
Existe um mercado de falsa cura do câncer que vem crescendo no Brasil, apontam 16 profissionais de saúde ouvidos pelo UOL, incluindo médicos e psicólogos com pacientes oncológicos.
Esse mercado é baseado na venda de suplementos alimentares que, em muitos casos, não são liberados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) nem como suplementos.
A agência exige que medicamentos passem por uma série de testes científicos para serem regulamentados e comercializados.
Ao contrário de remédios, suplementos alimentares não são testados em humanos, mas a venda só pode ocorrer, seja lá qual for a finalidade, se as substâncias-base forem aprovadas pela Anvisa.
Nessa lista apontada por especialistas entra todo tipo de substância, e em nenhuma há comprovação científica de eficácia no tratamento contra o câncer.
Vender medicamentos ou qualquer substância que promete curar câncer é proibido pela agência.
Entre as substâncias mais usadas nesses suplementos, de variados nomes e marcas, estão Agaricus blazei (cogumelo do sol), Aloe vera (babosa) e Annona muricata (graviola).
Segundo especialistas, a principal explicação para esse fenômeno de consumo é a desinformação sobre tratamentos propagada em grupos de WhatsApp e redes sociais.
No Telegram, a divulgação de fake news sobre câncer cresceu quase seis vezes desde 2019, aponta uma pesquisa obtida com exclusividade pelo UOL.
O estudo foi coordenado por Ergon Cugler, pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e membro do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas.
A pesquisa avaliou, ainda, a quantidade de menções aos principais suplementos apresentados por pacientes oncológicos a médicos ouvidos pela reportagem.
Entre 2019 e 2024, houve um crescimento de 1.388% na quantidade de mensagens citando essas substâncias em grupos negacionistas no Telegram.
Das dez substâncias alternativas que pacientes mais apresentam aos médicos em consultório, apenas três estão no rol da Anvisa, podendo ser vendidas como medicamentos fitoterápicos no combate a outras doenças.
As outras sete nem sequer podem ser vendidas como suplementos.
"Suplemento não é remédio, portanto não deve ser usado com essa finalidade", diz a Anvisa em nota.
O submundo dos suplementos
Profissionais de saúde dizem ao UOL que houve um aumento significativo nos últimos anos de pacientes que chegam ao consultório afirmando usar substâncias alternativas por recomendação de amigos ou de usuários de redes sociais.
Se não chegam usando, chegam querendo usar, explicam Cristiano Rezende, diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia, e Elge Werneck, oncologista da Sociedade Americana de Oncologia Clínica.
"Mais da metade dos pacientes chega ao consultório tomando algo por orientação de terceiros ou com intenção de tomar", diz Werneck.
É uma maneira fácil de atingir um público desesperado, que procura alguma esperança. Quem tem doença incurável se apega a qualquer esperança. Cristiano Rezende diretor da SBOC
O número pode ser ainda maior, pois estima-se que existem pacientes que escondem de médicos o uso de substâncias alternativas junto ao tratamento convencional.
É o caso da professora Eliana*, 47, que trata um câncer de mama e usa cápsulas de folha de graviola à revelia de seu médico e do filho.
O motivo do segredo, explica Eliana, é o medo de ser julgada por seu oncologista.
"Vendedores sugerem que o paciente não conte para o oncologista [sobre o uso de suplementos]. Eles costumam dizer que profissionais da saúde são contra tratamentos alternativos porque não querem perder dinheiro. Muitos acreditam, e isso é grave", diz Cristiano Rezende.
Eliana, que deu entrevista sob condição de anonimato, afirma ter sido orientada dessa forma.
De onde vem a desinformação?
A venda de suplementos alimentares e substâncias naturais para cura do câncer costuma ser pautada em discursos conspiratórios e negacionistas, disseminados em mídias digitais.
Pesquisadora em desinformação nas redes sociais e professora da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), Gabriela Pívalo diz que o fenômeno é crescente.
"Negacionistas pegam o conhecimento científico, recortam e fazem um Frankenstein para justificar as próprias crenças. Usam da ciência para negar a própria ciência, e as redes sociais são o melhor disseminador dessas desinformações", diz.

Como funciona a rede de desinformação
O surgimento de curas falsas para o câncer é cíclico. As redes sociais, entretanto, facilitaram a disseminação desse tipo de fake news e a propagação de soluções ineficazes.
Vendedores se aproveitam disso. Eles se infiltram em grupos de Facebook e WhatsApp sobre câncer, explica o pesquisador Ergon Cugler.
Ali, compartilham vídeos e relatos de pessoas dizendo ter usado uma substância ou medicamento alternativo e se curado da doença.
Entre os vídeos compartilhados, há ainda relatos de médicos que endossam a eficácia da substância.
Os vendedores também divulgam links levando para o WhatsApp ou Telegram, onde pacientes podem comprar esses medicamentos.
O UOL participou por meses de um desses grupos.
Muitos vendedores propagam fatores de transferência, suplementos que supostamente ativam a melhora imunológica.
Quando novos integrantes surgem no grupo, o vendedor se oferece para fornecer mais informações por telefone.
"A vacina de covid-19 aumentou o número de casos de câncer pelo mundo, mas você não vai achar essa informação. A indústria farmacêutica não quer que você saiba. Por isso, se você tomou a vacina, seu câncer se desenvolveu por causa dela", diz aos usuários.
Ela afirma ainda que os suplementos cuidarão da imunidade, combatendo células cancerígenas, e dispara dezenas de vídeos de médicos e de pacientes curados milagrosamente.
"É todo um ritual de envolvimento", diz o coordenador do conselho da Americas Health Foundation, Stephen Stefani.
"Sempre partem da teoria de melhorar a imunidade, porque ativam aquela imagem de um paciente oncológico doente, com a imunidade baixa."
Esse discurso atinge a vulnerabilidade de pessoas com câncer e de familiares, desesperados pela cura. E as pessoas tendem a acreditar em relatos pessoais muito mais do que acreditam na ciência. Vera Bifulco psico-oncologista e membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida
O submundo dos tratamentos alternativos ao câncer é recheado de charlatanismos e picaretagem. O discurso de negar o tratamento convencional faz com que a doença progrida até ser tarde demais. Elge Werneck médico do grupo Oncoclínicas e membro da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO)
Intenção de ajudar pode causar estrago
O lucro com a falta de perspectiva de pacientes oncológicos envolve desde grandes empresas até pequenos comerciantes, daqueles que misturam ervas em garrafas e vendem a preço de banana.
"Nesse mercado, há dois tipos de agentes: os que oferecem soluções milagrosas na tentativa de ajudar e os que arbitrariamente enganam pacientes para ganhar dinheiro", afirma Stephen Stefani.
Graduanda em saúde pública, Anne Carrari, 50, foi diagnosticada com câncer de ovário metastático em 2015.
Ao receber a visita de uma amiga, ganhou dela uma garrafa com uma mistura aquosa e esbranquiçada. Era avelós.
A amiga disse a Anne que a mistura era anticancerígena, e que ela deveria tomar para ficar livre dos tumores. Anne se recusou.
"Perguntei ao meu médico sobre o avelós e ele me proibiu de usar; disse que poderia causar um estrago grande no meu tratamento", conta à reportagem.
Interferência no tratamento
Nutricionista oncológica do Instituto Vencer o Câncer, Gisele Vieira acompanhou o caso de uma paciente em quimioterapia que apresentou um dano grave no fígado.
A equipe não entendia o motivo do problema, já que aquele tratamento não tinha como efeito colateral qualquer problema hepático.
Já internada na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) beirando a falência no fígado, a paciente confessou que tomava há três anos um suplemento à base de ervas, vitaminas e minerais que nem o rótulo dizia o que tinha dentro.
"Ao avaliar algumas daquelas ervas, a gente descobriu que eram hepatotóxicas; ela tinha uma metástase no fígado. Precisou interromper a quimioterapia e ficar internada em estado grave na UTI para reverter o quadro", diz Gisele.
Especialistas ouvidos pelo UOL afirmam que a maioria dos pacientes oncológicos usa substâncias acreditando que, mesmo sem comprovação científica, elas ao menos não farão mal, o que é um mito perigoso.

Pacientes com câncer são alvos fáceis
"A realidade é que ninguém quer morrer", diz a psicóloga com foco em oncologia Ana Paula Manzolini.
Descobrir uma doença cujos tratamentos possíveis não garantem cura, ela afirma, é assustador, e a reação comum é tentar buscar alguma esperança.
Ana Paula conta à reportagem que teve pacientes que abandonaram a quimioterapia para fazer tratamento alternativo.
Quando decidiram retornar ao tratamento convencional, era tarde, já não havia mais tratamento possível.
"Cair nesse discurso pode ser irreversível", diz ela.
Procurada pela reportagem, a Anvisa afirma, em nota, que "de acordo com a legislação brasileira, suplementos alimentares não podem ter indicação ou finalidade terapêutica."
"Suplementos alimentares não são medicamentos e, por isso, não servem para tratar, prevenir ou curar doenças. Os suplementos são destinados a pessoas saudáveis e sua finalidade é fornecer nutrientes, substâncias bioativas, enzimas ou probióticos em complemento à alimentação."
Procurado, o Ministério da Saúde diz que vê com muita preocupação "tratamentos sem evidência científica vendidos como promessa de cura".
" Muitos deles (tratamentos não comprovados) são comercializados como suplementos, que têm fiscalização e controle bem menores que os medicamentos. Existe um comércio paralelo, com grupos de WhatsApp que circulam à margem da lei. Não temos dados quantitativos precisos sobre isso. É importante trazer essa discussão para a sociedade. Por vezes, pacientes podem estar ingerindo substâncias que interagem com a quimioterapia ou a imunoterapia, e esses tratamentos podem comprometer a realização do tratamento convencional. Portanto, é importante que o médico responsável oriente o paciente", completa a nota.
Fontes: Cristiano Rezende, diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia; Elge Werneck, médico do grupo Oncoclínicas e membro da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO); Gelcio Mendes, coordenador de assistência do Instituto Nacional do Câncer (INCA); Cristina Bonorino, coordenadora do Laboratório de Imunoterapia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA); Stephen Stefani, oncologista, coordenador do conselho da Americas Health Foundation e membro da Sociedade Internacional para a Farmacoeconomia e Pesquisa de Desfechos; Gustavo Schvartsman, oncologista clínico no Hospital Israelita Albert Einstein e integrante do Comitê Científico do Instituto Vencer o Câncer; José Luiz Pedrini, diretor do Instituto de Medicina, Pesquisa e Desenvolvimento em câncer de mama e membro da Academia Brasileira de Mastologia (ABMasto); Gisele Vieira, nutricionista oncológica do Instituto Vencer o Câncer; Gustavo Mendes, farmacêutico do Conselho Federal de Farmácia e ex-membro da Anvisa; Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa; Vera Bifulco, psico-oncologista e membro do Comitê Científico do Instituto Lado a Lado pela Vida; Luciana Inocêncio, psicóloga especialista em Psicologia Hospitalar e em Especialidades Médicas, pela Universidade de São Paulo (USP); Ana Paula Manzoline, psicóloga especialista em oncologia; Ergon Cugler, pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e membro do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV); Nicole Sanchotene, pós-doutoranda e coordenadora de projetos no NetLab UFRJ; Gabriela Pívalo, pesquisadora em desinformação nas redes sociais e professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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