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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fervura global: dá pra pensar em saídas com a cabeça no ar-condicionado?

12.06.2023 - Guardas desmaiam por conta do calor no Reino Unido - Reprodução
12.06.2023 - Guardas desmaiam por conta do calor no Reino Unido Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

30/07/2023 04h00

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Julho ainda não terminou mas, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), já é possível cravar: com recordes de temperaturas globais, este já é o mês mais quente da história.

As últimas semanas foram marcadas por ondas de calor extremo e incêndios florestais em diversas partes do Hemisfério Norte, onde ainda é verão e estão concentrados os países mais ricos.

Mais do que uma prévia do que vem por aí, o que estamos observando é o início da "era da fervura global", nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres.

Nos EUA, por exemplo, a cidade de Phoenix registrou por 19 dias consecutivos temperaturas acima de 43ºC.

No Mar Mediterrâneo, entre a Sicília e a cidade de Nápoles, na Itália, a temperatura da superfície do mar superou os 30ºC (4ºC acima do normal). As queimadas se proliferam.

De lá, uma amiga me escreve para contar que um conhecido perdeu a casa e tudo o que havia dentro em um incêndio em São Vito, onde uma reserva natural virou uma imensa bola de fogo.

No Monte Grifone, em Palermo, o fogo atingiu o Convento de Santa Maria de Jesus e danificou os restos mortais de São Benedito, que lá repousavam desde 1611.

Se não é o fim dos tempos, o que mais pode ser? Uma prévia, talvez. Uma prévia que parece finalmente mobilizar autoridades que costumam franzir a testa quando o inferno é o calor extremo no quintal dos outros.

"O calor mata mais nova-iorquinos todos os anos do que qualquer outro tipo de evento climático extremo", alertou o prefeito de Nova York, Eric Adams, diante dos indicios de que a cidade viverá dias de cão nas próximas horas. "O acesso a locais para se refrescar é uma questão de vida ou morte."

Uma das preocupações da prefeitura é com o bem-estar até mesmo dos animais, que podem morrer desidratados. Será que assim os outros bichos, os que vestem gravata, vão se comover?

Os relatórios dos painéis climáticos deixam claro que este não é um desafio de curto prazo, desses que arrefecem quando chega o inverno.

Por aqui, vejo as crianças brincando de futebol e me pergunto o que elas vão pensar, daqui uns anos, quando observarem seus filhos e netos impedidos de correr nos pátios debaixo de sol escaldante, sem áreas de refresco, como na distopia de Ignácio de Loyola Brandão em "Não Verás País Nenhum".

Uma contradição desses tempos é que a sensação de tempo parece comprimida enquanto os dias se ampliam. Consumimos e fazemos mais coisas em 24 horas do que fazíamos há pouco tempo. Mas, no meio de tanta coisa, não conseguimos planejar o dia seguinte. Não há tempo. Por isso os dias parecem os mesmos. E não permitem visualizar o que virá nos dias seguintes. Que dirá pensar nas próximas décadas.

Não é tarefa simples discutir o futuro com gerações ensinadas a não cultivar nada para além da própria satisfação pessoal. Fica ainda mais complicado falar sobre os dias de nossos filhos e netos aos adeptos, assumidos ou não, da extinção humana voluntária.

Não dá para pensar em saídas para o colapso global debaixo do ar-condicionado. A expressão vale para qualquer profissional que se acostuma ao conforto da temperatura artificial de sua sala e desconhece a realidade do que se passa ao seu redor.

Uma das perguntas que repetimos quando estudamos períodos de catástrofes provocadas pela ação humana, como guerras e genocídios, é: "Como eles puderam?".

Os níveis de alerta sobre aquecimento global já lançam uma pergunta em nossa direção: "Como pudemos?

Não é preciso esperar trabalhadores da construção civil caírem duros de tanto calor — sem que alguém precise chicoteá-los, como em outros tempos — para compreender que já ultrapassamos fronteiras éticas que não serão perdoadas pela História. Até porque ela pode estar em seu capítulo derradeiro.

E não será por falta de informação. Há um consenso científico sobre os perigos de atingirmos um ponto de não-retorno nos esforços de destruição e não são escassos os gritos de quem não cansa de nos alertar e dizer: tudo pode ser evitado. Como?

No campo privado, nosso trabalho é de formiga: como economizar água e energia, reduzir a geração de resíduos, apoiar produtores agroecológicos (quanto menos um produto "andar" até nossa mesa, mais fazemos pelo clima), percorrer trechos a pé e, principalmente, investir no que acreditamos. Esse último item envolve (não) dar dinheiro a quem associa expansão dos negócios à morte e devastação, como aquela loja de joias preciosas na ponta de uma cadeia que comercializa metais arrancados da floresta à custa da saúde indígena e da vida florestal.

No campo macro, onde a devastação ocorre em escala industrial, a lição sabemos de cor: devemos substituir, para ontem, combustíveis fósseis por renováveis, proteger e regenerar florestas (quem assistiu ao filme "O Sal da Terra" sabe que isso é possível e revolucionário), acompanhar o que de fato os países que assumiram compromissos com a mitigação do clima na Conferência de Paris 2015 estão fazendo na prática.

Falta lidar com os lobbies, boicotes, negacionismos patrocinados e planos de curtíssimo prazo dos grandes conglomerados da cadeia de carbono, uma tecnologia do século passado, hoje as principais barreiras em direção ao futuro.

Em tese, os alertas sobre "era da fervura global" deveria unir esforços em torno de um inimigo e objetivos comuns, o que pede saídas coletivas e amadurecimento civilizatório. Não é sempre que isso acontece — a pandemia, que se transformou em um território de espertalhões que cresceram explorando a divisão social, é um ensaio do que não fazer nessas horas.

Não dá para dizer que passamos no teste. Contra o clima, talvez não exista vacina salvadora. Vamos fracassar de novo?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL