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O Alquimista: ex-seguidores acusam guru de SP de charlatanismo e assédio

Ex-seguidores acusam Alcides Melhado, 65, autointitulado Alquimista, de estelionato, charlatanismo, lesão corporal, assédio e abuso de incapaz.

Melhado lidera a Escola de Alquimia Arte do Equilíbrio, espaço na zona sul de São Paulo. Ele está sendo processado por ex-seguidores, inclusive em ações trabalhistas.

Os acusadores dizem que o Alquimista afasta os discípulos de suas famílias e impõe regras de comportamento, exercendo controle afetivo, físico e financeiro.

Segundo especialistas ouvidos pelo UOL, diretrizes desse tipo caracterizam uma seita.

A reportagem conversou com cinco ex-seguidores, sob condição de anonimato, e um ex-funcionário.

Uma ex-seguidora relata que mudou-se do Sul para São Paulo e gastou cerca de R$ 100 mil com a seita.

Ela afirma que, por influência do Alquimista, quase perdeu um pé após uma fratura —Melhado é contra hospitais e defende a autocura.

Outra ex-seguidora alega que Melhado seduziu sua filha, herdeira de um colégio bilíngue tradicional de São Paulo e que segue na seita.

A mãe afirma que ele a afastou da família, com interesse financeiro, e tenta interditar judicialmente a filha.

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Procurado por email e telefone, Melhado não respondeu.

Alcides Melhado Filho, autointitulado Alquimista
Alcides Melhado Filho, autointitulado Alquimista Imagem: Reprodução

Da Bíblia a Merlin

Melhado é tratado como "professor". Os seguidores, como aprendizes e "apóstolos".

Ele é autor de uma série de livros e cursos sobre alquimia, nos quais mescla referências de várias mitologias, passando pela Bíblia, deuses gregos e o mago Merlin, entre outras lendas e entidades.

O Alquimista diz em seu site oficial que seu objetivo é promover equilíbrio espiritual, físico e mental.

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O que sempre digo a meus estudantes: o bom, o belo e o grande. Sempre ser jovem, sempre ser rico e nunca morrer. Alcides Melhado o Alquimista, em vídeo no YouTube

Ele já promoveu cursos em Brasília, Curitiba e Porto Alegre, entre outras cidades.

A escola já funcionou nos Jardins, área nobre de São Paulo, e hoje tem sede na Vila Mariana.

Na entrada há uma caixinha branca com a inscrição "Cartas para Deus" e um cartaz que diz "Salamm aleikum", que significa "que a paz esteja contigo", em árabe.

Na lojinha, há velas, livros, incensos, isqueiros e bijus com crucifixos, cruzes de Malta e pentagramas.

Ele também é presidente da organização religiosa Instituto de Expansão da Consciência Alma do Mundo. No ano passado, essa empresa comprou um terreno com dois prédios na Vila Mariana por R$ 1,8 milhão.

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Imagem: Reprodução

Ossos, kits e Cinderela

Melhado enfrenta ao menos quatro ações trabalhistas.

Ana*, uma empreendedora do Sul, diz que conheceu as ideias de Melhado em 2016, na internet, e começou a fazer os cursos dois anos depois.

Ela diz que ficou "encantada": seguia tudo o que o "professor" dizia e comprou CDs, DVDs, livros, incensos e velas da escola.

Ana conta que vendeu seus bens "a preço de banana" para financiar sua nova vida e foi trabalhar como voluntária na unidade da escola em Curitiba, em 2021.

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Ela acumulou dívidas nesse período. Em 2022, foi convidada para trabalhar em São Paulo e se sentiu lisonjeada —não pelo salário (R$ 2.000 como MEI), mas pelo que imaginava ser reconhecimento do "professor".

No fim daquele ano, ela quebrou dois ossos do tornozelo e recusou cirurgia para não desapontar o Alquimista.

Ele dizia que quem quebra ossos não consegue absorver conhecimento e não se "ilumina".

Ana conta que, quando estava com o pé machucado, ele a fez carregar fardos de 4 kg de velas e carrinhos de 20 kg da ArteBox ao correio.

ArteBox é um kit com os produtos da Escola de Alquimia —a assinatura anual custa R$ 1.392 (R$ 116 por mês).

Melhado constrangia seguidores mais próximos (os "apóstolos") a adquirir a ArteBox, segundo áudios obtidos pelo UOL.

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Além de exames médicos, Ana acrescentou ao processo judicial um laudo psiquiátrico, no qual diz que a experiência na Escola de Alquimia tem "características típicas de envolvimento em seitas coercitivas, como isolamento social, exploração financeira, abuso psicológico e uma dinâmica de poder centralizada em um líder controlador".

Bruno*, um estudante de biologia, participou da escola entre 2019 e 2024.

Ele relata que, no fim de 2023, sentiu dores ao urinar e pediu orientação ao Alquimista, que teria lhe passado ervas para chá e lhe dado velas para acender, o que iria curá-lo.

Dias depois, Bruno sentiu muita dor durante o trabalho na escola e foi ao hospital, onde descobriu que a infecção urinária havia atingido seu rim esquerdo.

Ele afirma que, ao voltar à escola, o Alquimista o chamou e pediu para anotar num papel o salário dele (R$ 1.000) e os valores de todos os cursos e retiros de que havia participado enquanto trabalhava ali.

Nas contas de Melhado, Bruno lhe devia dinheiro.

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Quem levou Bruno à Escola de Alquimia foi a estudante Carla*, sua namorada.

Eles dizem que decidiram sair quando descobriram que o filho do Alquimista, Nicolas Melhado, estava morto: o "professor" se referia ao filho como se fosse vivo, mas Nicolas havia morrido de leptospirose em 2017. A reportagem teve acesso à certidão de óbito.

"Foi um choque. Foi tipo um start, todas as peças se encaixaram: o que a gente vivia era uma mentira, a gente vivia num conto de fadas", diz Carla.

Melhado fez acordos, que totalizam R$ 185 mil até agora, para encerrar os casos de Ana, Bruno e Carla na Justiça.

Um caso ainda em aberto é o de Jocelino Martins, 40, ex-zelador da escola.

Ele diz que foi enganado sobre cargo e salário prometidos e que fazia hora extra, sem receber, nos fins de semana, por causa dos cursos —nessas ocasiões, afirma que era obrigado a comprar velas e incensos.

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Segundo Jocelino, o "professor" cobrava que ele limpasse o chão de joelhos. "Cinderela tá trabalhando?" era uma ironia que ele diz ter ouvido de Melhado.

Jocelino foi demitido no fim de 2024, segundo ele, porque Melhado notou que não conseguiria "convertê-lo". "Escola de bem-estar? Fui funcionário numa escola de bem-estar e eu saí com mal-estar."

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Imagem: Reprodução

Princesa da escola

Quem descobriu a morte de Nicolas foi a família de Lia*, uma jovem pedagoga.

Lia estudou em instituições de elite em São Paulo e viveu nos EUA e na Suíça. Entrou na seita aos 26 anos.

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Hoje com 31, ela é a atual namorada do Alquimista e alvo de uma ação de interdição de sua família: os pais argumentam que ela está incapacitada devido à influência de Melhado.

"A interdição é para protegê-la. Como cidadã, sinto que é importante impedir esse senhor, que já prejudicou muita gente", diz a mãe de Lia.

Lia é tratada como "princesa" na Escola de Alquimia, onde dá aulas de dança —a reportagem participou de uma delas (o ingresso custa cerca de R$ 170).

Melhado abre as aulas num pequeno anfiteatro, onde mantém uma mesa com uma cumbuca de madeira, cesta de maçãs, flores brancas e velas acesas.

Ele explica a aula do dia em uma lousa, usando expressões como "luz líquida", "flocos de neve", "consequências atmosféricas", "chama verde", "hóstia angélica", "quarta dimensão" e "transformações de DNA".

