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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com Tensão Pré-Mundial, Neymar mostra seu lado Coringa às vésperas da Copa

Neymar fantasiado de Coringa para uma festa de Haloween do clube PSG, em 2017 - Reprodução/Instagram/neymarjr
Neymar fantasiado de Coringa para uma festa de Haloween do clube PSG, em 2017 Imagem: Reprodução/Instagram/neymarjr

Colunista do UOL

13/11/2022 04h00

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Neymar está a poucos dias de estrear em sua terceira Copa do Mundo e aparentemente nunca esteve tão pronto para isso. Em campo, ele tem se mostrado um jogador cada vez mais decisivo, concentrado e cerebral, capaz de distribuir a bola com passes precisos em um jogo no qual se notabilizou com dribles, arranques e gols. O Neymar versão 2022 está mais solidário.

Ainda assim, ou justamente por isso, na reta final da preparação, o craque resolveu chamar a atenção para o que faz fora de campo.

Por vias tortas, Neymar parece transformar suas pegadas digitais em uma espécie de "corte Cascão" de Ronaldo Fenômeno na Copa de 2002 — uma forma de fazer as pessoas falarem de seu cabelo e seu estilo e tirar de foco as dúvidas sobre seu desempenho e suas lesões.

Dias atrás, o menino (sic) de 30 anos chamou atenção após a divulgação da notícia de que, entre os preparativos para o Mundial, estava os cuidados com a pele de bebê.

Tem como ser mais bobo?

Tem.

Por cálculo ou tédio por TPM (a Tensão Pré-Mundial), Neymar tem passado mais tempo nas redes do que o recomendável para quem precisa manter o foco em outra área.

No Twitter, ele mostrou por que é presa fácil das provocações de adversários ao responder com deboche e arrogância a uma brincadeira da economista Nath Finanças, uma referência em educação financeira para pessoas de baixa que ele chamou de "uma qualquer". Nath havia feito uma piada sobre os problemas enfrentados pelo atleta com a Receita.

Neymar falou o que queria, ouviu o que não queria e passou rolando pela timeline com a canela inchada como quando toma um tranco dos zagueiros.

Pior ainda foi quando ele mostrou um lado perverso e sombrio ao endossar, com uma curtida, um post ofensivo que debochava da conhecida dependência química do ex-jogador Casagrande. Neymar, que parecia chateado com uma crítica do comentarista, talvez não tenha entendido a dimensão de uma simples curtida para quem tem milhões de seguidores. Também não entendeu que, no campo e fora dele, não se revida um tranco comum de jogo com uma solada no rosto.

Convenhamos que não deve ser fácil explicar isonomia de armas para quem, não faz muito tempo, respondeu à provocação de um torcedor com um soco literal.

Se for essa inteligência emocional que o principal jogador do time levará a campo, os rivais podem começar a abrir o champanhe.

Mas não é só a antipatia de quem foi atacado nas redes que Neymar levará a campo no Qatar.

O camisa 10 assumiu um risco (desnecessário?) ao entrar de sola numa campanha presidencial violenta e polarizada e declarar voto, com um sorriso de deboche e uma dancinha infantil, em Jair Bolsonaro (PL), presidente rejeitado nas urnas e nas pesquisas de opinião por mais da metade do país.

Herdar parcela dessa rejeição para dar a resposta em campo talvez seja parte da preparação motivacional do atleta. Se for, não é lá muito inteligente — como não têm sido as reações e declarações do jogador ao longo da carreira.

A essa altura, esperar que no meio das dancinhas e sorrisos de menino surgisse a versão brasileira de Muhammad Ali é como esperar o ônibus para o Jaçanã passar por Doha.

Goste-se ou não, Neymar é um dos personagens mais fascinantes do nosso tempo. Justamente porque poucos incorporam melhor as nuances e contradições desse tempo como ele.

Na série documental "Neymar - O Caos Perfeito", da Netflix, chama a atenção um quadro pendurado em sua casa, no qual o nosso herói é retratado com duas caras, metade Batman, metade Coringa.

