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Matheus Pichonelli

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Diário do medo no Guarujá: 'De dia parece normal. À noite é um silêncio'

31.jul.2023 | Guarujá (SP) | Movimentação de policiais militares na Vila Baiana, onde suspeito foi morto por policiais - Danilo Verpa/Folhapress
31.jul.2023 | Guarujá (SP) | Movimentação de policiais militares na Vila Baiana, onde suspeito foi morto por policiais
Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Colunista do UOL

06/08/2023 04h01

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Este é um resumo de uma série de relatos feitos por um morador do Guarujá (SP) ao longo da semana em que a Polícia Militar de São Paulo realizou, na Baixada Santista, a Operação Escudo. A ação teve início em 28 de julho, um dia depois do assassinato de um soldado da Rota durante um patrulhamento na periferia da cidade, e deve durar até o fim de agosto. Desde então, 16 moradores foram mortos na ofensiva, muitos deles com sinais de execução. A identidade do entrevistado foi preservada.

Na Vila Baiana, onde moro, quando dá 22h ninguém sai na rua. Não é que alguém chegou e falou que era um toque de recolher. Mesmo assim, ninguém sai.

As pessoas têm medo de descer o morro e não voltar. Tem sido assim desde o dia em que mataram um policial militar da Rota, perto daqui, na quinta-feira (27).

No dia seguinte, por volta das 20h, uns policiais bateram na minha casa. Eu estava com minha filha de 2 anos e, quando viram que eu tinha passagem pela polícia, por tentativa de roubo, me ameaçaram. Tomei um murro. Falaram que me dariam um tiro. Falei que se eu devesse alguma coisa, não teria nem aberto a porta. Aos 34 anos, ando de cabeça erguida. Deus muda a vida de todos nós. Mas foi uma conversa tensa.

Meu irmão começou a filmar e um PM ficou alterado, queria tomar o celular, agredir. Minha mãe tem 51 anos e pediu pra eles terem calma, porque ele é especial. Ela falou que era uma mulher de Deus, que frequentava a igreja, mostrou os documentos, disse que todo mundo em casa era da paz. Meu irmão tem só 22 anos e sofre com ataques epiléticos.

Depois disso eu fui para a igreja com minha filha. Na volta, escutei uma confusão perto de casa. E tiros. Só depois eu soube que tinham matado um rapaz.

Muita gente morreu na cidade desde então. Você caminha agora pela rua e ouve os policiais engatilhando a arma. Engatilharam quando meu irmão estava andando na rua com a minha mãe. Ele só sai de casa para ver a namorada. Minha mãe trabalha com reciclagem e vai catar latinha na praia. Nesses dias está mais difícil, porque está tudo esvaziado.

Quando você sai de casa os policiais perguntam quem você é, se é morador, e por que está descendo.

Tem vizinho que chega do trabalho depois das 22h e avisa a família pelo celular, diz que está no ponto de ônibus. E então as mulheres descem com crianças. Todo mundo sobe junto.

A gente queria que os jornalistas fossem até onde a gente mora para ver a situação de perto. Nem todo mundo tem coragem de subir. Muitos se sentem acuados.

Eu só saio de casa para ir à igreja. Frequento a Deus é Amor, que fica a uns cinco minutos andando.

Ou vou para lá ou vou ver minha filha, que mora com a mãe no [bairro] Morrinhos. Lá a situação está bem complicada.

Nesses dias não consegui descer para a praia. Costumo fazer isso cedinho, faço meu treino e volto. O pessoal desce pra jogar bola. Isso tudo parou.

Em casa, fecho as portas e janelas sempre que posso.

Um vizinho viu um policial chutar a cachorra dele, que tava com cria. Deu dó. Ela se entocou, assustada. Perto daqui, mais pra baixo, soube que mataram um cachorro.

Saio também quando preciso ir até a creche da minha filha, em Morrinhos, onde mataram o rapaz. Tá tendo muita ação lá. Será que as crianças não estão em risco?

Na segunda-feira (31), por exemplo, teve reunião. Precisei atravessar o túnel de bicicleta, levei mais ou menos oito minutos pedalando. Fiquei com medo o trajeto todo, mas não tinha o que fazer. Levo todos os documentos comigo, fotos. Tenho medo de alguém me "forjar".

Achava que as escolas iam parar por causa de toda a situação. Mas está tudo funcionando. Na creche marcaram uma reunião para falar algumas coisas para os pais. Pediram pra ficarem atentos a piolhos, para cortar as unhas, falaram do que algumas crianças estão passando, essas coisas.

Já fui preso por tentativa de roubo, em 2011. Estou na condicional. Assino os termos tudo direitinho, todo mês, no fórum. Vou pra lá de bicicleta também. Estou desempregado, sem dinheiro, e preciso correr atrás de trabalho.

Essa era uma semana que eu pretendia enviar currículos. Meu último trabalho foi há algumas semanas, como servente de pedreiro. Eu vivo de bicos. Já trabalhei como servente e ajudante de obras, cozinheiro, entregador. E também já trabalhei na praia, montando guarda-sol nos condomínios da Enseada.

Só consegui entregar um currículo na quarta-feira (2), para um amigo, e logo voltei pra casa.

Naquele dia, no fim de tarde, um helicóptero passou em cima de casa. Fiz um vídeo da minha janela. Eles estavam patrulhando lá no morro da Barreira, vendo se tinha alguém fugindo pela mata. E nosso bairro fica bem no caminho. E então ficam rodeando.
Não dá pra ficar andando por aqui, mesmo de dia. Você até consegue, mas a gente evita. Tem que explicar para o policial para onde vai e o que vai fazer. Tipo ir ao supermercado.

Mas chega à noite e você não vê ninguém na rua. Tem um ou outro comércio aberto. As pessoas precisam trabalhar, sobreviver. Então alguns poucos ainda abrem.

Na quinta-feira (3) a situação ficou um pouco melhor aqui no bairro. Graças a Deus. Estamos caminhando. Precisei ir atrás de um trabalho para minha outra filha, de 14 anos, num programa da prefeitura. Me abordaram na volta, mas a abordagem foi de boa. Não tenho o que falar dessa vez.

Também fui lá na praia, no carrinho onde trabalhava o rapaz que mataram. Vi a foto dele no Facebook. Reconheci. Via ele passando pelo Morrinho e também lá no carrinho, na praia.

O patrão dele deixou uma mensagem. Dizia assim: "Sentiremos muito a sua partida, onde estiver saiba que ficou muito carinho pela pessoa que você foi durante esses anos que conviveu conosco. Você partiu como uma pessoa batalhadora que encarava todas as dificuldades da vida para levar sustento para sua família".

Tinha uma imagem da última vez que eles conversaram, pelo celular. O rapaz perguntou quando era a escala dele. Quinta, respondeu o patrão. E quinta foi a data do enterro dele.

Era um trabalhador, um rapaz tranquilo.

Vi a notícia de que o governo não quer tirar os policiais, alegando que não teve nenhuma tortura. Mas teve vítimas, trabalhadores mortos. Eles estão mentindo. Deus é quem faz justiça.

De dia tudo parece normal. Mas à noite é sempre um silêncio: não tem festa, ninguém ouve música.

Dormir a gente dorme, mas tem medo de alguém bater na porta.

Sexta-feira (4) já estava tudo mais tranquilo. Minha filha pequena veio para casa pela manhã. Já brincava com seus bonecos e sua mini-cozinha amarela e cor-de-rosa. Ela tem um problema de dicção. O pessoal da creche acha que é língua presa. À tarde vou sair para o médico, para saber o que ela tem.

A rotina está começando a mudar. Estamos caminhando, com a misericórdia de Deus. Estamos acordados.

No culto, até o pastor orienta a gente a tomar cuidado, não ficar parado na esquina. Ele diz: acabou o culto, vai pra casa.

Estamos indo para a igreja todo dia. Minha mãe é quem carrega a Bíblia. Lá dentro até que o clima é normal. Temos nossa confiança em Deus, que ele possa ajudar.

(Colaborou Herculano Barreto Filho, do UOL, no Guarujá)