Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Meu filho vai me desculpar, mas não vamos voltar a um estádio tão cedo
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Em junho, quando meu filho completou dez anos, tirei do baú um vídeo antigo, com ele recém-nascido, todo molenga, ainda no colo, ouvindo com o pai as músicas que costumava cantar no estádio em jogos do Palmeiras.
O vídeo virou postagem do tipo início de um sonho/deu tudo certo.
Quem passasse o dedo pela tela viria aquele menino, na cena seguinte, pulando, cantando e rodando a camisa feito louco no meio da torcida concentrada no centro de nossa cidade para comemorar o título do Campeonato Paulista de 2023.
No sábado passado meu filho andava mais ansioso que o pai e o avô, seus companheiros de sofá, antes, durante e depois da partida contra o Flamengo, pelo Brasileirão. Principalmente depois. Nascido em um tempo de glórias, ele tem aprendido a duras penas a engolir resultados adversos, como um empate amargo em uma partida ganha até os minutos finais.
O descontrole dele produziu um milagre na família: agora não é o pai quem corre pela casa gritando e esmurrando paredes depois de um jogo ruim. É o filho. O pai tem a difícil missão de se controlar e acalmar a criança.
E no sábado ele ficou especialmente triste: já corria para comemorar o gol da vitória quando o lance foi revisado e anulado, suspendendo também um ensaio de alegria na noite de sábado. O sequestro do grito de gol foi cruel. E ele foi dormir aos prantos, azedo, sem querer falar com ninguém.
Fazia sentido a cobrança da mãe e da avó: está contente agora, pai?
Não, não estava. Na verdade, nessas horas tudo o que tenho é culpa. Fui o primeiro a ensinar a ele que aquele não é nem nunca será só um esporte.
E, como resumiu um amigo, mal sabia que naquele mesmo sábado ganhei (ganhamos) mais uma razão para pensar que, se pudesse, apertaria um botão e eliminaria da minha (nossa) vida o futebol e tudo o que ele representa .
Busco qualquer resquício de racionalidade para escrever um troço desses e não encontro nenhum.
Quem já amou um time de verdade sabe que poucos momentos na vida nos autorizam a transbordar de alegria como uma conquista. Qualquer conquista, sabe-se Deus por quê. Meu filho tem só dez anos e já vivenciou algumas. Foi tão fisgado que agora só fala disso, só pensa nisso.
Seu sonho é assistir a uma partida do time em sua arena. O combinado era que o esperaríamos completar dez anos. Estamos alguns meses em dívida, portanto.
A morte de uma torcedora do nosso time, nas imediações do Allianz Parque, pouco antes do jogo começar, adiaram os planos.
Sim: desde que soubemos da tragédia, o medo passou a pautar tudo o que se relaciona a esse esporte em casa.
Bem agora que chegou a camisa nova, com o nome dele estampado nas costas, o sentimento dominante é o medo de que alguma provocação descambe para agressões pelas ruas ou mesmo na vizinhança (acreditem: com dez anos, as provocações de amigos e crianças mais velhas são recorrentes).
No futebol, diferentemente de outros campos, aprende-se a amar e a odiar na mesma medida e proporção. A princípio, aprendemos a desprezar a instituição rival, que nos ameaça as vitórias e as conquistas; depois, seus representantes, diretos e indiretos. Não tem como acabar bem.
Sim, dá medo atravessar uma rua em direção ao estádio e nos deparar com uma briga. Em eventos recentes, o que não faltam são imagens mostrando o desespero de crianças em meio a pancadarias provocadas por marmanjos — uma das crianças, inclusive, estava nas costas do pai quando ele mesmo decidiu invadir o gramado para bater em jogadores em Porto Alegre.
Mas dá medo também de sermos agredidos, direta ou indiretamente, e testemunhar o esforço de parte da opinião pública, e dos formadores de opinião, para transformar vítimas em pessoas "matáveis", dessas que assumem risco ao simplesmente vestir uma camisa.
Gabriela Anelli, 23, morreu na segunda-feira (10), após ser atingida no sábado por uma garrafa arremessada por torcedores rivais. Mas continuou sendo agredida a cada postagem que lançava sobre ela a culpa por estar no caminho de objetos cortantes.
Mesmo para os padrões de toxicidade das redes sociais, poucas vezes testemunhamos um nível de indiferença e desumanização como desta vez.
Teve jornalista que chegou a "alterar" a cena do crime para provar uma tese, sem checagem ou cuidados básicos com informação. Ele até pediu desculpas, seguida pela famigerada palavra "mas". Ela assumiu o "risco", afinal — sim, como vítimas de acidente aéreo assumem riscos ao pegar um avião antes de uma tragédia. Quem mandou?
Teve dirigente esportivo que só conseguiu demonstrar revolta com a fama de torcida "problemática" de seu time. Uma pessoa morreu, sabe?
Teve gente, muita gente, cassando o direito da torcedora voltar viva para casa devido a um suposto elo com torcida organizada.
E teve gente sacando do coldre as respostas fáceis de sempre para os problemas complexos, defendendo a segregação, incitando ódio, justificando o injustificável, botando para funcionar as mesmas máquinas que definem quem é matável e quem não é dentro e fora de um estádio.
A perversidade que brota de todo canto nessas horas é resultado de um momento em que todos estão mais impacientes, mais brutalizados, mais dispostos a resolver na porrada o que entendem como inaceitável. Vale tudo, até espancar e defender o aniquilamento de jogador que não entrega o que ganha. Mas quando a fagulha explode, no meio desse barril cheio de ódio, tudo o que queremos é que a vítima leve a culpa para não encarar que nós também temos as mãos sujas de pólvora.
Tempos sombrios esses, em que precisamos nos desviar das garrafadas de torcedores e de justiceiros que tratam tudo, inclusive o jogo, como um grande programa de entretenimento. O risco de confundir esporte com entretenimento é pensar que a eliminação de quem não gostamos é "parte do jogo".
Meu filho vai me desculpar. Mas não vamos ver nosso time no estádio tão cedo.
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