Um dos alunos pediu aos participantes uma palavra-chave ("shambala") para entrar em outro curso: o "encontro de alquimistas", às vésperas do Carnaval.

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Segundo o Alquimista, na sexta de Carnaval se abririam portões do "outro lado", o que poderia provocar um colapso do capital que só poderia ser impedido pelos alquimistas com a ajuda dos anjos.

O colapso narrado lembra a sinopse do filme "O Mundo Depois de Nós", disponível na Netflix. Outras referências citadas ao longo do evento foram o "Superman" e a série "Supernatural".

Ex-seguidores relatam que Melhado impunha uma série de proibições, entre elas ver notícias, ler livros, ir ao hospital, ter produtos da Apple ou comer alho, arroz branco, banana nanica e porco.

Entretanto, vez e outra citava referências de filmes e séries.

"Gostaria muito que vocês se espelhassem na ideia do 'The Chosen' [série da Netflix]. Jesus, os apóstolos não largam ele por nada, não dão as costas, estão sempre firmes ali, né?", diz, num áudio aos "apóstolos" ao qual o UOL teve acesso.

Melhado pediu ajuda num dos áudios para angariar recursos, citando que estava sendo processado. "Não é porque eu sou um alquimista, eu sou o super super, né?"

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Imagem: Reprodução

Pandemia e 'Frankenstein'

Ex-seguidores relatam à reportagem que foram atraídos pelas ideias do Alquimista na pandemia, quando buscavam equilíbrio espiritual.

Muitos dizem que não se vacinaram contra covid-19 por orientação do "professor", que é antivax.

Alquimia, nas palavras de Melhado, é "uma química elevadíssima que nenhum cientista jamais descobrirá". Segundo o "professor", o intelecto de um cientista é "limitado", pois "se limita dentro da razão, da lógica".

Em entrevista ao UOL, o filósofo e astrônomo Alexey Dodsworth afirma que a alquimia, na verdade, é uma precursora da química.

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"Era uma pré-ciência que se baseava na crença (correta) de que é possível metamorfosear elementos da natureza. Atualmente, por um lado, estuda-se a alquimia na filosofia, na psicanálise; por outro, há quem use a alquimia como guarda-chuva para tratar de 'transformações energéticas', o que quer que isso queira dizer. É uma espécie de coaching com termos rocambolescos", diz Dodsworth.

O filósofo afirma que "gurus" e "charlatães" costumam se apropriar de elementos dispersos de diferentes culturas para criar uma doutrina própria num "misticismo self-service".

"Charlatães fazem uma espécie de monstro frankensteiniano que reúne elementos de várias culturas diferentes ao bel-prazer deles."

Essa seria uma das características de uma seita. Outras são a invenção de um inimigo (o "outro lado", como diz o Alquimista) e a ideia de um "escolhido" (os predestinados que vão salvar o mundo).

Carla*, por exemplo, conta que ficou fascinada por esse universo. "Virei uma fanática", diz. "Aí, com o passar do tempo, você deixa de ser quem você é —e começa a ser moldada em quem ele quer que você seja."

Ela assinou um "contrato de riqueza" com a Escola de Alquimia, que dizia proporcionar "todas as condições necessárias para a prosperidade material e espiritual do contratante ainda nesta encarnação".

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O documento, sem validade jurídica, atribui como foro eletivo a "comarca de Deus" e foi assinado por "Presença eu sou", expressão espiritual ensinada por Melhado.

Em entrevista ao UOL, o acadêmico Davi Lago, integrante do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP e autor de "Brasil Polifônico", diz que há dois elementos no fanatismo hoje: devoção exacerbada a uma crença e hostilidade ao restante das crenças.

Segundo Lago, o "fervor" dos fanáticos inclui, na perspectiva da sociologia, um tipo de dissonância cognitiva.

"Até hoje é difícil, assim, retomar? Não tive coragem de voltar para minha cidade, tenho vergonha. Não sei como vou começar [a contar para os outros], imagina: 'O que que tu fez em São Paulo?' Participei de uma seita."

*nomes alterados para preservar os entrevistados

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