Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.
'A boiada passou', diz diretor de 'Noites Alienígenas', filmado no Acre

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
"Parece uma cena de guerra", contou, por telefone, o diretor Sérgio de Carvalho, 42, na segunda-feira (27), dias antes da estreia nacional de "Noites Alienígenas".
Naquele dia, o cineasta ainda juntava os cacos dos estragos causados pelas chuvas que atingiram sua casa, onde fica também a sede da produtora Saci Filmes, no bairro Vila Ivonete, em Rio Branco. As enchentes deixaram milhares de pessoas desabrigadas no Acre.
"Precisei subir muita coisa para o mezanino da casa. Os equipamentos eletrônicos consegui salvar. Mas sofá e outros móveis eu perdi. Em meia hora, a água chegou à altura do peito."
A enchente teve início na noite de quinta-feira (23), dia da estreia antecipada na cidade do primeiro filme rodado no Acre a ganhar os prêmios de Melhor Filme e Júri da Crítica no Festival de Gramado. O longa levou também os Kikitos para ator (Gabriel Knoxx), atriz coadjuvante (Joana Gatis), ator coadjuvante (Chico Diaz) e menção honrosa a Adanilo Reis.
As chuvas atingiram muita gente que trabalhou no elenco de apoio e figuração do filme, o que levou a equipe a mobilizar campanhas para doações de cestas básicas aos atingidos.
No início da semana, um dos cinemas da capital acreana permanecia fechado; só reabriria quando baixassem as águas do rio Acre. Carvalho não foi à estreia em sua cidade porque precisou limpar a lama de casa.
Nascido em Valparaíso, no interior de São Paulo, ele se mudou para o Acre no início dos anos 2000. Tinha acabado de se formar em cinema, no Rio, e atuava como assistente de arte até que foi chamado para acompanhar uma viagem da atriz Lucélia Santos para um festival de cinema em Rondônia, onde ela lançaria um documentário.
"Foi uma aventura. Não conhecia a região Norte até então. Minha ligação eram os amigos da ayahuasca que viviam no Rio. Naquela época estava acontecendo muita coisa por aqui. Tudo era muito promissor. A bandeira era o desenvolvimento sustentável. As ONGs bombavam, e os povos tradicionais e indígenas estavam se fortalecendo."
Não demorou para Carvalho ser chamado a fazer vídeos de campanhas institucionais, como as de combate à biopirataria. "Comecei a trabalhar numa produtora do Acre. Minha ideia era ficar 15 dias e fiquei dois meses. Voltei para o Rio e logo depois fiz uma segunda viagem para cá. A viagem já dura 20 anos. Eu estava impactado com tudo o que estava acontecendo. Era um caldeirão. E eu era a única pessoa formada em cinema. Isso me permitiu viajar pela floresta. Era mais interessante estar aqui do que no Rio."
Na região, ele assinou a direção das séries "Nokun Txai - Nossos Txais", "O Olhar Que Vem de Dentro" e "Alimentando a Alma", e do documentário "Empate", sobre os companheiros do líder seringueiro Chico Mendes.
Carvalho descreve o Acre que conheceu recém-formado como "o oposto do que está acontecendo agora".
"Acabei de voltar da reserva Chico Mendes, em Xapuri. Estou com o coração partido. A coisa lá perdeu o rumo. A boiada passou, muita gente da reserva extrativista vendeu suas terras para fazendeiros de outros estados e o choque cultural, além da devastação, é muito grande", relata.
Em outubro de 2022, Jair Bolsonaro (PL), inimigo declarado dos povos indígenas e dos defensores das florestas, obteve mais de 70% dos votos na região.
"Noites Alienígenas" é a história dessa transformação.
Adaptação de um livro homônimo lançado em 2011 por Carvalho, o filme acompanha a rotina de jovens da periferia urbana de Rio Branco impactados pela guerra das facções do Sudeste que fixaram raízes no Norte.
