Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
8 de janeiro solapou base populista fundada em 'povo puro x elite corrupta'

Jair Bolsonaro (PL) praticamente gabaritou, durante seu governo, o check list do populismo mais barato.
Fez isso buscando uma relação direta, e não institucionalizada por meio de partidos, com as massas. Essas massas se organizavam debaixo de uma ordem direta resumida no slogan "Brasil acima de tudo".
Nesse amontoado não haveria diferenças, injustiça, exploração, contextos ou identidades culturais diversas. Todos deveriam deixar as subjetividades de lado e se unir debaixo de uma ideia de nação prestes a ser purificada.
Uma estratégia básica de qualquer líder populista é contrapor essa ideia de povo "puro" contra uma elite política corrompida.
A crença de que esse povo puro, unido e destituído de diferenças, era capaz de enfrentar políticos, burocratas e juízes organizados em uma espécie de confraria do mal mobilizou o discurso e a base de apoio de Bolsonaro por anos.
A pegadinha escondia uma inconsistência básica: esse líder popular, ao destronar grupos políticos até então hegemônicos, não moralizou o sistema de governo. Pelo contrário: o corrompeu em outros níveis, mas deixou as pegadas protegidas sob uma nova linguagem e sigilos de 100 anos (decretados nada menos que 1.108 vezes ao longo do mandato).
Bolsonaro atravessou o rubicão se apropriando de duas instituições: o cidadão de bem e os militares.
A lenda urbana dizia que essas eram as últimas instituições não corrompidas pelo poder.
Era uma balela: a corrupção foi uma marca dos regimes militares e se a impressão hoje é outra é porque a propaganda oficial se impôs e se ocultaram erros e desvios. Nada disso podia ser divulgado e quem o fizesse estava condenado ao desaparecimento.
Na construção dessa cruzada moral e espiritual guiada pela massa sobrava a ilusão de que o povo armado jamais seria escravizado e que, através da violência e da abolição dos poderes, estaria automaticamente instituído o governo dos bons.
O atentado contra as sedes dos Três Poderes no dia 8 borrou a maquiagem dessa lenda.
A fantasia de querubins vestida pelos justiceiros não sobreviveu a dois minutos de apuração jornalística.
O site Metrópoles, por exemplo, identificou entre os invasores do Congresso — desses que filmaram o próprio crime como se estivessem gravando a chegada dos Aliados à Normandia — um homem de 48 anos com diversas passagens pela polícia. Ele responde a um processo por improbidade na Justiça do Distrito Federal por supostamente fraudar a contratação de artistas para um rodeio sobre rodas, seja lá o que isso signifique.
Outro popular iluminado estava tão engajado em limpar o Brasil da corrupção que até se esqueceu que era filho do dono de uma construtora do Pará que, sob Bolsonaro, se tornou campeã de contratos com o governo federal. Nada que parecia afetar seu interesse sincero e desinteressado em cerrar fileiras com o povo eleito.
Na massa popular tem também quem vai às manifestações de Porsche e ostenta uma vida de luxo, entre viagens e hotéis cinco estrelas, mas que na hora de pagar pelos crimes pede acesso à Justiça gratuita sob a alegação de não ter dinheiro para bancar sua defesa.
(Teria ele a mesma vertigem da extremista que nem quando foi a Dubai sentiu tanto frio na barriga quanto no dia em que subiu no telhado do Congresso?)
Um outro, acusado de tramar um atentado a bomba no Aeroporto de Brasília, era funcionário de Damares Alves, ex-ministra que fez de sua passagem pelo governo uma luta do povo cristão contra demônios e as supostas perversões de seu tempo.
Mas ninguém entre tantos invasores encarnou melhor a ausência de espelho em casa do que uma patriota de 67 anos que viralizou após defecar em um dos banheiros do Supremo Tribunal Federal e prometer, após o alívio cômico e intestinal, sair de lá quebrando tudo.
"Vamos para a guerra, vamos pegar o Xandão agora", disse Maria de Fátima Mendonça Jacinto Souza, uma exaltada bolsonarista que viajou de Tubarão, em Santa Catarina, para fazer a revolução em Brasília.
Nem parecia a mesma Dona Fátima que, em 2014, foi condenada por tráfico de drogas com envolvimento de menor de idade.
A lista de patriotas de Taubaté, que agora se somam a 39 denunciados oficialmente por quebrar e/ou surrupiar patrimônio público na invasão, confirma a suspeita de que aquele parente bolsonarista que nunca deu exemplo nem para os cachorros da rua não era um caso isolado de disfunção cognitiva.
Não deixa de ser curioso que a traficante de Tubarão tenha aceitado servir como massa de manobra de um líder populista que via ligação de adversários com o tráfico por conta de uma visita à periferia.
Bolsonaro e sua família conseguiram, com pouco tempo e muitos milhões em imóveis, destruir a ideia de que sua chegada ao poder representava a purificação moral de um sistema apodrecido.
O enriquecimento da família já havia bambeado a estrutura mais rudimentar de seu populismo barato.
Seus apoiadores, em algumas horas de invasão, fizeram o resto do trabalho.
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