Matheus Pichonelli

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Opinião

De João VS e Anna Delvey: com rede social, ficou fácil enganar meio mundo

A história de João VS, tiktoker que dizia ser filho de um xeque e vivia em Campo Grande, no Rio, me levou a rever um antigo Documento Trololó, um dos esquetes mais geniais do grupo Hermes & Renato.

O humorístico imitava programas de investigação jornalísticos que alardeiam a gravidade do assunto na TV com apresentadores sisudos e música de suspense. O do Hermes & Renato ouvia personagens, especialistas e botava em campo um time de reportagem para registrar flagrantes de picaretagens.

Em um dos programas épicos, sobre redes sociais, uma cientista mostrava uma experiência com ratos expostos ao Instagram. O resultado? A exposição à tela deixava os roedores mais vaidosos; eles passavam a frequentar academia, a ostentar vida fitness e a se passar por amigos de famosos para conseguir encontros.

Mas a melhor parte do "documentário" era a perseguição a uma tal de Keyla que gastava os dias postando fotos de uma vida nababesca. A farsa começa a ruir no dia em que as câmeras dos humoristas flagram a personagem pulando o muro de um famoso spa de luxo, de onde ela "pica a mula" em três minutos. Logo depois, desovava em seu perfil uma série de fotos à beira da piscina do espaço.

Ela fazia o mesmo em restaurantes de luxo (que, no esquete, eram só um quilão da firma) e em viagens a lugares paradisíacos, que não passavam de cenários produzidos.

Num deles, o protótipo de influencer posa numa praia que tem ao fundo a Torre Eiffel, as pirâmides de Quéops, a Esfinge e o Cristo Redentor ("de braços abertos, abençoando toda a sua mentira").

Lançado no começo da última década, o documentário ficcional se mostrou profético. De lá para cá o que não falta é gente performando nas redes uma realidade que não duraria dois segundos de investigação, mesmo que de sacanagem. O único "erro" da profecia foi ter concluído que o exibicionismo cibernético não levava a lugar nenhum.

O de João VS, que mobilizou detetives virtuais e jornalistas dispostos a desmascarar a farsa, como fizeram com a dona Keyla, o levou a lojas de grife, carros de luxo e viagens internacionais.

O segredo para frequentar o mesmo lugar dos ricaços, segundo as apurações, era fingir ser um deles — mais ou menos como faz o casal falido de "Triângulo da Tristeza" para frequentar cruzeiros de luxo: a eles bastava postar conteúdo sobre aquela vida para ganhar autoridade e convites para outras viagens. O que os personagens, os reais e os fictícios, tinham, na verdade, era uma síndrome: a síndrome de Anna Delvey, em referência a uma golpista russa que enganou meio mundo fingindo ser uma herdeira alemã.

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As redes sociais são o meio e o fim de histórias do tipo. No caso de João VS, o maior choque, além da descoberta de que o grã-fino vivia num bairro da zona oeste carioca, foi a revelação de que um dos relógios de luxo exibidos pelo influencer foi emprestado pelo cantor Belo. Sim, aquele. A foto com o objeto (feita em segundos, ao que parece, e com a anuência do cantor) rendeu o passaporte virtual para acessar as áreas VIPs do mundo real.

Esse passaporte, ao que parece, funcionava também como salvo-conduto para ganhar o selo de pessoa de confiança. Foi com esse selo, dizem os detetives, que ele aplicou golpes em série. Confiando que dinheiro não era problema para ele, as pessoas aparentemente não viam problema em lhe dar dinheiro.

Assustado com a repercussão da história, João VS tem evitado dar entrevistas.

Dele pode-se dizer tudo, menos que inventou a roda.

Quem se lembra de Shimon Hayut, que ficou conhecido como golpista do Tinder e virou personagem de filme, vai se lembrar também da quantidade de gente que precisou assistir ao documentário da Netflix para perceber que caiu em um golpe parecido. Em todos os casos, o golpista se passava por milionário para se aproximar de pessoas ricas e ganhar dinheiro.

O que os golpistas de rede social fazem, em outra escala, é o que muita gente aprendeu muito antes de Zuckerberg inventar o Facebook. Em política mesmo ainda hoje é comum eleger representantes ricos (ou dublê de milionários) com o argumento de que eles já têm dinheiro suficiente e não precisam roubar os cofres públicos. Querem apenas trabalhar pelo povo. Paulo Maluf e seus pastiches agradecem a confiança.

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A ostentação vende, rende, gera confiânça e se reverte em em tráfego. Não precisa nem ter carro do ano: é só pular o muro do spa (ou de uma agência de marketing digital) fazer foto na piscina e sair correndo sem pagar. As redes se alimentam justamente da cobiça e do desejo de quem dá clique e engajamento a quem melhor representa seus desejos. Todos querem um dia ser um milionário. Inclusive quem finge ser um.

Em tempos de Instagram, ninguém precisa ter o talento de Marcelo da Rocha, que inspirou o filme "VIPs", para enganar meio mundo e viver uma vida que não é sua, e sim de suas muitas personalidades. Mas mesmo ele virou juvenil perto de George Santos, um mitomaníaco eleito deputado pelo Partido Republicano, nos EUA, criando uma história fictícia a respeito de seu sucesso financeiro e profissional. Ele chegou até onde chegou performando e falando exatamente o que as pessoas gostam de ouvir sobre mérito, oportunidades e caminho livre até os milhões — o conto de fadas de adultos que sonham um dia chegar lá.

Hoje, sob imunidade, ele é acusado de usar dinheiro público para comprar roupas de grife.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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