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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Eleição vira campo arqueológico de escavação de vídeos antigos

Entrevista de Jair Bolsonaro para o jornal The New York Times em 2016 - YouTube/Reprodução
Entrevista de Jair Bolsonaro para o jornal The New York Times em 2016 Imagem: YouTube/Reprodução

Colunista do UOL

11/10/2022 04h01

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Pela primeira vez, as eleições presidenciais de 2022 colocaram no mesmo ringue dois candidatos que já tiveram a experiência de governar o país.

Pela lógica, então, os debates entre os postulantes ficariam centrados entre o que um produziu e o que outro tem produzido, num ensaio de plebiscito sobre dois modelos de gestão. Faltou combinar com a lógica.

Na virada do primeiro para o segundo turno, o que tem pautado e mobilizado eleitores é a escavação de episódios e vídeos antigos para constranger e/ou expor a vida pregressa dos presidenciáveis.

No caso de Jair Bolsonaro (PL), a vida em rede tem funcionado como um campo arqueológico de onde saltam declarações ditas antes de o deputado do baixo clero sonhar em ser eleito presidente.

Em uma disputa que colocou o misticismo e a religião no epicentro do debate político, causou embaraço um vídeo antigo em que ele participa de uma reunião em um templo maçônico. As imagens provocaram impacto em um conjunto de eleitores religiosos que associam, por ignorância e difamação histórica por líderes como Silas Malafaia, o grupo ao satanismo. Sabendo disso, algum espertinho decidiu inserir no vídeo antigo protagonizado pelo presidente — antes de ser presidente, vale frisar — uma falsa imagem de Baphomet, criatura simbólica também erroneamente associada ao demônio.

Nada provocou mais comoção, porém, do que um outro vídeo da era pré-Paulo Guedes em que Bolsonaro descreve a um repórter estrangeiro a sua disposição de comer um indígena durante um ritual. A declaração deveria causar espécie pelo que é: uma mentira alucinógena e deslavada que acusa apenas a ignorância e o desrespeito do presidente em relação aos povos indígenas. Afinal, os povos citados não são canibais nem nunca foram.

Mas, nas eleições de 2022, mentira tem perna longa e se desdobra em rabo e chifre, fazendo com que o feitiço se volte um dia contra o feiticeiro.

Não bastasse a má gestão da pandemia, o atraso na compra de vacinas, as suspeitas no Codevasf e outros problemas da atual gestão, Bolsonaro teve de correr para se livrar da fama de "canibal".

Mesmo tendo proferido a frase/balela de peito aberto, ele acionou o Tribunal Superior Eleitoral para tirar do ar os vídeos que o associavam à prática. Sinal dos tempos.

Bolsonaro também virou alvo por declarações feitas antes de chegar à Presidência, como o dia em que disse ao CQC que já deu uns "sopapos" em mulher, flertou com a zoofilia ou quando defendeu, à revista Isto É Gente, o aborto como uma "decisão do casal".

Naquele tempo a estratégia do hoje presidente era conseguir fama e atenção, custasse o que custasse. Deu certo. O preço agora, quando precisa se comportar como um mocinho para não assustar um eleitor já apavorado, é um confronto com o próprio espelho.

As frases desenterradas tornam o atual presidente vítima da mesma estratégia que tenta armar contra adversários. Quase sempre as armadilhas partem de pressupostos reais e são tiradas do contexto para gerar confusão e pânico social.

É o que acontece quando seu adversário é confrontado com episódios antigos, e muitas vezes já esclarecidos, como o assassinato de Celso Daniel e uma falsa ligação com os sequestradores de Abílio Diniz em 1989 ou mesmo a facada de Adélio Bispo em 2018. Isso sem falar de manipulações descaradas como as mensagens associando o petista a um homem identificado como Vicky Vanilla, um suposto líder satanista. O próprio Vanilla precisou vir a público se queixar da manipulação.

Com o mundo editável das redes, tomados de desconfiança e falsos profetas, não seria exagero afirmar que essas escavações de atos e frases do passado serão cada vez mais presentes nas eleições do futuro. Mal chegamos ainda à era da deep fake.

Muitas vezes essas escavações viralizam nas redes e servem como armas da própria propaganda da campanha oficial. Uns se alimentam dos outros.

É por isso que já se viu de tudo nas eleições de 2022, menos um debate claro de ideias para os próximos anos em temas-chave, como a economia — a prevalência do tema era só um pensamento desejoso antes do começo da campanha.

No vale-tudo, o passado é uma roupa que ainda serve e causa embaraço a quem teve todos os passos filmados e registrados nos últimos anos. Outro sinal dos tempos que não fazia o mesmo estrago na era do VHS.

A vida em rede produziu um desdobramento jurídico a respeito do direito ao esquecimento, evocado quando uma pessoa tenta impedir que um fato de sua vida, ainda que verídico, venha à tona para a exposição do público em vídeos e resultados de pesquisas. Todos, afinal, temos o direito de passar a régua e a borracha em períodos que hoje, revistos, causam apenas sofrimento e vergonha.

O que fomos um dia já não somos mais.

Uma das lições da atual eleição, porém, é que daqui em diante quem quiser botar o armamento das cruzadas para liderar a nação contra os bárbaros, inventados ou não, terá de saber que o direito ao esquecimento não se estende aos candidatos a presidente.