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Aprovada em 2004, renda básica universal perde espaço com Bolsa Família

A proposta para a criação de uma renda básica universal aos brasileiros foi sancionada em 2004. Passados mais de 20 anos, a volta do presidente Lula (PT) ao poder reacendeu o debate sobre a implementação do benefício incondicional. Mas, ele permanece distante de se tornar realidade.

O que aconteceu

Lei instituiu a renda básica da cidadania aos brasileiros. O projeto foi sancionado por Lula em janeiro de 2004, durante seu primeiro mandato, e estabeleceu um pagamento universal a todos os residentes no país. Conforme o texto, a distribuição deveria ser realizada em etapas, independentemente da condição financeira da pessoa.

O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do país e as possibilidades orçamentárias.
Lei 10.835/2004

Pagamentos deveriam começar a partir de janeiro de 2005. O projeto estabeleceu que a renda básica seria distribuída em etapas, priorizando inicialmente a população de menor renda. Para isso, deveriam ser especificados "cancelamentos" e "transferências de despesas" que permitissem a presença dos desembolsos no Orçamento.

Modelo idealizado prevê pagamento a todos os brasileiros. A proposta considera os conceitos da Constituição de 1988 para estabelecer o pagamento igualitário a toda população. "A erradicação da fome, da pobreza e a promoção de maior igualdade são objetivos fundamentais do bem-estar da população", afirma o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP), autor do texto que virou lei quando era senador.

Supremo cobrou a renda básica universal a partir de 2022. Após a pandemia do novo coronavírus, o STF (Supremo Tribunal Federal) atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União a favor do benefício como forma de cumprimento da legislação. A ação definiu o pagamento inicial a famílias em extrema pobreza.

Medida seria o primeiro passo para o recurso a toda a população. "A decisão do STF foi importante, mas o governo ainda não estruturou o programa completo, como manda a lei de 2004", avalia o advogado Gilberto Mendes. Questionado, o Ministério do Desenvolvimento Social não retornou o contato do UOL sobre a determinação.

O que vai acontecer

Grupo de trabalho com representantes da sociedade e do poder público discute a proposta. Um colegiado foi formado no ano passado após insistência de Suplicy. Ele conta que o grupo foi implementado a partir da recriação do CDESS (Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável), o "Conselhão" da Presidência da República, após uma carta enviada ao presidente Lula e a diversos ministros. O objetivo das discussões está focado na construção democrática de argumentos a favor de políticas sociais, a exemplo da renda básica.

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Renda inicial adequada seria de R$ 637 por mês. O valor, equivalente a R$ 21,23 por dia, é estimado pelo relatório apresentado no Conselhão e considera a linha de pobreza definida pelo Banco Mundial. Ainda que os mais pobres figurem como os principais beneficiados, o modelo prevê o desembolso a todos os moradores do Brasil, mesmo em lares de bilionários.

Colegiado entregou propostas para a implementação da renda básica. Após um ano de reuniões, o grupo de trabalho apresentou alternativas para o avanço da lei de 2004. A proposta central do relatório estabelece a saída de todas as crianças com até 14 anos da linha da pobreza como um ponto de partida adequado para a universalização da renda.

Proposta adicional prevê o início da distribuição em R$ 50 por habitante. Marcelo Lessa, diretor da RBRB (Rede Brasileira de Renda Básica) é um dos defensores da ideia. Ele acredita que o incremento inicial elevaria o orçamento de uma família de quatro pessoas em R$ 200 e estimularia a economia. "Quando a gente gera dinheiro nas baixas camadas, esse dinheiro não vai para aplicação [financeira]. Ele vai para a cadeia de consumo e aumenta o PIB", destaca Lessa.

Mais consumo, mais arrecadação. Ele prevê que esse dinheiro novo na cadeia de consumo geraria um aumento da arrecadação, o que seria suficiente para pagar 100% da renda básica em 45 anos.

Fonte para financiar a renda básica ainda é incerta. O combate à sonegação, o fim de isenções fiscais, a taxação das grandes fortunas e o uso dos ganhos com recursos naturais, a exemplo do petróleo e do minério de ferro, também aparecem entre as possíveis origens do dinheiro para garantir o benefício universal. "Nós podemos financiar a distribuição de renda com os royalties dos minerais ou da energia elétrica, que são patrimônios comuns a todos", defende Lessa.

Benefício a todos os brasileiros ainda depende de regulamentação. O início efetivo dos pagamentos depende da especificação sobre os valores pagos, as formas de distribuição dos recursos e, principalmente, a origem do financiamento do programa. "Enquanto isso não for feito, a lei existe, mas não tem efeito prático. A sua implementação não é apenas uma questão jurídica, mas uma escolha de prioridades", explica Mendes.

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O grupo de trabalho ainda não terminou e devemos apresentar, em breve, propostas sobre a melhor maneira para financiar a renda básica universal e incondicional.
Eduardo Suplicy, autor da lei pela instituição da renda básica

O que trava a implementação

Bolsa Família assumiu os holofotes. Criado um dia após a sanção da lei a favor da renda básica, o programa virou o carro-chefe do primeiro governo Lula. "O presidente Lula resolveu unificar e racionalizar o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o Cartão Alimentação no Bolsa Família", recorda Suplicy ao comentar sobre o auxílio aos mais necessitados, critério definido como a primeira etapa da distribuição universal prevista no texto de sua autoria.

A proposta da renda básica universal para todos integrou a lei 10.835, mas a lei 10.836, que estabeleceu a criação do Bolsa Família, tomou conta do espaço.
Marcelo Lessa, diretor da RBRB

Déficit fiscal dificulta a implementação da renda universal. Os esforços do governo federal para cumprir as metas definidas pelo arcabouço fiscal também atuam contra o avanço do benefício universal. "Nós não temos coerência e consistência na relação entre o Estado fiscal e o Estado social que acolha a renda básica", lamenta Aldaíza Sposati, professora sênior da PUC-SP.

Visão assistencialista derruba apoio à renda básica. Ainda que toda a população seja beneficiada pela medida, Lessa critica a avaliação dos governos, de esquerda e de direita, que veem a proposta como uma simples ferramenta para auxiliar a população mais necessitada. "A academia e os políticos negligenciam a importância da distribuição de renda para a questão do desenvolvimento econômico."

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Há um conflito no entendimento da renda básica como um direito. É aceito, ideologicamente, que benefícios monetários só podem ser destinados a pessoas que estão no rés do chão. Não é pelo reconhecimento da dignidade humana.
Aldaíza Sposati, professora sênior da PUC-SP

Exemplos de sucesso

Alasca é um caso bem-sucedido de renda básica. O estado norte-americano estabeleceu um pagamento anual a todos os seus habitantes com base na distribuição dos royalties de petróleo. Após a descoberta do combustível, a sociedade local concordou com a criação de um fundo para o armazenamento de recursos em benefício das gerações futuras.

Eles pegam 25% dos royalties desde 1976 e, a partir de 1982, passaram a distribuir 50% dos dividendos. Começou com US$ 50 por pessoa e, no ano passado, foi distribuído um pouco mais de US$ 1.250 para 100% da população do Alasca.
Marcelo Lessa, diretor da RBRB

Pagamentos anuais não são vistos como adequados. Apesar de elogiados, o exemplo do Alasca resulta em desembolsos uma vez por ano à população, prática vista como inadequada entre os defensores da renda básica universal. "O economista que decidiu fazer a distribuição anual nunca chegou no final do mês e achou a conta dele zerada", satiriza Lessa.

No Brasil, o papel de destaque é assumido por Maricá (RJ). Assim como o Alasca, a cidade localizada na região metropolitana do Rio de Janeiro, com pouco mais de 200 mil habitantes, também trabalha no modelo de distribuição de renda a partir dos royalties do petróleo desde 2013. Os pagamentos são realizados em créditos de Mumbuca, moeda social aceita no comércio local. A prefeitura afirma que o benefício atende a 71 mil moradores com R$ 230 mensais. Participam do programa as pessoas com renda familiar de até três salários mínimos.

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Esse modelo pioneiro tem impulsionado a economia da cidade. São mais de 16 mil estabelecimentos credenciados, com a moeda movimentando cerca de 22% da economia local.
Washington Quaquá, prefeito de Maricá

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