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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Trunfo de 'Succession' é mostrar que mundo sob bilionários seguirá cruel

"Uma refeição digna de um rei": Roman (Kieran Culkin), Shiv (Sarah Snook) e Kendall (Jeremy Strong) se divertem juntos no episódio final de "Succession" - Divulgação/HBO
'Uma refeição digna de um rei': Roman (Kieran Culkin), Shiv (Sarah Snook) e Kendall (Jeremy Strong) se divertem juntos no episódio final de 'Succession' Imagem: Divulgação/HBO

Colunista do UOL

30/05/2023 04h00

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Em uma das cenas derradeiras de "Succession", série da HBO e HBO Max que chegou ao fim no último domingo (28), a herdeira Shiv Roy (Sarah Snook) tenta racionalizar uma decisão toda pautada pelo fígado, aquele órgão do corpo humano responsável, como sabemos, por fazer borbulhar em bile os conflitos e neuroses familiares armazenados durante toda vida.

É dela o voto que pode definir o comando da empresa da família, disputado no tapa desde que seu fundador, o patriarca Logan Roy (Brian Cox), resolve, antes de voltar atrás, sair de cena.

De modo meio atabalhoado, ela justifica a hesitação em coroar o irmão mais velho dizendo que ele já matou uma pessoa. Nas entrelinhas, fica subentendido que a escolha não passaria pelo crivo de algum protótipo de compliance que pudesse emergir da fusão entre um conglomerado que tem na mídia tradicional a joia de sua coroa e a grana de uma big tech estrangeira.

Kendall Roy (Jeremy Strong) se defende dizendo que nunca matou ninguém. Faz sentido, embora todo mundo saiba o que ele fez no verão da temporada passada. Naquela família, tudo o que se move fora daquela bolha de bilionários, políticos, sócios, investidores e conselheiros é considerado ninguém.

Eles têm até um nome para isso: "Nenhuma pessoa real envolvida".

E Kendall está ali para lembrar a todos que um dos privilégios da fortuna é que a voz da consciência é um drama apenas temporário.

Na cena seguinte é outro irmão, Roman (Kieran Culkin), quem dá o veredicto final: "Nós somos uma piada".

(Desculpa, mas o que se segue daqui em diante tem mais spoilers do que em "Rei Lear", a peça shakespeariana que inspirou a série e deu pistas de seu desfecho desde o século 15.)

É só naquele momento que os protagonistas da série dramática caem em si e descobrem que não só o rei como os candidatos à sua sucessão estão nus. Tudo o que fizeram desde a primeira cena foi mandar confeccionar o melhor figurino para disfarçar a nudez e os seus intestinos, revelados apenas aos que foram convidados a testemunhar suas intimidades, intrigas e fraquezas. Nós, no caso.

Fora do círculo íntimo, aquele pautado por fofocas e dinheiro, como define um personagem, o mundo formal dos negócios é um espectador de um desfile de trajes invisíveis em que cada um acredita na lenda que quiser. A começar pela genialidade do criador da startup sueca que se tornou tubarão de grandes conglomerados de mídia. Uma genialidade criada em laboratório. E que nem é tão disruptiva nem levará à iluminação dos povos, como acreditavam os hipsters dos anos 2000 que se transformaram em bilionários em 2020.

Por muito pouco Kendall Roy não emplacou sua lenda. Ela foi delineada no já antológico capítulo do funeral (aquele que nos lembrou que havia um corpo à espera do descanso eterno, enquanto mil coisas mais importantes aconteciam ao longo da quarta e última temporada de "Succession").

Diante de familiares, sócios e chefes de Estado, Kendall ensaia um apelo à compaixão do público em respeito ao pai, sobre quem não tem nada a dizer a não ser que ele era um bruto, sim, mas que todos ali podiam olhar por outro lado e notar o que ele foi capaz de construir. "Ele agiu em um mundo em que todo mundo te diz 'não'. E sempre tem milhares de motivos para não agir. Ele nunca foi um desses. Ele tinha uma vitalidade, uma força, que podia machucar. Mas olha as coisas que ele fez. O dinheiro, por exemplo. Sim, o dinheiro, o oxigênio dessa maravilhosa civilização que nós construímos da lama. O sangue vital jorrando por toda essa nação, preenchendo homens e mulheres com desejos, acelerando a ambição de todos nós de ter, e de fazer, de comercializar e de lucrar."

A parábola do filho próspero é edificada no momento em que Kendall perde de vez, em um encontro violento com a própria família, qualquer conexão entre seus atos e consequências. Ele dobra a aposta mesmo sabendo que a vitória de Pirro, ao flertar com o extremismo encarnado pelos porta-vozes de sua emissora, levará o país ao caos. As intimidações e ameaças sofridas por seus filhos ficam aqui subentendidas como a supressão de futuro que o modelo predatório representado pelos Roy pode legar ao planeta. Eis aqui a herança deixada de pai para filho e netos. Ele não poderia se importar menos porque ninguém ali é capaz de se importar com alguém além de si.

Proferido dentro de uma igreja, o discurso desavergonhadamente cínico de Kendall atualiza a figura dos vendilhões do templo. Parece um tiro no pé, mas acaba ganhando a plateia e o coração de quem deveria ganhar: o presidente extremista declarado temporariamente vencedor com a ajuda dos irmãos.

"O que você falou foi perfeito", diz o falsário travestido de líder político.

Com exceção da capacidade de detectar fraqueza no interlocutor para galgar posição no topo do topo da pirâmide, o único mérito dos protagonistas para estar ali é o laço sanguíneo com o pai desbravador.

Ainda assim, o império sobre o qual todos habitam é um império onde o dinheiro que supostamente oxigenou a nação também sufoca. A "maravilhosa nação" não foi edificada por gente como Logan Roy, o patriarca, mas apesar dele. É isso o que todos ali fingem ignorar.

Coube ao irmão do rei morto dizer, no mesmo funeral, que não importa o que ele conseguiu, mas como conseguiu. Aquele império em disputa foi erguido por quem trancou o coração dos homens e alimentou a chama da escuridão entre eles. Que estocou grãos enquanto muitos passavam fome. Que doou alguns milhões de seus bilhões para disfarçar a sua total ausência de generosidade. "Ele era cruel e avaliava o mundo pela régua da sua crueldade. Ele alimentou uma certa inadequação dos homens porque precisava. Ele sentia a mesma coisa."

Lembra alguma coisa, não lembra?

Numa ótica cristã, é possível ler nas entrelinhas que o herói da família não levou nada daquilo para o mausoléu de milhões. E que, em vida, já foi condenado a perambular como alma penada entre a paranoia, o medo e a desconfiança de todos.

A estratégia ali era dividir e envenenar para construir, seja lá o que fosse. Não deixa de ser irônico que tenha batido as botas em pleno voo, enquanto os filhos giravam em falso, durante o casamento de um deles, em uma embarcação que não ia a lugar algum.

A queda do império, anunciada por um personagem homônimo de Roma, é selada apenas quando o sucessor ilusório promete ao novo rei que pode torturar, esganar e trucidar sem que seus olhos sinceramente chorem — o que ele promete é enxugar gastos, promover cortes e garantir que a roda de lucro siga jorrando cada vez mais para cada vez menos.

Com um detalhe: nenhum dos derrotados da história saíram um centavo de dólar mais pobres.

É ou não é o posfácio de um modelo predatório de produção de riquezas fadado ao colapso?