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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem é você no navio à beira do colapso em 'Triângulo da Tristeza'?

Charlbi Dean e Harris Dickinson - Divulgação/Neon
Charlbi Dean e Harris Dickinson Imagem: Divulgação/Neon

Colunista do UOL

08/03/2023 04h01

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Há pelo menos uma cena antológica em "Triângulo da Tristeza", longa de Ruben Östlund vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Oscar de melhor filme, direção e roteiro original em 2023.

É quando um jantar é servido aos passageiros de um cruzeiro de luxo logo que o navio adentra em águas turbulentas.

Por conta da tempestade, os convivas mal conseguem ficar de pé. Pratos e taças deslizam pelas mesas de toalhas bem decoradas. Garrafas rolam pelo chão. O capitão vive bêbado e não parece se incomodar em deixar o navio ao léu.

Até as ostras servidas com pompa sabem que a tragédia é iminente, mas todos ali são treinados e orientados a fingir que nada acontece. Uns fingem que está tudo bem e outros fingem que acreditam. Pagam (ou recebem) para isso.

Lembram, em algum momento, o negacionismo de autoridades e empresários brasileiros que durante dois anos fingiram que a pandemia não existia ou não era tão grave assim. E também os barões de praias destruídas pelas chuvas que hoje ignoram os alertas, os destroços e os riscos de novas tempestades para seguir servindo (ou melhor, mandando os empregados servirem) os turistas em busca de descanso.

No filme, os milionários de estômagos embrulhados mantêm o prumo até onde podem. A tripulação serve champanhe e pratos sofisticados sem desmanchar os sorrisos. Há uma razão para sorrirem e dizerem "sim" o tempo todo, e isso é explicado logo nas primeiras cenas.

Bem alinhados, os convivas bebem e comem normalmente mesmo quando alguém da mesa ao lado começa a vomitar, dando início a uma sequência de jorros e expulsões de conteúdo gástrico que em segundos toma conta do navio.

Não há remédio contra o mal-estar no topo da civilização. No filme esse mal-estar é tratado à base de balas de gengibre e olhares indiferentes dos responsáveis pela faxina, acionados para limpar os carpetes encardidos pela êmese coletiva.

No salve-se-quem-puder, sobram no restaurante apenas o capitão, um socialista que finge comandar um navio de milionários, e um anticomunista russo que fez fortuna vendendo esterco para o mundo. Eles passam a duelar sacando do coldre (no caso, o celular) frases de Lênin, Margareth Thatcher e Ronald Reagan ditas em outro século e ali atualizadas como clichê.

Como num grupo de WhatsApp, eles discutem apaixonadamente enquanto o navio está prestes a ser atacado.

Não demora para os dois beberrões passarem a disputar o microfone de comando, de onde são disparadas notícias falsas e pregações políticas. Parece uma alegoria. E é.

Östlund claramente bebeu das mesmas águas tensionadas e tingidas com surrealismo por Federico Fellini em "E La Nave Va" (1983).

A viagem lisérgica de uma elite tonteada e carregada de neuroses é repaginada, numa alegoria escatológica, como um embate entre civilização e barbárie no século 21. Erra quem pensa que esse estado de natureza latente só se revela quando os náufragos vão parar numa ilha supostamente deserta.

A violência de sorrisos fartos e embriagados já mostrava os dentes quando a milionária cafona manda todos os funcionários deixarem o que estão fazendo para entretê-la pulando na água.

Ou quando o casal de idosos se queixa, durante o jantar, das restrições impostas pela ONU aos seus negócios, descritos como a matéria-prima para a consolidação da democracia no planeta. Eles são donos de uma indústria de granadas. Fabricaram o próprio fim.

Os milionários envelhecidos e entediados olham com desdém, e depois com inveja, para os jovens que embarcam naquele navio para destroná-los.

Ninguém é mais bajulado ali do que o empresário esquisitão e rejeitado que acaba de vender um app para o Vale do Silício. Entre todos, é ele quem pode se sentar à mesa do capitão (o que não significa muito quando tudo ali está por um fio).

No meio de tudo, como observadores privilegiados, está o casal em crise e que já entrou naquele navio num acordo tácito para evitar a guerra, uma guerra declarada numa discussão sobre papéis de gênero que estão e não estão dispostos a absorver naquela relação.

São o exemplo mais bem acabado dos influencers que transformaram em trabalho o que todos fazemos nas redes: performar. E eles performam o tempo todo. Performam para postar nas redes uma felicidade em exposição tão genuína quanto uma nota de R$ 3. Sim, aquele casal é uma multidão.

Se em "White Lotus" o público sente um prazer vingado ao ver os conflitos e fragilidades dos donos do dinheiro, em "Triângulo da Tristeza" o que se tem é enjoo.

Numa tentativa quase obscena de emplacar uma lição de moral ao fim da história, Östlund transforma o próprio filme em um desses realitys de sobrevivência na selva para mostrar que os donos do mundo agonizariam de fome e inanição se precisassem fazer o que pagam os tubos para alguém fazer por eles.

Lançados à própria sorte, ninguém ali sabe caçar, pescar ou acender a própria fogueira.

As posições de prestígio se invertem quando quem lava os banheiros se declara capitã. É a única das personagens que sabe como sobreviver e garantir a sobrevivência do grupo num local onde relógios, cartão de crédito e celulares não servem para nada.

Seria uma utopia? Longe disso. Ali até Rousseau teria de se rastejar para não ser pisoteado por quem só foi pisoteada a história toda.

Como as estruturas de um navio aparentemente indestrutível, as muitas camadas e revestimentos das relações de poder se desnudam no filme desde as primeiras cenas: os modelos que num primeiro plano parecem ser sujeitos e objetos de desejo, inclusive de corpos ideais, são tratados como marionetes até quando a demanda é sorrir.

A hierarquia entre clientes e serviçais é clara. Mas há outras. Elas se revelam também entre os empregados, a depender da cor da pele, a etnia e o idioma. Está no centro da mesa onde o casal bonitão discute quem vai pagar o jantar (Caio Castro, vem aqui). E no duelo entre herdeiros quatrocentões do velho mundo e os novos-ricos que despontam.

Com a exceção dos explorados de sempre, todos ali parecem ter a fórmula de como ganhar dinheiro promovendo furos nos cascos dos próprios navios. Só não sabem como evitar a catástrofe.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL