Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Datafolha mostra que paranoia anticomunista é delirante, mas eficaz
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Grave! O presidente Lula (PT) tomou posse há seis meses e até agora ninguém bateu ainda à minha porta para avisar que a partir de agora a casa é do Estado, meu filho se chama Vanderleia e meu casamento está anulado por não se enquadrar nos novos modelos de família. Mais: até onde sei, as igrejas do meu bairro, e são muitas, seguem funcionando normalmente.
Se pudesse voltar no tempo, era isso o que diria para a Dona Rosely, mulher de 53 anos que deixou sua pequena cidade de 32 mil habitantes no interior do Mato Grosso para tomar o poder em Brasília e salvar o Brasil de "um governo que quer acabar com a família".
Foi o que ela disse à polícia depois de ser detida com outros estultos em 8 de janeiro. Dona Rosemary queria proteger as gerações futuras, garantir a manutenção das igrejas e impedir que mulheres, sob o novo regime, se tornassem "escravas sexuais".
Ao seu lado um rapaz de 19 anos tinha planos mais, digamos, ambiciosos: condicionar a queda de Lula por uma vaga no céu. Era a recompensa mínima pelo engajamento na luta contra um presidente que, segundo ele, queria fechar templos e destruir a sua, a minha, a nossa família.
Só um golpe militar evitaria o comunismo, diziam muitos dos desatinados detidos após a invasão da sede dos Três Poderes.
Parece papo de aloprado, mas essa coisa não brotou do nada.
No último fim de semana o Datafolha revelou que metade dos eleitores brasileiros (52%) concorda que o Brasil corre risco de adotar um regime comunista. Deles, 33% concordam totalmente com a afirmação e outros 19%, parcialmente. A miragem é maior entre apoiadores de Jair Bolsonaro (PL): 73%.
Segundo o Datafolha, 39% dos eleitores acreditam também que o PT é um partido que desrespeita a família cristã (um mantra bolsonarista da campanha).
Os dados são lançados no momento em que governo e Congresso discutem as bases do arcabouço fiscal e uma reforma tributária. As montadoras, atualmente, faturam com o incentivo à compra de automóveis, um produto-símbolo da economia de mercado. Outro símbolo, o McDonald's, estava lotado no último fim de semana — ao menos a unidade perto de casa, que, para surpresa de ninguém, não converteu o BigMac em McLula.
As propriedades privadas no país não foram abolidas, menos ainda as noções de classes sociais. Pessoas ricas no Brasil continuam bem ricas. E os pobres, bem pobres, embora uma das metas deste governo seja reduzir a distância entre uns e outros.
Para parte dos brasileiros, isso já configura um pezinho na ditadura do proletariado.
Coisa de ignorante num país em que acesso a universidade ainda é privilégio, certo? Pois entre pessoas com ensino superior a crença no cenário comunista chega a 42% — menor do que no conjunto geral da população, mas ainda assim significativo.
Essa, afinal, não é uma questão relacionada à formação, e sim à desinformação. Ela é capaz de recriar realidades e manejá-la ao gosto do freguês, livre de qualquer evidência ou pé na realidade.
Bolsonaro costuma tirar o espantalho do armário sempre que pode. Faz isso usando a estratégia citada pela ministra Cármen Lúcia, do STF (um fórum de Camaradas, na visão bolsonarista), no voto que selou sua inelegibilidade: a "consciência de perverter". Pelo jargão jurídico, trata-se de um discurso falacioso de quem sabe não ter razão, mas o repete mesmo assim.
Lula ajudaria a não alimentar espantalhos se evitasse elogiar em público figuras autoritárias como Nicolás Maduro, mas tanto ele quanto Bolsonaro sabem que o Brasil está tão perto de incorporar a Internacional Socialista ao hino nacional quanto o Vasco de levar o Campeonato Brasileiro deste ano (ah, sim: o nome do campeonato ainda é este, e não Bolivarianão).
Bolsonaro chegou a dizer na ONU que, antes dele, o Brasil estava à beira do socialismo. E, em campanha, chamou Lula de "capeta" e o acusou de querer impor o comunismo no Brasil. Em seu governo a pergunta "o que é comunismo" disparou em buscadores. Pelo jeito, as respostas foram insuficientes.
Nos últimos anos, e durante o mandato de Bolsonaro especialmente, o verbete "comunista" se ampliou. Virou todo aquele que questiona qualquer ação do líder. A lista passou a incluir antigos apoiadores como Lobão, Janaína Paschoal e Kim Kataguiri.
Em um país que aprendeu a se informar pelo WhatsApp e a votar pela ótica do medo, liderado por gabinetes do ódio e outras serventias, "comunista" se tornou mais do que xingamento: é hoje um bicho papão que vive embaixo da cama de adultos que podem ser devorados se vestir camisa vermelha ou demonstrar alguma compaixão pelas populações empobrecidas.
Como em "O Alienista", de Machado de Assis, Bolsonaro e companhia trancaram um país inteiro em um cercadinho conceitual. Mais um pouco e só sobraria ele do lado de fora.
A estratégia não é nem nova. Donald Trump, em sua busca pela reeleição nos EUA, manipulava os mesmos fantasmas para falar sobre Joe Biden. Muita gente acreditou.
Como já explicou o professor de filosofia da PUC-Rio Rodrigo Nunes, autor do livro "Do transe à vertigem", o anticomunismo tem como função colocar na mesma costura "uma série de objetos que estavam soltos". Entre elas, mudanças de costumes, políticas sociais, corrupção, ineficiência econômica. "É uma lógica paranoica, mas muito eficaz: se nós não vemos o comunismo é precisamente porque ele está por trás de uma série de outras coisas que vemos."
A nova direita brasileira, inspirada no discurso anticomunista norte-americano nos tempos da Guerra Fria, soube explorar os laços de petistas com países como Cuba e Venezuela para aprofundar o medo (da pobreza e do desabastecimento, principalmente) e ganhar voto.
Não deixa de ser uma ironia trágica lembrar que foi no governo de um autodeclarado anticomunista que as instituições democráticas, justamente as que frearam seus impulsos autoritários, tenham sido tão atacadas. E que os brasileiros tenham se acostumado a se alimentar com sobras e ossos.
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