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Ritual do 'cacau sagrado' promete efeitos sutis do ecstasy até da ayahuasca

Ritual do cacau sagrado acontece em sítio de Mogi das Cruzes, em São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
Ritual do cacau sagrado acontece em sítio de Mogi das Cruzes, em São Paulo Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em Mogi das Cruzes (SP)

17/04/2022 04h01

Era apenas a típica névoa da Serra do Mar, mas, fantasiando um pouco, poderiam ser as brumas de Avalon. Afinal, estava indo para um encontro chamado "Despertar da Bruxa". Buscando equilíbrio e força interior, cheguei até um sítio em Mogi das Cruzes, município paulista mais conhecido como berço político de uma das figuras do centrão: Valdemar Costa Neto, presidente da maior sigla da Câmara Federal com a revoada bolsonarista para o PL (Partido Liberal).

O fim de semana de rituais tinha como ponto alto "a cerimônia do cacau sagrado", prometendo aos participantes uma expansão amorosa bem maior que sentida ao mastigar um bombom. Um dos presentes me conta que fica tão carinhoso que quer abraçar todo mundo "como se tivesse tomado bala" (gíria para ecstasy). Mesmo que o fruto não seja alucinógeno, há vários relatos de "guardiãs do cacau" com visões místicas, como um efeito atenuado da ayahuasca.

Vou logo adiantando: não senti nada. Pode ser porque estava a trabalho, então não consegui "entrar no meu processo pessoal". Pode ser porque foi a primeira vez, e para muitos só da terceira sessão em diante "a medicina ancestral" apresenta sua magia. Pode ser também porque um certo ceticismo me priva de algumas experiências etéreas.

O passado divino do fruto que produz o chocolate está sendo resgatado no mundo todo, e não poderia faltar em um de seus maiores produtores, o Brasil (7º do mundo). Grupos xamânicos, neopagãos, umbandistas, tântricos, holísticos e quetais incorporaram aos poucos em seus rituais a ingestão do cacau para atingir estados emocionais ao final de seus ritos. Quase como uma sobremesa, apesar de amarga.

Chocolate é amor

O coro repetitivo "cacau sagrado, desce sobre nós" já prenuncia o culto. Enquanto uma guardiã, Bernadete Dourado, comanda o círculo explicando sobre a Deusa Cacau, a outra, Luciene Maschio, vai para a cozinha preparar a poção mágica.

O primeiro passo é ralar a barra de cacau 100% (sem adição de açúcar ou leite), orgânico, feita em Coaraci (BA), onde as sementes, antes de serem trituradas em moinho de pedra, são fermentadas à sombra e secas ao sol para manter suas propriedades — diferentemente das usadas no chocolate, que são torradas.

A proporção é de duas colheres do produto para uma xícara de água. Em fogo brando, a mistura vai para o caldeirão, na verdade uma panela de alumínio que foi consagrada com rezos e só é utilizada para fazer a beberagem. Assim, dizem as magas, não absorvem energias de outras substâncias e cozinheiros.

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Luciene Maschio prepara cacau líquido para cerimônia durante evento "Despertar das Bruxas"
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Enquanto mentaliza suas intenções no rito, Luciene mexe uma concha desenhando um "8", símbolo do infinito em várias culturas. Quando os dois ingredientes se fundem, sobe uma espuma branca para a superfície. Na hora que essa nuvem fica em tom caramelo, deve-se desligar o fogo. Se ferver, o líquido perde os encantos. Ao final, duas pitadas de pimenta caiena são acrescentadas "para potencializar os efeitos".

"O caldeirão é como um grande útero, que acolhe tudo e alimenta", teoriza Bernardete. "Quando faço em casa, sempre vejo um índio se aproximando. Tenho muitas miragens porque estou conectada. É mais suave que a ayahuasca, mas a vantagem é que não tem mal-estar depois", conta.

Elas só conseguem fazer a cerimônia uma vez por mês porque há toda uma preparação. Durante 21 dias, a dieta das guardiãs não pode incluir alimentos de origem animal nem álcool ou estimulantes. Elas devem acordar antes do amanhecer, tomar o cacau e meditar. "Todas as vivências são construídas a partir das ideias que saíram dessas sessões", conta Luciene. E, lembra ela, não se pode esquecer de tomar a borra que fica no fundo da xícara, porque ali está "a força".

Fruto divino

Seu nome científico já dá uma pista. O famoso botânico sueco Carl Linnaeus (1707-1778), mais conhecido como Lineu, foi quem batizou cientificamente o fruto: Theobroma cacao. "Alimento dos deuses" é a tradução da expressão grega theobroma, e cacau era a denominação no México, lugar onde os espanhóis entraram em contato com a bebida mística. No século 19, foi descoberta a teobromina, alcaloide que estimula o coração e é vasodilatador.

Engana-se quem acha que a procedência do chocolate é a Suíça ou a Bélgica, onde se produzem as barras mais reverenciadas atualmente, ou o próprio México, onde a castanha de cacau ganhou até valor de moeda. Segundo pesquisas recentes, o cacau tem origem na Amazônia, ou seja, no Brasil e vizinhos. A planta foi sendo levada de uma tribo para outra até chegar à América Central e região sul mexicana.

