Matheus Pichonelli

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Opinião

De Neymar a Larissa Manoela: o papel de 'pais gestores' na família moderna

A ideia de que a família é um espaço da ternura e da intimidade é relativamente nova na História da humanidade. Até a Idade Média, o que historiadores como o francês Philippe Ariès chamam de "sentimento de família" era praticamente desconhecido: a função do pai e da mãe não era amar, cuidar ou proteger. Era transmitir a vida e, se tivessem, os bens.

Crianças eram consideradas pequenos adultos. E desde muito cedo eram recrutados para trabalhos braçais e aprendiam a se proteger contra os próprios irmãos para garantir a parte que lhes cabia em cada latifúndio. Mesmo que fosse um canto na latrina.

A ideia de família nuclear surge em meio a transformações econômicas e sociais que separaram a esfera da produção e da reprodução: o casamento passa a ser definido por um então desconhecido chamado amor (diria Paulo Ricardo) e o cuidado deixa de ser uma responsabilidade da comunidade e se torna uma obrigação do pai e da mãe (ou só da mãe, em boa parte dos casos). Era de interesse de todos, mas principalmente da sociedade industrial que emergia, que as crianças sobrevivessem e crescessem firmes e fortes para se tornarem, no futuro, unidades de produção de riqueza.

Um astro mirim, em meados do século 20, era um ruído na ideia da família moderna, aquela fundada no conceito de "sentimento" e que dava aos pais a atribuição de prover o sustento da casa.

A indústria do entretenimento que despontava possibilitava a uma criança juntar mais dinheiro entre a infância e a adolescência do que os pais operários conseguiriam a vida toda. Tudo isso se acelerou em um contexto em que jovens milionários, com milhões de seguidores no TikTok, ditam a tendência e os caminhos do dinheiro. É como se, além dos pais, os filhos não tivessem tempo para criar vínculos (e afetos, memórias etc) com seus familiares porque também, a exemplo dos adultos, estavam trabalhando quando deveriam estar brincando, aprendendo, conhecendo o mundo, vivendo, enfim.

Nesse contexto é comum que os filhos se tornem o empreendimento dos pais desde muito cedo. Para se proteger da cobiça de empresários, eles passam a gerenciar suas carreiras a mão de ferro.

Ninguém exemplifica mais essa relação, em que filhos são chamados de investimentos e o tempo dedicado a cuidados, de "gasto", do que Neymar pai, que já se referiu ao filho como uma "marca" e ao nascimento de seu primeiro neto como "uma gestão de crise". A linguagem empresarial incorporada aos signos familiares não é só uma licença poética. "Valor" é uma desses signos de duplo significado.

Ao menos financeiramente, não se pode dizer que a gestão é um fiasco. Neymar filho acaba de fechar um contrato com um clube da Arábia Saudita para ganhar R$ 1,17 milhão ao dia.

Ninguém imagina que o novo astro Al-Hilal precise, nos próximos dias, ligar para o pai e pedir um dinheirinho por pix e pagar o vendedor de milho na praia, certo?

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Pois em sua entrevista ao "Fantástico", a atriz Larissa Manoela contou que perrengues do tipo eram comuns em seu relacionamento com os pais, responsáveis por gerenciar sua carreira praticamente desde que ela nasceu. Ela tem 22 anos e inacreditáveis 18 só de carreira.

Deu tempo de estrelar novelas, musicais, lançar álbuns de música, colecionar milhões de seguidores, protagonizar propagandas na TV, entre outros feitos que já garantiriam a ela uma vida confortável até as próximas gerações. Faltou combinar com a geração anterior, a quem coube a missão de alimentar e levar pra passar.

Em pleno dia dos pais ela afirmou ao dominical da TV Globo por que decidiu romper com a família.

Os problemas, segundo ela, se avolumaram a partir dos 18 anos, quando ela atingiu a maioridade e entendeu que precisava saber o mínimo sobre o seu negócio (no caso, ela). "Eu só queria entender como estava essa questão financeira que nunca me era apresentada", disse a atriz, como se cobrasse dos pais que eles explicassem como os bebês vão parar na barriga das mães.

Ela, que recebia uma mesada dos pais até outro dia, disse abrir mão de seu patrimônio, avaliado (subestimado?) em R$ 18 milhões, para poder tocar a vida sem eles. Me parece uma declaração de amor e tanto, mas os pais, até onde se sabe, acharam pouco.
A mãe, em um áudio revelado na reportagem, diz que a partir de agora "mãe" é só um título, um termo sem validade afetiva -- como nos tempos pré-medievais. Quanto a chamar de "mercenária", estava autorizada.

Não foi o primeiro nem o último rompimento entre pais e filhos que, a certa altura da vida, já não sabiam o que era amor, o que era cilada e o que eram negócios na relação. Como faz, afinal, para demitir alguém que, no limite, pode sempre jogar na sua cara que te amamentou?

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A "marca" Macaulay Culkin já tinha o equivalente a R$ 200 milhões no bolso quando seu pai o obrigava ainda a dormir no sofá da própria mansão para que a fama "não lhe subisse à cabeça".

Neymar pai, no documentário sobre o filho na Netflix, tem explicações parecidas para justificar a mão de ferro com que administra os rumos e até os desejos de seu maior empreendimento.

Britney Spears teve de brigar na Justiça para tirar dos pais a tutela e o controle de cada minuto e cada dólar acumulado em sua carreira. Ela tinha quase 40 anos.

Em uma das cenas mais dolorosas de "Menina de Ouro", a lutadora interpretada por Hilary Swank recebe uma visita da família usurpadora, no hospital, logo após sofrer um acidente que lhe tira o movimento das pernas. A mãe que até então lhe desprezava quer obrigá-la a assinar literalmente com a boca um termo que garantia a ela alguma compensação financeira pelos prejuízos com o fim iminente da carreira. Não teve sequer o cuidado de disfarçar que passeava na Disney enquanto a filha lutava para sobreviver e tinha ao lado apenas o cuidado de seu treinador, personagem de Clint Eastwood.

A cena é um soco na boca do estômago do modelo consagrado de família que nos ama e protege incondicionalmente forjado ao longo da modernidade.

No caso de atores e atrizes mirins, ou mesmo de atletas vendidos como commodities cada vez mais cedo para fora, a independência e a autonomia nem sempre são conquistas adquiridas antes do pico do sucesso. Muitas vezes não puderam sequer brincar como crianças ou aprender a errar sozinhos, já na adolescência. É que o talento e a fama são atrativos a todo tipo de cupins, e não só familiares (vejam o caso de Luva de Pedreiro ou do autor do hit Caneta Azul).

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É bom desconfiar quando um desconhecido se aproxima da família e promete cuidar das jovens promessas como se fosse um filho ou uma filha. Pode ser uma ameaça.

O amor, num caso e no outro, costuma durar até quando a unidade de produção está disposta a alimentar padrões de vida de quem usa a ideia de amor incondicional para alimentar todo tipo de neuroses e afetos contraditórios.

Em seu pronunciamento, por meio de advogados, sobre todo o imbróglio, os pais de Larissa Manoela dizem lamentar a ingratidão, a indiferença e o desrespeito da filha que acabava de deixar a eles uma "herança" de R$ 18 milhões.

No dia dos pais, deixavam claro que a filha era um ativo preso a um contrato e uma ideia de gratidão eterna. Não tem nada mais pesado do que carregar algo assim nas costas. Também não há dinheiro no mundo que pague o alívio do livramento.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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