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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Neymar e a curiosa síndrome dos 'meninos' que não sabem ganhar

Neymar (Foto: Reprodução/Instagram) - Reprodução/Instagram
Neymar (Foto: Reprodução/Instagram) Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

15/09/2021 04h00

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Os especialistas podem ajudar nessa. Existe, na literatura especializada da mente humana, alguma referência relacionada à mágoa do vencedor? Se houver, é possível que a história do menino Neymar seja usada em breve como estudo de caso.

Dias atrás, o menino comeu a bola, driblou, deu passe, fez gol, se firmou como o maior artilheiro do Brasil nas eliminatórias e ficou mais perto de ultrapassar Pelé como o principal goleador da seleção. Ao fim do jogo, ele saiu de campo e mostrou a sola da chuteira para a nação: "Não sei mais o que fazer com essa camisa pra galera respeitar o Neymar. Isso é normal, vem há muito tempo".

Ok, ganhar uma Copa seria uma forma de galgar algumas prateleiras até o panteão que Ronaldo, Romário e o próprio Pelé já alcançaram e ele ainda não. Tem uma caminhada ali e ele é sempre cobrado por isso. Mas daí a falar em falta de respeito?

O Neymar que se vê perseguido já jogou duas Copas, é presença recorrente em convocações desde 2010, joga em um dos principais times da Europa, é bajulado por onde passa e, até onde se sabe, não precisa esperar o cheque cair para pagar a conta de energia. Nas ruas, provavelmente ninguém mudaria de calçada se o visse.

Mas o Neymar não está feliz. O menino está bravo. Está tão bravo que arrumou tempo para responder a Patrícia Pillar depois que a atriz declarou no Twitter que estava decepcionada com o craque e sua obstinação em superar o Pelé em número de gols pelo Brasil.

Neymar, vamos combinar, mandou bem na resposta, perguntando se ele deveria parar de marcar gol para não chateá-la, mas só o fato de ter corrido para se defender mostra que alguma coisa não está bem, ao menos fora de campo, com o atacante. Talvez uma atenção permanente que desmente os versos de Jair Rodrigues e o impedem de deixar "que digam, que pensem, que falem''.

É a síndrome do vencedor magoado.

No futebol moderno isso se enraizou como praga no gramado. O sujeito não comemora o título. Manda recado para os críticos. Não celebra o gol. Manda a torcida calar a boca. A raiva move nossos craques como uma usina e os convence a ir não para um jogo, mas para a guerra.

Esse conjunto de sintomas é também recorrente fora dos gramados, mas circula pelo campo de uma lógica organizada entre vencedores e vencidos.

Outro dia li a entrevista de um conhecido ator, cantor e compositor de 84 anos que voltou a gravar uma minissérie para a principal emissora do país e no meio da conversa se queixou de não ser "muito lembrado". Pô! O cara tem sucesso que toca quase todo dia na minha vizinhança. Está na maior vitrine midiática do país. E não é lembrado? Quase sugeri à Prefeitura do Rio que trocasse o Cristo Redentor pela imagem dele para ele não se sentir mais tão esquecido.

Outro caso emblemático é a de um presidente de um país não muito distante que passou a maior parte do mandato gritando que venceu, porra!, e reclamando da falta de devoção de quem o lembrava que de vez em quando talvez, veja só, caso não for incômodo, era bom que parasse de bravata e começasse a trabalhar.

Na semana passada, ao sair de um encontro com bacanas, um amigo mais ou menos remediado ficou assustado com a conversa servida à mesa dos amigos ricos que, em tese, conseguiram tudo na vida — a boa casa, o carro na garagem, o dinheiro no banco e os serviçais com avental atestavam que ali ninguém precisaria bufar porque perdeu o ônibus das 17h e o próximo só passaria às 20h para chegar em casa às 22h. Ainda assim os homens à mesa bufavam, abraçados a suas taças de Château Ausone, sob a ladainha de que tudo está ruim, nada tem prestado, o país está perdido, era preciso mudar tudo para que tudo seguisse como estava.

Segundo o relato, os empregados olhavam os anfitriões como o motorista olhava para a madame falando da chuva que felizmente não melou a festa dos filhos no filme "Parasita" — àquela altura, a casa dele estaria inundada.

Se fosse resumir, diria que o asco de pagar impostos junta todo mundo na mesma chorumela. Mas não iria tão longe.

Se pudesse chutar, diria que a síndrome do vencedor insatisfeito é um estágio avançado de uma doença que ataca quem descobriu, desde cedo, que tinha algum privilégio (um dom ou uma herança), cresceu sob mimos e expectativas, reconhecimento ou fama, altos contratos e curou qualquer frustração ou sinal de tédio comprando tudo o que a vista alcançava, inclusive relacionamentos, ao preço da mais completa desconexão com a realidade — esta observada hoje apenas pelas lentes de aumento das redes sociais, onde um ego search faz qualquer um imaginar que ali só se fala nele, o alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado.

Lá na terra da zoeira, até rei vira meme. Que dirá dos craques que acreditaram ter vindo ao mundo para dar alegria ao seu povo e agora querem ser indenizados por anos de treino e concentração com a mais absoluta devoção — aquela que tem revertério na primeira crítica ou contestação de que o mundo não é assim e nem gira ao seu redor. Spoiler: nas vitórias ou derrotas, todo mundo toca a vida no dia seguinte.

Símbolo de uma geração confusa, Neymar é só um dos muitos pobres meninos ricos que demoraram a entender que o mundo do qual cobram devoção tem mais a fazer na vida do que prestar tributos aos seus talentos (inegáveis, diga-se), seus méritos, sua beleza, sua dedicação ao esporte para nos entreter.

É a distância entre o ranço e a realidade que o impede de olhar em perspectiva seus próprios privilégios no caminho da vitória. Inclusive o de ser tratado como menino aos 29 anos.