Com os corroteiristas Camilo Cavalcante e Rodolfo Minari, o diretor precisou atualizar a cena de mais de dez anos atrás com as mudanças culturais e sociais que atravessaram a região. Foi o que "salvou", no filme, um jovem indígena do destino trágico contado no livro. Também foram incorporadas discussões sobre a ascensão das igrejas neopentecostais e o protagonismo feminino na região.
"Quando cheguei ao Acre, me impressionou a questão da dependência química. O crack estava tomando conta. Ao longo dos anos, assisti com muito assombro a reorganização das facções. A região deixava de ser uma rota de distribuição e se tornava também um centro de consumo. O pacto que havia entre as facções se rompeu nos anos 2010 e explodiram as notícias sobre assassinatos. As execuções eram filmadas pelo celular. Era a barbárie mesmo."
Em "Noites Alienígenas", essa barbárie é levada a outra dimensão. "Não queríamos mostrar sangue. Isso os jornais sensacionalistas já faziam. Queríamos sensibilizar o público de outras formas. Falamos da disputa de territórios, mas o filme todo tem só um tiro."
No longa, chama a atenção a dualidade dos personagens em um cenário também acinzentado entre o contexto urbano e a floresta, o centro e a periferia, a tradição e a modernidade. Essa dualidade é representada pelo personagem de Chico Diaz, espécie de bicho grilo que se torna traficante, mas foge da disputa entre facções e também atua como agitador cultural.
O diretor explica que o personagem é inspirado em uma geração de músicos e artistas que se mudaram para o Acre nos anos 1970 e 1980, atrás do Santo Daime, e foram ficando — alguns hoje permanecem dentro da doutrina, outros seguiram novos caminhos e se perderam, sobretudo após a popularização da pasta-base de cocaína.
"Aquele personagem é uma metáfora do Acre antigo, utópico, de resistência, que foi para lá com um propósito existencial", resume. "O que veio depois disso é o tráfico que assimilou o lado mais selvagem do capitalismo."
Considerado uma espécie de Meca da ayahuasca, o Acre é hoje o estado proporcionalmente mais evangélico do país. Carvalho conta que as igrejas têm feito um trabalho importante para romper o ciclo de violência do tráfico.
Ao mesmo tempo, a evangelização dos povos indígenas tem levado ao desaparecimento de manifestações artísticas e culturais tradicionais da região — para onde o arco dramático do filme desemboca quando a mãe indígena evangélica leva o filho viciado e jurado de morte a um ritual de ayahuasca para se reconectar com as raízes que ele renega.
Outro personagem arquetípico é o vereador Arnaldo Barros (Podemos), que ficou conhecido pelo trabalho como pastor na TV local e faz uma ponta em "Noites Alienígenas". "Quando você rompe com o crime, ou você é punido ou vai para a igreja. Há todo um ritual de 'descamisamento' e ele é uma figura importante neste processo."
O rio Acre, inundado nos dias anteriores ao lançamento, é também uma espécie de personagem de um longa atravessado por dualidades.
O filme serve como um contrassenso ao imaginário de uma região retratada em superproduções estrangeiras como "Fitzcarraldo" e "Anaconda". "Foi um trabalho inclusive para mim. Todo esse imaginário da floresta tropical veio comigo quando cheguei aqui. E eu não sabia, por exemplo, que tinha seca da Amazônia e a paisagem, em determinada época do ano, se torna árida, com muita poeira, como no sertão."
Carvalho lembra que "Noites Alienígenas" não é o primeiro filme do Acre, como alguns acreditam, e sim o primeiro longa a ganhar tela grande e empilhar prêmios. "Essa região, nos anos 1970, observou um boom de produções em VHS e Super 8. Hoje, com as políticas de descentralização, muita coisa interessante, como curtas e médias-metragens, estão acontecendo. A região tem muitos grandes cineastas, como o Zezinho Yube e o pessoal da [produtora] Vídeo das Aldeias."
O caminho agora é uma trilha aberta mata (e Brasil) adentro.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.