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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como o Tupperware, hoje em crise, virou símbolo da hospitalidade brasileira

Pote plástico com alimentos: estamos perto do fim? - Getty Images
Pote plástico com alimentos: estamos perto do fim? Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

16/04/2023 04h00

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"Oh, meu Deus."

A interjeição encerrava uma longa discussão, permeada por um pequeno empurra-empurra, à beira da porta.

Com uma travessa que poderia alimentar um batalhão do exército em incursão na selva, mal percebi o constrangimento do total de duas visitas avessas a levar para casa ao menos um naco do nosso bolo de cenoura.

Percebi, ao fim do diálogo, que havia herdado não só os potes e as receitas da vó Olga, mas o poder da insistência e da oratória: "Leva, tem muito só para nós. Vai que dá fome na viagem. E outra: se ficar aqui vai estragar tudo."

Os argumentos não eram dos mais felizes, mas num país em que sobras e pecados andam de mãos dadas o recurso serviu como cartada final: pela janela do carro, as visitas agradeciam mas se questionavam o que fariam com aquele carregamento com cobertura de chocolate dividido em um conjunto de Tupperware.

"Na volta você me traz."

Como faziam (e fazem) meus tios e minhas tias, o recurso é ainda hoje uma espécie de pré-contrato. Garantia de que os Tupperwares e as visitas voltariam em breve. Com as embalagens lotadas até a tampa de outras iguarias, de preferência.

Quem acompanhou a oscilação da Bolsa nos últimos dias provavelmente se assombrou ao saber que as ações da empresa responsável pela fidelização das visitas no Brasil chegaram a cair 50% na segunda-feira (10).

A empresa, com sede nos EUA, está à beira da falência — e, com ela, ficamos a um fio de ver desaparecer de nossas cozinhas um sobrevivente das mudanças culturais e estéticas que desgraçadamente já varreram da vista as jarras de abacaxi, os pratos duralex, o copo americano (que não é americano e aceita de café a cerveja, não exatamente nessa ordem), os galos do tempo, a caneca de ágata e o jornal impresso.

Para muita gente (eu, pelo menos), tão surpreendente quanto saber da decadência da empresa foi descobrir que ela é uma invenção americana, e não o primeiro cartão postal do Brasil que os visitantes portugueses avistaram quando chegaram por aqui em caravelas. (Fosse no século 20, os colonizadores encontrariam minha avó com os potes enfileirados e avisando que tinha acabado de passar um café.)

A empresa foi fundada em 1946 por um engenheiro de New Hampshire chamado Earl Tupper.

Sim, o nome da invenção, em tradução livre, significa "louça de Tupper".

Minha sogra, que no momento em que escrevo organiza as embalagens plásticas de casa, guardadas na gaveta mais nobre e profunda da cozinha, ainda se lembra das "festas do Tupperware" em meados da década de 1970.

Assim como nos EUA, os produtos não eram vendidos em lojas físicas, mas a partir de revendedoras (tipo da Avon) que apresentavam as novidades em reuniões com amigos e vizinhos.

Nesses encontros, me conta aqui a minha sogra, cada participante levava uma iguaria para ser guardada nos potes de plástico e testar sua viabilidade. Havia também jogos e gincanas. Quem acertasse ou vencesse os desafios, levava um kit para casa.

Por um tempo, a ostentação de Tupperware era símbolo de status: não eram produtos baratos em um país onde geladeira ou mesmo comida de sobra eram privilégio de poucos.

Pois é: naquele tempo nem era preciso botar uma Poltrona Charles Eames na sala para impressionar as visitas e ouvir: "Eita, os caras tão bem, hein?"

Bastava um bolo no pote de plástico.

Ouço ainda hoje dos parentes mais velhos que eles e seus pais já passaram "muita vontade na vida" (leia-se fome) e que cozinhar além da conta não é exagero, mas sinal de fartura.

Não tem quem saia ileso de uma visita do tipo.

"Melhor sobrar do que faltar", dizem 11 em cada 10 parentes que visitamos no fim do ano. A lógica tem uma pergunta embutida: por que cozinhar no dia seguinte se podemos requentar o almoço de ontem?

O problema é quando o almoço do dia 1º de janeiro dormita em um Tupperware no fundo da geladeira até a Páscoa.

Na vida adulta, poucos debates são tão acirrados entre os casais quanto os que precedem a decisão: "E aí, jogamos o estrogonofe do ano passado junto com o Tupperware ou você tem coragem de abrir e lavar?"

Nunca é uma escolha fácil.

Earl Tupper provavelmente não imaginava que sua invenção, ao longo dos anos, representaria tanto o brasileiro quanto o samba e o carnaval.

As razões para o declínio são muitas: da concorrência com embalagens estrangeiras, mais baratas e acessíveis, à noção, ambientalmente correta, de que comida boa e fresca deve ser consumida na hora e/ou descartada junto com suas embalagens e canudos de papel.

Por aqui, já fazemos isso com os pratinhos de papelão que servem tanto para segurar bolo quanto para tapar, num sanduíche improvisado, os brigadeiros da festa.

"Leva pra sua mãe" é mais que uma lembrança: é uma declaração de amor.

Com alto valor calórico, mas é.

Falta saber como vamos fidelizar as visitas após o almoço de um domingo comum se as Tupperware forem engolidas pela modernidade líquida.

Na minha gaveta recém-organizada, observo as embalagens que acompanham cada fase da vida de cada integrante da casa. Tem lá uma lancheira de Panda, uma forma quase centenária de ovos para microondas, um copo térmico do Naruto, mais útil e mais antigo do que qualquer copo Stanley, e outras marcas do amor entre os nossos lençóis de mesa.

Não sei quantos daqueles objetos têm o selo Tupperware, mas já imagino o hype das peças originais no futuro próximo.

Nas feiras de antiguidades, estarão na mesma prateleira do vinil, do walkman, do Game Boy e dos Óculos do Chaves.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL