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Lua de mel com governo acabou, diz socióloga do Observatório da Branquitude

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A indicação do advogado Cristiano Zanin para a vaga de Ricardo Lewandowski no STF (Supremo Tribunal Federal) foi uma grande oportunidade perdida pelo presidente Lula (PT) de fortalecer um compromisso assumido durante a campanha. É o que afirma a socióloga Carol Canegal, coordenadora de pesquisa do Observatório da Branquitude, uma iniciativa da sociedade civil dedicada a produzir conhecimento e comunicação sobre desigualdade racial.
Especialista em educação pública e direitos humanos, ela se refere à expectativa, criada desde o fim da última eleição, de que o atual chefe do Executivo fizesse história e indicasse à mais alta corte do país uma jurista negra — a primeira em toda história do STF, que em mais de 130 anos só teve três ministros negros.
A indicação acontece no momento em que coletivos do movimento negro brasileiro, entre eles o Observatório da Branquitude, participam do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes na sede da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York. Um dos objetivos do encontro é justamente discutir a inclusão política de pessoas negras em países como o Brasil.
"A indicação de um ministro do Supremo é um ato político, embora o notório saber jurídico seja um critério fundamental. Existem muitas juristas negras com essa bagagem. Uma indicação seria um primeiro passo para reparar um dano histórico e aumentar a diversidade de trajetórias e experiências na tomada de decisões à frente das instituições", afirma a especialista. "Seria o começo de uma nova era no Brasil, inclusive na imagem que meninas e meninos vêm alimentando sobre a Justiça do nosso país, que é constituída por homens brancos. É patente a ausência de uma mulher negra, a despeito da nossa qualidade, na história do STF. É uma oportunidade que o Brasil perde."
A indicação de Zanin frustrou, segundo a socióloga, a expectativa de movimentos negros que pautaram e fomentaram o debate sobre a importância da presença de pessoas negras no STF. Canegal diz entender que a gestão Lula está alicerçada em uma ideia de frente ampla, que precisa negociar com um Congresso refratário as pautas relacionadas às diversidades. Os recuos, no entanto, comprometem o próprio slogan do governo baseado em união e reconstrução.
"Somos um país de tradição de desigualdades fundantes. Lembro de uma fala da [escritora] Suely Carneiro, segundo quem, entre esquerda e direita, ela continuava preta. Os mecanismos de privilégio seguem levando a maioria das populações negras à morte", diz.
A expectativa de que mulheres negras tenham representação no Supremo, segundo ela, ainda existe, apesar de indícios de que o favorito a ocupar a próxima vaga na corte seja o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Essa expectativa está sintetizada na imagem da posse, quando Lula subiu a rampa com representantes de diversos grupos sociais minorizados. "Essa imagem dialogou com 56% da população negra brasileira que endossou a campanha e a eleição do presidente Lula. Houve uma aposta enorme. Mas agora é preciso sair dessa lua de mel com o governo e dizer o que está em disputa. O Brasil precisa caminhar urgentemente na direção da utopia de nação inclusiva que se pretende desde que escolhemos a democracia na Constituição de 1988."
Canegal afirma que a receptividade ao nome do ex-advogado de Lula entre os futuros pares e também no Senado, onde a indicação deve ser chancelada, é um exemplo do que a psicóloga e ativista Cida Bento chama de "pacto da branquitude". "Esse pacto produz prejuízos materiais, econômicos, jurídicos e também nos campos da saúde e da educação. Ele determina quem é humano e quem se aproxima da animalidade e precisa ser controlado, exterminado. Esse é o limite de vida e da morte estabelecido pelo pacto da branquitude. E esse pacto reforça a imagem equivocada de que nossas instituições democráticas funcionam bem porque são comandadas por pessoas brancas", diz Canegal.
A especialista avalia que o governo Lula, eleito a partir de uma plataforma progressista, está mobilizado em outras frentes. "Houve uma articulação com muitas vozes desde o período da transição. E dessa transição surgiu o ministério da igualdade racial, dos direitos humanos, dos povos indígenas, do meio ambiente. Existe uma compreensão e uma sensibilização da importância da reunião dessas pautas em torno dessas figuras alçadas a um lugar fundamental. Como é fundamental ver a Anielle Franco [Igualdade Racial] viajando o mundo. Embora a política institucional não seja só feita disso, e sim de toda sorte de diálogo, há ocupação de espaço e isso não estava dado no último governo. Mas a lua de mel está chegando ao fim. Não tenho problema nenhum em olhar para o governo que ajudei a eleger e me posicionar do ponto de vista crítico. Isso é salutar para o jogo demicrático."
A importância dessa mobilização, segundo ela, foi observada, por exemplo, na reação do governo às agressões sofridas por Vinícius Jr. na Espanha, há duas semanas. O caso, afirma a especialista, permitiu visualizar como o racismo se sobrepõe e opera a despeito da classe social. "Não lembro de ter visto um jogador ser tão perseguido e escrachado, inclusive retratado com bonecos enforcados, como este. Porém, o movimento do governo brasileiro, em busca de uma ação concreta, com um posicionamento contundente e rápido do próprio presidente Lula e também da ministra Anielle Franco, também é inédito. E a sociedade brasileira se posicionou ao lado do Vini Jr. porque realmente conseguiu enxergar o que está em jogo."
A luta, porém, é longa, como mostrou a mobilização recente de humoristas brancos em defesa do comediante Léo Lins, que atacava pessoas negras em suas apresentações e teve um vídeo removido, por ordem da Justiça, no YouTube. "A nossa arquitetura institucional não foi forjada em Marte. Ela é resultado dos jogos de interações históricas que operam a partir da lógica da branquitude e da reprodução do racismo. É difícil se dissociar dessa estrutura do racismo recreativo. A forma como humoristas brancos, como o Fábio Porchat, saíram em defesa de um suposto humorista mostra isso. Eles até fazem mea culpa, mas dizem que estavam defendendo a liberdade de expressão. É curioso como esse pacto aproxima essas pessoas da parcela mais reacionária do fenômeno do bolsonarismo. E como a leitura branca do mundo pode estar desprovida desse conteúdo racial porque os brancos não são racializados. Quem tem raça somos nós. O branco nomeia. Existe sempre uma suposta inocência racial até no humor. É uma maneira de se ausentar e dizer que são inocentes e precisam ser ensinados. Esse lugar é muito confortável. É o canto quentinho dessa suposta superioridade."
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