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Apelo por joias confirma relatório militar sobre Bolsonaro feito há 40 anos
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Em 1983, a Diretoria de Cadastro e Avaliação do Ministério do Exército produziu uma ficha de informações sobre um tenente de 28 anos de idade que dava trabalho e "mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de 'garimpo e ouro'".
O militar chamava a atenção de seus superiores devido a "demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente".
Chamado a se explicar, o tenente admitiu ter feito garimpo em uma cidade próxima de Jacobina, na Bahia, durante suas férias, em companhia de cinco militares, entre eles dois sargentos paraquedistas que estavam sob seu comando.
O tenente dizia que tudo não passava de um "hobby", um descanso para "higiene mental".
A conversa não convenceu seu superior direto, um coronel que se espantou diante de "sua grande aspiração em poder desfrutar das comodidades que uma fortuna pudesse proporcionar".
O próprio tenente dizia estar em busca de "outros meios" para "realizar sua aspiração de ser um homem rico".
O documento seria protocolado, quatro anos depois, em um processo no Conselho de Justificação do Exército no qual aquele militar ambicioso respondia por um ato de indisciplina e deslealdade por ter divulgado um artigo, sem autorização de seus superiores, exigindo aumento salarial.
O processo foi revelado em 2017 pelo repórter Rubens Valente, na Folha de S.Paulo, e ajuda a entender o ódio daquele antigo tenente em relação ao trabalho da imprensa.
Às vésperas da eleição de 2018, o jornalismo profissional era uma pedra no caminho de seus planos para se tornar presidente sob a fantasia de homem simples ungido pelos céus para salvar o Brasil de uma elite política corrupta e corrompida.
Quase quatro décadas depois, quando deixou a Presidência da República e viajou em direção a Miami (EUA) para não passar a faixa a seu sucessor, Jair Bolsonaro (PL) ainda agia como um tenente cuja "imaturidade é de um profissional que deveria estar dedicado ao seu aprimoramento militar, através do adestramento, leitura e estudos, e não aventurar-se em conseguir riquezas", como apontava a decisão final do relatório do Conselho de Justificação.
Parecia intacta a sua intenção permanente de "liderar os oficiais subalternos", conforme a descrição de seu superior na época, mas com uma diferença: no cargo de presidente da República, ele não foi nem poderia ser "repelido", nem em razão do "tratamento agressivo dispensado a seus camaradas", já diagnosticado no relatório, nem "pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos".
O ex-tenente que sonhava em enriquecer já não precisava se aventurar pela mata em busca de ouro.
Bastava autorizar o garimpo ilegal em áreas indígenas.
Ou enviar uma equipe de oficiais subalternos para a Base Aérea de Guarulhos (SP) para retirar um conjunto de joias oferecido pela ditadura da Arábia Saudita. Um conjunto avaliado em R$ 16,5 milhões, como revelou o jornal O Estado de S.Paulo.
As joias, segundo uma das muitas versões oficiais para a história, eram uma lembrancinha dos sauditas para a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Aparentemente ela só soube do mimo no dia em que postou em seus stories, entre risos, que tinha tudo aquilo em colar e brincos de diamante e não sabia.
Michelle se mostrou indignada com a "falta de cabimento dessa impressa (sic) vexatória", mas não se dignou a ler a própria história até o final.
A mercadoria, de fato, nunca chegou (se é que chegaria mesmo) a ela.
Mas só porque os servidores da Receita fizeram seu trabalho e não se dobraram a pressões de militares escalados por Bolsonaro, entre eles o então ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, para liberar o material retido na alfândega. Em vão.
As joias só poderiam sair do cofre da Receita de duas formas. Ou o destinatário pagava as devidas taxações e ficava com as joias ou declarava que eram de interesse público e as "doava" para o acervo da Presidência como patrimônio cultural.
Foi Bento Albuquerque quem trouxe as joias ao país. Ele, a princípio, disse não saber que havia R$ 16,5 milhões em joias em sua bagagem e só por isso não declarou as peças em detalhes. Depois ele demonstrou pleno conhecimento de que, por se tratar de um "presente oficial", fez de tudo apenas para incorporar as joias ao acervo brasileiro.
A Receita apura também as circunstâncias em que um segundo pacote, este com relógio, caneta e abotoaduras de uma marca de diamantes, chegou até Jair Bolsonaro sem ser retido pelas autoridades.
De Miami, Bolsonaro, o ex-tenente que se embrenhava pela mata em busca de riqueza, parece ainda tremer de febre diante de tudo o que reluz. Nem sempre é ouro. Pode ser diamante também.
Como em seus tempos de (mau) militar, nas palavras do general Ernesto Geisel, ele segue se queixando em público de seus contra-cheques — agora de R$ 33 mil.
"Compensa?", perguntou o ex-presidente, em uma palestra.
Diferentemente de seus tempos de tenente, ele já não é repreendido por suas "demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente". É chamado de "mito".
Prova disso é que, em seus dias finais como presidente, Bolsonaro recorreu ao menos quatro vezes a ministérios para obter as peças enviadas pelos sauditas, um dos maiores produtores de petróleo do planeta e possíveis interessados em negócios no Brasil.
Além das peças, ficou retida na alfândega também a tradução para o português do conceito de "presente".
Um amigo que não fala árabe mas entende de negócios costuma dizer que presente para impressionar o convidado é Playstation 5. Mais que isso o nome é outro.
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