Matheus Pichonelli

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Opinião

O que seria de Eduardo e Mônica em tempos de chatbot no WhatsApp?

Jessica nunca soube nada de futebol, mas vestiu a camisa do Vasco e tem na ponta da língua todos os títulos do clube cruzmaltino até 2000, ano em que Romário e companhia conquistaram as taças da Mercosul e da João Havelange.

Ela não mora na roça, mas sabe quantas toneladas de carne movimentou a pecuária no último ano.

Não precisou ler a Bíblia para citar de cabeça uma passagem do apóstolo Paulo em sua carta aos Coríntios, capítulo 1, versículo 13, sobre o amor.

Nem foi necessário virar gamer para tecer elogios à nova rota de roaming de League of Legends.

Sedentária, impressiona falando sobre uso correto da creatina durante a ingestão de carboidratos.

A quíntupla personalidade é apresentada, diante do espelho, pela atriz Lara Santana em seu perfil do TikTok.

Não era um esquete sobre transtornos, mas uma propaganda de um assistente pessoal que transportou o ChatGPT para o WhatsApp. É lá que a personagem consegue "estudar para o date" e garantir assunto com todo mundo.

O fato de a ferramenta ter sido lançada por uma empresa de assinatura eletrônica não é a única curiosidade da história.

O perfil que municia quem teme ficar sem assunto no WhatsApp tem o nome de Gepeto. Presume-se que se trate de um trocadilho com a invenção da OpenAI e uma homenagem ao criador do Pinóquio, uma marionete de madeira que tenta ser humano e vê o nariz crescer toda vez que enrola alguém.

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"Você pode não acreditar mas eu posso te responder qualquer coisa!", me garante o Gepeto do zap em nossa primeira interação.

Ele mesmo sugere temas para botar seu cérebro artificial para trabalhar:

- Dê dez ideias para um primeiro encontro;

- Explique como são criptomoedas;

- Como posso conseguir um aumento no meu trabalho;

- Como posso dizer educadamente ao meu amigo que não conseguirei ir ao evento.

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Como se vê, as dicas começam e terminam com orientações precisas para pessoas que não têm ideia de como socializar e para outras que não fazem a menor questão — mas precisam parecer pelo menos elegantes, tanto num caso como em outro.

No meio estão orientações para conseguir dinheiro, virtual ou não.

Os influencers do YouTube que ganham a vida dando dicas de flertes ou finanças podem se preocupar: a ferramenta promete responder em segundos tudo o que o seu público sempre quis saber sobre sexo e investimentos mas tinha vergonha de perguntar.

A boa notícia é que o assistente pessoal é mais útil para futuros amantes do que o red pill que outro dia viralizou fazendo lista dos tipos de mulher para não se casar. "Generalizar e rotular pessoas com base em estereótipos não é justo nem correto", ensina a máquina que tenta, de outras formas, transformar pedaços de madeira em humanos.

"Cada indivíduo é único e possui suas próprias características, valores e personalidade. Em vez de focar em 'tipos de mulheres para não casar', é mais construtivo buscar um relacionamento saudável e feliz com base no respeito mútuo, compatibilidade e comunicação aberta. É essencial tratar as pessoas como indivíduos e não fazer generalizações baseadas em gênero. O amor e o casamento são complexos e cada relacionamento é único, então é importante conhecer e entender a pessoa com quem você está se relacionando em vez de se basear em estereótipos negativos." Tomou, humano?

A ferramenta também ensina que "pedir nudes para alguém que você acabou de conhecer é uma atitude inadequada e desrespeitosa" e que "o consentimento mútuo e o respeito são fundamentais em qualquer interação ou relacionamento". Aparentemente já fez mais pelo amigo do que o ex-colega de classe que repete há 18 anos a mesma pergunta: "E aí, comeu?"

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A má notícia é que, a partir de agora, a pessoa que está no Tinder e se define, por exemplo, como amante dos livros e da literatura, passará a se relacionar com a mesma pessoa pelo resto da vida. Todos os seus pretendentes receberão a mesma resposta se quiserem saber quais são os livros indispensáveis para parecer inteligente. Ou as melhores frases de amor para não fazer feio no primeiro encontro.

Fico imaginando o que faria o Eduardo, parceiro da Mônica na música da Legião Urbana, se tivesse acionado o Gepeto antes de responder ao amigo do cursinho que disse "tem uma festa legal e a gente quer se divertir".

"Finalize a conversa agradecendo novamente pelo convite e reforçando o quanto você valoriza a amizade", diria o assistente, sem margem para a Mônica rir e querer saber um pouco mais sobre o boyzinho que tentava impressionar fingindo estar cansado de birita, de festa estranha e de gente esquisita.

Ok, a ferramenta não deixaria o Eduardo sozinho no camelo quando a Mônica dissesse que queria ver o filme do Godard ("um renomado cineasta francês, considerado uma das figuras mais influentes e importantes da Nouvelle Vague" e cujos filmes, como "Acossado" e "O Desprezo", são marcados por técnicas de montagem ousadas, diálogos filosóficos e uma reflexão crítica sobre sociedade e política"), mas tudo o que dá liga naquela história viraria vinagre na era digital.

Seria a máquina, e não a futura namorada, quem explicaria a ele coisas sobre o céu, a terra, a água e o mar. Ele não precisaria gostar para saber o básico sobre Manuel Bandeira, Bauhaus, Van Gogh, Mutantes, Caetano, Rimbaud. Ou sobre magia, meditação e as coisas do Planalto Central. Bastava consultar o Gepeto antes do date.

E mesmo com tanta afinidade artificial, surgiria meio de repente entre eles aquela vontade de se ver após dois minutos de conversa padronizada? Haveria música (e depois até filme) para celebrar a história anos depois?

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Fica aqui a dica de pergunta para o assistente virtual: quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo chatbot? E quem irá dizer que não existe razão?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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