Matheus Pichonelli

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Opinião

O jovem místico é um expoente good vibes da turma 'nem nem nem'

Precisamos admitir: o jovem místico que habita o adulto branco de classe média alta nos convida a repensar as verdades consagradas do mundo material em que vivemos. Uma delas é a de que o bullying é sempre errado. Não é, se o alvo for um jovem místico.

Dias atrás, um deles viralizou contando como foi incrível baixar a frequência da mente com o Cadu (oi Cadu, prazer) numa festa chamada SEIVA em que todo mundo ficou doidão de cacau puro. Recomendo essa experiência — ver o vídeo — pelo menos uma vez. Eu assisti umas dez e até agora não consigo imaginar ninguém de lá pegando o ônibus para conferir o "set envolvente, tribal, xamânico e eletrônico" do DJ J. Pool (prazer, DJ J.Pool). Não tem "good vibes" que sobreviva a uma baldeação em horário de pico.

A festa aconteceu no Alto da Boa Vista, no Rio, onde o preço médio do m² é de R$ 5,8 mil, segundo o site AgentImóvel.

O jovem xamânico do vídeo contou que, durante três horas, todo mundo lá dançou livre, leve, solto e sem medo de julgamentos externos. Não queria quebrar a frequência do rapaz, mas depois que o vídeo viralizou, ele e os amigos foram julgados um tanto, sim.

Quem assistiu ao vídeo pela primeira vez certamente imaginou que se tratava de algum esquete inspirado nos vídeos do ator Dig Verardi, que faz sucesso imitando o jovem carioca rico cuja maior preocupação na vida quando acorda, às 14h, é definir qual o "rolé" (na gíria carioca) do dia com outros playboys. "Segundou, o que será que vou fazer hoje?", diz o personagem do perfil "Malhassaum" em um desses clássicos.

Pois o jovem místico da vida real não só não era ator como recebeu uma homenagem em forma de paródia do próprio Verardi. O original, acreditem, é mais engraçado.

Pior do que ele, só a turma de jovens endinheirados que decidiu usar pinturas indígenas e saudar Iemanjá, a rainha do mar, no meio do mato, em outro vídeo-monumento da vergonha branca. A alegria dos participantes da cena é a alegria de quem nunca precisou lavar a louça.

Dá até medo de causar alguma disenteria ali se alguém contar que os povos homenageados naquela fantasia não têm um minuto de paz em suas casas em um país que os esfola e mata diariamente. O Michael Jackson pedindo paz botando o dedo na ponta da arma de um ator vestido de soldado não faria melhor.

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Ok, talvez eu tenha me tornado um adulto ranzinza, tomado de pós-conceitos (ninguém tem preconceito com um jovem místico branco se conhece um) que não sabe o que perdeu enquanto fazia contas no quilão da firma pra saber até quando duraria o VR.

Fico imaginando o que teria acontecido se alguém, lá nos idos dos anos 2000, chegasse em minha turma de jovens recém-formados e recém-dispensados do estágio e convidasse para beber cacau num rolê do tipo. Um bullying leve, envolvente e tribal era o mínimo que receberia.

Talvez alguém o lembrasse que baixar a frequência da mente não faria desaparecer os boletos que começavam a se acumular na escrivaninha de um apartamento de dois quartos, dividido com oito pessoas — todas à beira de um ataque de pânico, cuja única sensação de paz era a fruição daqueles primeiros segundos após a notificação de que o pagamento caiu.

Admiro quem conseguiu largar a neurose das grandes cidades e foi viver a paz dos injustos numa comunidade "good vibes" do filme "Midsommar", versão Ubatuba. Eu só não conheço. A maioria foi e voltou porque não conseguiu um acordo para adiantar a parte da herança nem levar a empregada, responsável por fazer a mala, na bagagem.

"Ah, mas o John Lennon pagava de hippie pelado na cama para pedir o fim da guerra do Vietnã e você achava lindo?".

Amigos, o John Lennon naquela idade já tinha composto de "Please, Please Me" a "Nowhere Man". Podia fazer qualquer coisa porque sua parte no mundo estava paga.

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Tenho dúvidas se o jovem místico branco consegue esquentar o próprio leite no microondas sem a supervisão de algum adulto.

Pela vida exposta nas redes, ele é só um representante da categoria "nem nem nem". Nem trabalha, nem estuda, nem está preocupado, porque os pais são ricos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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