Neymar, o pai, é quem guia a carreira e as subjetividades do filho, a quem se refere como uma "marca". A fronteira confusa de papéis leva o filho a observar no patriarca a sombra de um patrão. Ele mesmo diz que desde cedo tem um torcedor instalado na cabeça que atende por Neymar Pai.

Uma das críticas mais violentas sofridas pelo atleta no começo da carreira foi justamente por não respeitar a hierarquia de sua equipe, comandada por um técnico e um capitão. A descompostura levou Renê Simões a dizer que, se não fosse domesticado, aquele menino se transformaria em um "monstro".

Mais de dez anos depois, a "profecia" paira como a névoa de Gotham City sobre o personagem criado em laboratório pelo pai, que vê no caos a condição propícia para a emergência do herói.

Na série, como o retrato em sua parede, Neymar assume e repele essa missão diversas vezes.

Nascido em 1992, ele cresceu em meio a uma transição geracional que sepultou, para depois tentar resgatar, suas figuras de autoridade.

Nasceu millennial e cresceu centennial. Não chegou a fincar raízes em lugar algum. Nem na comunidade onde nasceu e de onde saiu muito cedo, nem nos clubes e torcidas por onde passou, nem nos países que o acolheram.

O campo de transição constante moldou nele uma personalidade em conflito. Esse campo da personalidade, há poucos anos, parecia bem delimitado entre jogadores bad boys e atletas de Cristo. Neymar é um pouco das duas coisas e não é nem uma coisa nem outra: não é o rapaz de vida regrada em família (ele sequer teve relacionamento estável, mesmo com a atriz famosa com quem interpretou um vaivém aos solavancos), mas também não é a estrela que peita treinador e caminha pela areia da praia, sozinho e sem estafe, para jogar futevôlei e repercutir as notícias das confusões promovidas em campo e fora dele.

O acesso ao espaço público, aliás, não é permitido a pessoas como Neymar, condenadas a viver confinadas, em bolhas.

O resultado é uma desconexão tão grande da realidade que, no mesmo documentário, Neymar chega a dizer que foi gostoso o período da pandemia, quando milhares de compatriotas morriam asfixiados, porque finalmente encontrou tempo para ficar com o filho e seus amigos em sua mansão.

Passado o período, ele encara um mundo que se reabre agora com uma ingrata missão: terminar o que não conseguiu fazer uma geração de atletas que capitulou. Entre Neymar e Ronaldo, uma fila de craques ficou pelo caminho, como Robinho e Adriano.

Neymar estourou no futebol em 2010, mesmo ano do surgimento do Instagram, plataforma onde hoje dialoga diariamente com 181 milhões de seguidores.

Pelas redes, vimos seu personagem não amadurecer em tempo real.

Como muitos de nós, ele também aprendeu a manejar as novas ferramentas por tentativa e erro, deixando no caminho o registro de uma vida que ora flerta com o herói nacional, ora com o vilão atormentado, desses que as marcas já não querem se associar (a Nike quebrou o contrato com o atleta em razão de uma denúncia de assédio feita por uma funcionária).

"Eu não quero ser o herói, eu não quero ser um grande homem. Quero lutar como todo mundo", canta o personagem cansado de rótulos da música "Hero", da banda Family of The Year.

É mais ou menos isso o que pede Neymar em diversos momentos do documentário. Ele rejeita e (muitas vezes) assume os papéis que o levam a ser o que ele é e também os levam a se perder de si mesmo em essência, seja ela qual for.

No início do documentário, Neymar pede para a direção usar nas primeiras cenas todos os xingamentos que já recebeu. A ideia era confrontar a expectativa de um monstro criado em laboratório com o mocinho a ser conhecido de perto e revelado aos poucos.

No campo e na tela, pela qual se mostrou um pai amoroso e disposto a dar ao filho uma juventude menos vigiada que não teve, ele estava perto de conseguir isso, até resolver encarnar seu lado Coringa nas redes sociais.

Reconquistar a parcela da torcida que esnobou exigirá do Adulto Ney um reposicionamento — não de "marca", como pediriam seus gestores, mas da forma como vê e se conecta com um mundo que não gira em torno de seu umbigo e não lhe deve devoção e tributos o tempo todo, pelo contrário. Entender isso é o grande título que ainda falta no seu currículo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL