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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Debate: enquanto Lula pensa no dia seguinte, Bolsonaro bota fogo no parque

Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) participaram de debate da Band  - Marcelo Chello/AP
Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) participaram de debate da Band Imagem: Marcelo Chello/AP

Colunista do UOL

17/10/2022 10h28

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Durante seu governo, foram raras as vezes em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) se comportou como estadista.

Nos momentos mais agudos da vida nacional, como a pandemia, ele ainda se portava como o deputado de baixo clero que busca nos programas de auditório a atenção que nunca conseguiu como parlamentar.

As vezes em que se comportou como menino mimado quando era cobrado a adquirir vacinas ("só se for na casa da sua mãe", ele disse a um conterrâneo) e respeitar as orientações das autoridades sanitárias estão ainda frescas na lembrança, mas não só.

No debate de domingo (16) promovido pelo UOL, em parceria com a TV Bandeirantes, a TV Cultura e a Folha de S.Paulo, Bolsonaro mostrou que o figurino da quinta série é seu ponto fraco e também seu ponto forte.

Seu histórico de estripulias, como quando riu, andou de jet ski, evitou visitar hospitais ou familiares de vítimas da covid e imitou pacientes sufocados, o encurralou durante boa parte do encontro. Ali o ex-presidente Lula (PT) explorou à exaustão a ideia de que, como presidente, Bolsonaro se comportava como um bagunceiro do fundão da sala. Os riscos que essa postura representa ao país estão expressos no número de mortos na pandemia.

Ao mesmo tempo, foi essa postura juvenil e irresponsável que permitiu ao presidente esticar as cordas do aceitável e arrastar o espectador e seu adversário até a lama. Naquele lado do campo foi Lula quem se embananou.

A poucos dias da eleição, Lula se comporta como o candidato que pode assumir a Presidência em 1º de janeiro e precisa manter a cautela. Bolsonaro, pelo contrário, age como se nunca tivesse vestido a faixa presidencial e como se não tivesse pontes do futuro e do presente a preservar. Joga como se não houvesse amanhã.

A certa altura do debate, quando um Lula visivelmente alterado queimou seu tempo e deixou o adversário livre para ocupar o campo de ataque, Bolsonaro tentou colar no rival a imagem de um líder com o rabo preso com ditaduras de esquerda e governos imersos em problemas econômicos, como a Argentina.

Faz isso mesmo sabendo que tem uma relação bilateral com os vizinhos para cuidar no dia seguinte de uma eventual vitória — um problema e tanto para um país inteiro por conta da estripulia.

Mas quem viu o candidato petista no debate certamente se frustrou com a ausência de uma resposta à altura quando foi acusado de fazer vistas grossas ao que se passa em países governados por líderes de esquerda. Os casos mais graves e pintados por Bolsonaro como espantalhos são a Venezuela e a Nicarágua de Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Lula poderia ter dito claramente que repudia os regimes nos dois países. A urgência eleitoral, afinal, se sobrepunha ali à liturgia diplomática. Ele poderia ter dito que Bolsonaro não demonstra a mesma indignação com autocratas de países como a Rússia e a Arábia Saudita.

Não o fez porque tem o 1º de janeiro de 2023 em mente. Não quer correr o risco de assumir a Presidência em meio a um campo minado nas relações internacionais durante o processo interno eleitoral. É o que faria qualquer pretendente a estadista. Mas essa pretensão, dadas as condições da campanha, é hoje uma camisa de força para o desafiante.

O mesmo acontece quando Bolsonaro joga para o adversário a culpa e a gênese de toda a corrupção que já existiu no país. O candidato à reeleição faz isso mesmo tendo ao seu lado líderes e partidos que se lambuzaram em desvios na Petrobras e outros escândalos que explodiram antes, durante e depois das gestões petistas.

Lula acenou apenas a entendidos quando fez menção, sem citar nome, a Paulo Roberto Costa, funcionário de carreira da estatal que se meteu em falcatruas e se tornou o pivô das denúncias que detonaram a Lava Jato. O petista lembrou que o executivo era um preposto de um partido que hoje dá sustentação a Bolsonaro no Congresso: o PP (Partido Progressista), partido que teve mais filiados investigados em todo o escândalo.