Os olmecas, civilização que existiu entre 1.400 a.C. e 400 a.C., teriam sido os primeiros a fermentar, torrar e moer a semente do cacau — antes só se comia a polpa cremosa e adocicada que a envolve. Os maias e os astecas elevaram o cacau a alimento sagrado, incluindo-o em cerimônias com sacrifício humano. A plantação era controlada pelos reis, e as sementes serviam para pagar impostos e comprar utensílios.

Apesar da indústria dos achocolatados dominar a economia — e o cristianismo, a cultura —, na região chamada Mesoamérica ainda hoje há povos que mantêm a tradição de fazer bebidas com o cacaueiro. Contudo, quando o geólogo norte-americano Keith Wilson se estabeleceu em 2003 em San Marcos, na Guatemala, iniciou-se uma onda mundial de misticismo em torno do cacau.

ritual do cacau sagrado - Japo/Divulgação - Japo/Divulgação
Bernadete Dourado faz limpeza energética com tambor xamânico em retiro "Despertar da Bruxa"
Imagem: Japo/Divulgação

Depois de aprender o processo, Wilson começou a fazer meditações bebendo cacau e veiculá-las pela internet. Virou o "xamã do chocolate". Em poucos anos, ele criou uma indústria de turismo por lá — hoje ele tem mais de 50 concorrentes, incluindo guatemaltecos resgatando cerimônias maias.

Os visitantes voltavam para os EUA e a Europa e criavam cursos e cultos, atraindo principalmente o público feminino atrás de uma expansão emocional. Muitas brasileiras trouxeram esse culto new age ao fruto de origem nacional via imersão na Guatemala ou outros países.

Hoje, há retiros similares na zona cacaueira da Bahia, com a mesma fórmula de visita às plantações e festejos na floresta, misturando mitologias locais e estrangeiras. O curioso é que um fungo chamado vassoura-de-bruxa quase acabou com a produção de lá no final do século passado, mas atualmente as bruxas estão ajudando o cacau em um novo ciclo.

Fogo e paixão

As pioneiras dessa moda no Brasil promovem cursos que formam novas guardiãs, mulheres com habilitação para "abrir rodas e servir o cacau". "O principal segredo é a condução. Não está nos ingredientes, porque tem gente que mistura com mel, canela e outros temperos. Não está nas crenças, porque o cacau serve para várias delas. O importante é a energia", afirma Bernadete, que aprendeu sua missão em 2021.

Quando ela faz o ritual em encontros tântricos, os participantes relatam picos contínuos de tesão. Em reuniões de bruxas, os efeitos são mais emotivos: umas choram muito; outras ficam extremamente afetuosas. "Depois de tomar o cacau, é preciso cantar, tocar e dançar para espalhar a emoção pelo corpo todo. Se não, ele se concentra muito", afirma a bruxa

Quando alguém ficava muito zen ou distraído, Bernardete chegava agitando, com ordens de "pisa forte, caralho" e "grita, porra". Depois se desculpava, dizendo que não queria ofender ninguém, mas precisava daquela intensidade.

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Cacau em barra, vindo da Bahia, é ralado antes de ser dissolvido em água e servido em ritual xamânico
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Definindo-se como "neopagã", Bernadete é também "guardiã do tambor xamânico" e fez uma limpeza energética batucando e gritando ao redor dos participantes. A vibração da percussão massageava o corpo.

A sessão musical foi especialmente eclética, incluindo Black Sabbath, Sidney Magal, Wando e funk mandando "sentar e mexer a raba". O altar também era polivalente, com imagens de deusas femininas, entidades indígenas, velas, incensos, cartas de tarô, pedras, dados, cachimbos e búzios. Tanta mistura combinava com o sítio que recebia a celebração, cercado de pés de caquis e milho, entre os quais passeavam galinhas, ovelhas e cachorros.

A cerimônia de fechamento do retiro aconteceu com uma fogueira em trecho da Mata Atlântica restante na chácara, que conta ainda com galpão com enorme churrasqueira, mostrando que outros rituais com brasas mais socialmente aceitos acontecem ali.

Na roda em meio à vegetação, as pessoas relataram sensações e experiências. "Cada um contar sua história é a verdadeira bruxaria. Nada encanta mais que ouvir o que há de significativo na vida dos outros", instrui Bernadete. Talvez seja a verdade mais irrefutável dita ali. Ao redor do fogo, o homem pré-histórico narrava seu dia de caça aos outros. Hoje em dia, é a luz das telas que ilumina os relatos que atraem e hipnotizam as audiências da internet, o que os moderninhos vendem como a fórmula de sucesso chamada storytelling. Descubro que, ao fim e ao cabo, esse texto não passa também de um ritual.

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Guardiã do cacau celebra cerimônia em que distribui beberagem achocolatada em sítio de Mogi das Cruzes (SP)
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL