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Rita Lee, como é estranho ser humano nessas horas de partida
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"Eu vi a meia dele e era grená, com os fios prateados. Eu falei 'que linda'! Ele tirou os sapatos e me jogou: 'toma, é sua'".
Foi assim, em uma festa em sua casa, que Rita Lee se apaixonou pelo multi-instrumentista Roberto de Carvalho, o dono da meia.
O "moreno lindo", contou ela em uma entrevista à velha MTV, a levava a fazer algumas loucuras. Tipo tomar cerveja, que ela detestava, num bar depois de um show só para ficar mais perto dele.
Ela ainda não sabia, mas estava encantada pelo futuro parceiro desde que ouviu a guitarra da música "Bandido Coração", que ela compôs para Ney Matogrosso.
"Adorei a guitarra, de quem é?", perguntou ela, certa vez.
"É do Zezé", respondeu Ney.
Só depois, em um show em São Paulo, que ela descobriu: "Zezé" era como Ney chamava seu guitarrista, Roberto de Carvalho. O dono da meia.
Rita e Roberto passaram cerca de 46 anos juntos.
Era pelo perfil dele, no Instagram, que tínhamos notícias dela, que se tratava de um câncer desde 2020. Lá estava um #TBT em preto e branco com os dois abraçados, sorridentes, felizes. E um vídeo do casal no sofá, em frente à TV, assistindo a uma homenagem à cantora no Serginho Groisman. Uma mão envelhecida, segurando outra mão envelhecida, com uma estrela pintada de branco e a legenda "We 2 r 1" (algo como "nós dois somos um").
Aos 75 anos, Rita era ainda a musa por quem ele se apaixonou fazendo música. (Uma foto aparentemente corriqueira da parceira, olhando para o nada, já com os cabelos ralos, numa poltrona à frente de um abajur tinha como legenda sete corações pulsantes).
Rita Lee está em casa, avisava o marido, ao fim de um novo tratamento.
Fecho os olhos e lembro daquela entrevista em que ela conta a história das meias.
A entrevista não tinha perguntas. A ideia era que Rita, com os cabelos vermelhos e os óculos escuros, redondos e característicos, comentasse cada imagem de uma pilha de fotos e álbuns ao seu lado.
Em uma delas Rita está com o vestido de noiva na famosa capa do álbum "Mutantes". Era o vestido usado por Leila Diniz em uma novela, que ela surrupiou. "Eu vivia assaltando o guarda-roupa da televisão", contou, sem nem mesmo rir.
"Aqui sou eu na cama com os dois irmãos [Arnaldo Baptista e Sergio Dias, seus parceiros nos Mutantes, a maior banda de rock brasileira que já existiu]. A mãe deles era uma pessoa muito séria. A gente pegou a cama dela pra fazer a foto. Quando ela chegou e viu os filhos nus na cama com aquela menina, ligou direto para minha mãe", disse ela, explicando uma das fotos do disco "Ando Meio Desligado".
A outra era pior: no quintal da senhora, eles cavaram uma tumba e fizeram uma foto, para o mesmo álbum, inspirada em uma gravura de "O Inferno de Dante".
"E aqui sou eu na casa da minha mãe", contou, mostrando a capa de "Fruto Proibido". "Eu gosto muito desse disco. Foi por causa dele que o Roberto gostou de mim", vibrou, como uma criança que consegue um presente muito esperado.
Ao fim da entrevista, Rita ouviu de Roberto que tudo o que ele era para ela era pouco "perto de sua genuinidade, sua simplicidade sofisticada, da harmonia que se tem perto de você, o amor que você irradia e transmite às pessoas e faz com que à sua volta tudo seja sempre luz".
Suspiro. Dá ou não para entender o encanto que um demonstrou pelo outro até o fim da vida?
Sim, já havia Rita Lee quando muitos nós, nascidos depois dos anos 1970, chegamos por aqui e nada entendemos. Quem nos apresentou foram nossos pais e tios. Muitos deles já não estão aqui. Como não estão Erasmo Carlos, Gal, Belchior e tanta gente que nos conectou.
"Sem a Rita Lee, senti que perdi uma das referências que me conectava ao meu pai", me disse, pelo WhatsApp, uma amiga, que perdeu o pai recentemente, logo que soube da notícia.
Para nossa sorte, artistas como Rita Lee nos legaram a música, um portal de universos acionado entre vozes e acordes em direção a todo mundo que já pisou aqui um dia. Não deixa de ser uma maneira de não morrer. Nem de não deixar morrer.
Em um capítulo de seu livro, Rita profetizou: quando morresse, os fãs empunhariam capas de seus discos e cantariam "Ovelha Negra".
Ela pedia apenas que nenhum político fosse ao seu velório, já que nunca foi ao palanque de nenhum deles. "Eu me levantaria do caixão para vaiá-los".
Rita queria apenas tocar sua auto-harpa e cantar "Thank you Lord, finally sedated".
Em seu epitáfio, apostou, escrevem que ela nunca foi um bom exemplo, mas era boa gente.
E como era.
"Depois que eu envelhecer, ninguém precisa me dizer como é estranho ser humano nessas horas de partida", cantou ela na música "Coisas da Vida".
Quanto a nós, que ficamos mais órfãos num país cada vez mais sem graça e careta? Bem, nós sempre teremos Rita Lee.
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