Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Tragédia mostra que chuva produz estragos diferentes a depender do CEP
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
O prefeito de São Sebastião (SP), Felipe Augusto (PSDB), afirmou em entrevista ao UOL News que, há cerca de dois anos, lançou um programa de habitação que previa a construção de 400 casas populares em uma área da praia de Maresias, conhecido destino turístico do município mais atingido pelas enchentes que deixaram mortos e desabrigados no último Carnaval. Seria uma forma de retirar parte das famílias que já viviam, na época, em áreas de risco.
O plano, segundo ele, não saiu do papel porque um grupo de moradores de média e alta renda, entre eles empresários e famosos, reuniram-se com a prefeitura para dizer que não aceitaria os novos moradores na vizinhança.
A fala do prefeito produz duas revelações.
A primeira se refere à capacidade de mobilização das classes privilegiadas, que não precisam ter maioria numérica para pressionar o poder público a (não) fazer o que bem quer. Basta ter mais dinheiro e influência.
A segunda demonstra como é fácil jogar por terra a ideia equivocada segundo a qual só vive em áreas de riscos quem quer.
Sobre esse tema, lembro de uma fala da urbanista Raquel Rolnik durante uma entrevista para a TV Cultura em meados de 2011. O assunto, já na época, era se haveria solução para o problema de deslizamentos em encostas no Brasil.
Ela respondeu que "ninguém vai morar numa área de risco porque quer ou porque é burro" e sim porque "não têm nenhuma opção para a renda que possuem". "Estamos falando de trabalhadores cujo rendimento não possibilita a compra ou aluguel de uma moradia num local adequado. E isso se repete em todas as cidades e regiões metropolitanas", disse a especialista.
Segundo ela, obras paliativas de nada adiantam se, no lugar das áreas de risco, não houver uma definição sobre quais são os locais seguros de moradia a serem disponibilizados para a população. Foi o que o prefeito de São Sebastião tentou fazer.
O bairro de Maresias poderia ser um desses locais. Mas, segundo o próprio prefeito, a força da grana que ergue e destrói coisas belas falou mais alto: é mais fácil reservar o local a poucos moradores capazes de pagar mais de R$ 1 milhão por um imóvel (e são raros os imóveis lá que valem menos do que isso por ali) do que levar moradias populares, subsidiadas por bancos públicos, para perto.
A mobilização de moradores contra aquela "gente diferenciada" sem dinheiro para bancar casa em área nobre não é um fenômeno praieiro.
No início da década, a construção de uma estação de metrô em Higienópolis provocou arrepio aos moradores do bairro nobre de São Paulo.
"Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações?", perguntou uma moradora a uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo.
A frase coalhada de higienismo resultou, dias depois, em um protesto bem-humorado em forma de churrasco na futura estação. O "churrasco da gente diferenciada".
Em 2015, a repórter Talita Bedinelli, do El País, ouviu o seguinte de uma empresária da Vila Leopoldina que acabava de saber dos planos da prefeitura de São Paulo para destinar uma área vizinha a um condomínio de luxo a construções populares.
"Como é que pode? Vão tirar as pessoas da favela e colocar aqui? Não é discriminando todas as pessoas que virão, mas tem um monte de bandido no meio. Vai acabar com o sossego do bairro", disse.
Outros moradores fizeram coro.
A tragédia no litoral norte escancarou como a mesma chuva pode produzir estragos diversos a depender do CEP. A faixa costeira é quase sempre formada por condomínios com grandes lotes e casas bem projetadas em terrenos planos. Os estragos são evidentes, mas nada que se compare ao que acontece em casebres mal alicerçados pelos morros.
Em São Sebastião, uma rodovia separa ricos de pobres, condenados a viver onde é possível pagar — geralmente em áreas de encostas, onde o poder público só chega quando consegue na Justiça o direito de remover as famílias à força.
Imaginar que alguém vive ali por escolha ou é falta de noção ou é pura perversidade.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.