilás. Em 2022, no governo João Doria (PSDB), a empresa assumiu as linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda.

O atual governador já sinalizou que pretende conceder à iniciativa privada todas as linhas do Metrô e as linhas 10-Turquesa, 11-Coral, 12-Safira e 13-Jade da CPTM. As linhas 7-Rubi, 14-Ônix e 17-Ouro também estão na mira.

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Imagem: Arte/UOL

Onde vai parar esse trem

Tarcísio passou o monitoramento das concessões da STM para a SPI.

A primeira consulta pública do órgão foi publicada no dia 3 de outubro para "aprimorar" uma resolução que vai considerar "circunstâncias atenuantes" a concessionárias que devem multas ao Estado. Em outras palavras, uma resolução que vai dar um desconto às empresas.

Quinze dias depois, a SPI disparou um comunicado informando o número de passageiros transportados pelas linhas operadas pela ViaQuatro e pela ViaMobilidade: ao todo, 147 milhões no terceiro trimestre de 2023.

Não há nenhuma linha sobre o número de passageiros transportados pelo Metrô e pela CPTM — no período, mais de 340 milhões.

Segundo especialistas, concessões precisam de bons contratos para funcionar.

"Seria melhor o Estado fazer contratos com diferentes empresas para cada uma das operações — assim, as funções ficam mais claras e o poder público teria mais controle para fiscalizar", diz Rafael Calabria, do Idec.

"O modelo já está insustentável: cada vez que entra uma nova concessão, a partilha vai ficar cada vez mais difícil, até que vai acabar a fatia da pizza para todo mundo."

Ao UOL, o secretário Rafael Benini disse que os futuros contratos de concessões devem ser melhores para não onerar o Estado. "Nunca vai ter um contrato perfeito. Você sempre pode aprimorar", ponderou.

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