Lula acelerou com o freio de mão puxado. Sabe que, se for eleito, no dia 1º terá de sentar e negociar com o mesmo PP de Arthur Lira e Ciro Nogueira, como terá de negociar com o PL de Valdemar Costa Neto, seu antigo aliado que neste ano alugou o terreno de sua legenda para o bolsonarismo. Talvez por isso não tenha devolvido no mesmo tom.

O tal "centrão" que todos amam odiar é conhecido pela flexibilidade com que move suas peças em direção ao poder. Se Bolsonaro perder amanhã, não haverá aliado fiel, com exceção dos bolsonaristas-raiz, que manterá o pé na barca. Por isso Lula (ou qualquer outro candidato que estivesse ali com um mínimo de noção do tempo) não pode meter o pé na porta agora.

Em outras palavras, a dimensão do que pode vir amanhã é o que parece segurar uma postura mais agressiva do petista neste momento da campanha.

Bolsonaro nunca teve essa preocupação. Sua prioridade é um projeto de curto prazo que se estende até onde vai o seu nariz. Só que nesta guerra, ele avança em jardas botando fogo no parque sem encontrar resistência.

Pode bater a cara no muro amanhã, como aconteceu durante sua gestão, marcada por conflitos com seu antigo partido, o PSL, por crises institucionais intermináveis (com o Supremo, com parte dos governadores e prefeitos e também com o Congresso) e diplomáticas, como quando seus filhos e ministros lançavam ofensas xenófobas contra a China, maior parceiro comercial do país.

Bolsonaro faz o mesmo ao usar o debate como um campo de provocações e ofensas não só ao rival, mas também contra a Argentina, a Colômbia e outros vizinhos.

Bolsonaro contrata assim uma crise de médio e longo prazo para ganhar terreno agora no campo da eleição.

Mas basta ver no discurso de eleitores até ontem em cima do muro em relação ao medo de que o Brasil se torne um pastiche da Venezuela para perceber que essa conversa pode não ter pé na realidade (os governos petistas não aparelharam o Judiciário, não cooptaram as Forças Armadas e não perseguiram imprensa ou religiosos em seus mandatos), mas tem apelo eleitoral.

Para o eleitor amedrontado e bombardeado diariamente por associações indevidas de candidatos de esquerda a regimes autoritários ou pânico moral, relacionado a uma falsa liberação das drogas, por exemplo, a cautela de Lula pode ser interpretada como admissão de culpa.

Por isso é tão difícil debater com um franco-atirador como Bolsonaro. Ele não está preocupado com o futuro nem com a veracidade do que diz. Quando o adversário pensa em responder a uma acusação caluniosa, outras duas já foram produzidas. Vai ganhando campo assim, conduzindo as eleições e um país inteiro no caminho do nada em direção ao isolamento.

Bolsonaro sempre foi isso: um brigão inconsequente.

Esperava-se que Lula e seus estrategistas estivessem preparados para isso. As evasivas mostram que não dá para pensar (ainda) no futuro próximo sem deixar a retaguarda protegida dos ataques imediatos abaixo da linha da cintura.

Nem sempre deixar Bolsonaro falar sozinho é má estratégia (com um pouco de tempo e confiança, ele escancara o que pensa do Brasil e dos brasileiros, como quando fala sobre o Nordeste, criminaliza uma comunidade inteira no Rio ou sexualiza jovens de 14 e 15 anos em entrevistas para podcast).

Mas deixar Bolsonaro agir como exército que bate em retirada queimando pontes e plantações tem seus riscos.

Em algum momento Lula vai ter de escolher se quer terminar a campanha em paz com líderes notadamente simpáticos a ele ou ganhar a eleição. Quem vota ou pretende votar nele com um pé atrás, tendo diante da escolha a rejeição a Bolsonaro, merece respostas mais assertivas além de desvios de rota quando o assunto são erros conhecidos de velhos governos, inclusive os seus.

Não tem problema em dizer que daqui pra frente muita coisa, inclusive o círculo de aliados, vai ser diferente. Problema, para ele, é deixar Bolsonaro falar sozinho sob o risco de ganhar mais quatro anos para fazer o que faz e depois posar de limpinho em ano de eleição.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL