A casa caiu

Como fica o direito à moradia em uma época que o doce lar virou ativo financeiro

Um episódio com figuras nacionais mostra como funciona a lógica imobiliária no Brasil. O procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato, comprou em 2012 dois apartamentos em um empreendimento que foi construído dentro do Minha Casa Minha Vida, programa de moradia popular lançado em 2009 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O petista, por sua vez, foi apontado anos depois pelo promotor como figura central em um esquema de corrupção que, segundo veredicto judicial, lhe rendeu, por exemplo, um apartamento triplex no Guarujá (SP).

Não há nada de ilegal na aquisição do homem da lei. O próprio Dallagnol classificou como “investimento” os dois imóveis comprados à vista em Ponta Grossa, distante 115 quilômetros de seu trabalho no Ministério Público Federal de Curitiba.  O revelador é que os apartamentos foram construídos e destinados inicialmente para famílias com renda de R$ 4.000 a R$ 7.000, que teriam o direito a comprá-los com prestações de juros baixos (8,16%) em relação ao mercado.

Maior programa habitacional da história nacional, com 5 milhões de unidades erguidas até o fim de 2018, o Minha Casa Minha Vida foi criado com a justificativa de reduzir o déficit habitacional brasileiro. Não conseguiu. Essa estatística até cresceu no período. Os analistas apontam que o MCMV serviu mais para movimentar a economia e gerar empregos do que para erguer domicílios àqueles que não têm. As obras pressionaram o valor do aluguel, que entra no cálculo do déficit. “Quem comandou e definiu onde as obras se localizariam não foi o governo federal. Foram as prefeituras, as incorporadoras e as empreiteiras”, explica Ermínia Maricato, professora aposentada da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), que estuda o programa desde sua criação.

UM DESERTO INDOOR

Quando o domicílio deixa de ser um direito e vira um ativo financeiro, os números explicam uma nação em que pessoas e telhados habitam regiões diferentes. No último levantamento da Fundação João Pinheiro (2015), foram registradas 6,3 milhões de famílias dentro do déficit habitacional, enquanto 7,9 milhões de imóveis permaneciam vazios.

Isso seria o resultado, segundo geógrafos e urbanistas, do tradicional patrimonialismo brasileiro somado à atual financeirização da moradia, que é a união do setor imobiliário e do mercado financeiro como principais promotores das mudanças nas cidades — as construtoras estão na bolsa e há títulos chamados “fundos imobiliários”, que repartem lucros sobre aluguel e comercialização de imóveis. O termo financeirização entrou em voga com a última crise econômica mundial, que começou em 2008 após o estouro da bolha dos títulos hipotecários podres nos Estados Unidos.

Nessa dinâmica, o governo entra como incentivador ou controlador da iniciativa privada, enquanto a população cabe só reagir a tanto ímpeto de incorporadoras e construtoras sobre os espaços. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001 apontam a função social da cidade. O problema é que, com a desindustrialização das metrópoles, a cidade deixou de ser o lugar de produção de bens e virou o próprio objeto da produção econômica, com a construção civil como a criadora desse valor.

“A cidade virou o território da acumulação dos lucros. Os prédios são andares, mas poderiam ser moedas empilhadas. O direito de uma cidade construída para se morar, com a habitação decente, com um meio ambiente preservado, com a qualidade de vida, nunca poderá ser feito por ações relacionadas ao mercado”, afirmou o geógrafo inglês David Harvey, durante sua passagem pelo Brasil em 2018, quando lançou o livro “A Loucura da Razão Econômica” (editora Boitempo).

AS CIDADES E AS PESSOAS

O ESPECULADOR MORA AO LADO

Para Harvey, a especulação abala até o sentido de comunidade. “Se a casa é algo para valorizar, vender e ir para outro lugar, não há mais o conceito de vizinhança, de solidariedade”, sentencia o autor que influencia há três décadas os estudos urbanos.

E agitação cultural e a vida noturna ajudam na transição de um bairro degradado e desvalorizado para uma área de interesse do investimento imobiliário, processo que recebeu o nome de gentrificação. Um caso exemplar é a região conhecida como Baixo Augusta em São Paulo, área entre os chamados centro velho e o centro novo (leia-se avenida Paulista).

Até a virada do século era um local cheio de inferninhos, botecos e hotéis de alta rotatividade. Depois começaram a chegar os jovens de classe média para dançar nas baladas de rock e música eletrônica que se espalharam por lá. Na sequência, começaram a surgir os prédios de alto padrão. “É um fenômeno mundial. Acontece em Lisboa, em outras cidades europeias. E nos EUA também. Essa função da arte aconteceu também na Vila Madalena e seus ateliês e galerias. A vida movimentada do bairro atraiu os prédios que desalojaram as casas culturais”, analisa Jorge Bassani, professor de história da arquitetura da FAU-USP.

Algumas transições, porém, dão errado. O maior exemplo no Brasil é a Vila Olímpica do Rio. Depois de receber os maiores atletas do mundo em 2016, os 3.604 apartamentos encalharam. Nem o capital simbólico de ter hospedado Usain Bolt, Michael Phelps e outros astros salvaram o complexo na Barra da Tijuca após o estouro da bolha imobiliária carioca gerada pelos Jogos Olímpicos.

O BANCO IMOBILIÁRIO

Cada época e cada urbanista tem uma ideia da melhor cidade para se viver. A cidade modernista (Brasília é seu modelo mais exemplar) nunca esteve tão em xeque, com sua divisão dos bairros por função (setor comercial, hoteleiro etc) e a dependência do carro. Condena-se sua lógica separatista de distanciar moradia do trabalho.

Já a metrópole pós-moderna, como São Paulo ou Tóquio, é criticada por ser desorganizada, policêntrica e impulsionada pelas várias iniciativas privadas e legislações movediças. Reprova-se esse centro urbano que cresce sem urbanismo, com sua acumulação serial de construções, demolições e reconstruções, atrás do aproveitamento máximo do solo. É uma mistureba de estilos, alturas e revestimentos, que cresce para além das vontades de burocratas e executivos.

Por outro lado, a cidade densa tem muitos defensores atualmente. Urbanistas como o dinamarquês Jan Gehl e o norte-americano Jeff Speck defendem uma espécie de metrópole pré-moderna, com prédios baixos e próximos, além de um perímetro urbano menor. É a “cidade caminhável” que Speck vê em Portland e a “cidade para pessoas” que Gehl projetou em Copenhague. O lema é adensar as construções sem verticalizar, receita seguida, por exemplo, por Paris e Barcelona.

O economista norte-americano Edward Glaeser defende uma cidade de arranha-céus como Hong Kong. Moradia, trabalho, comércio, tudo junto para gastar menos tempo e energia nos deslocamentos. O problema dessas cidades concentradas é que o preço da moradia aumenta no centro, e a população pobre ou mora em cubículos ou se afasta para a periferia, como aconteceu em Hong Kong e Portland, respectivamente. Liberal, Glaeser defende que a cidade é o lar das oportunidades e das desigualdades. Já o marxista Harvey crê que é o cenário ideal das revoluções.

"APERTAMENTOS" E OCUPAÇÕES

“A dor de ficar no trânsito é insuportável. Por isso, oferecemos um novo estilo de vida: morar menor é morar melhor”, afirma Alexandre Lafer Frankel, CEO da Vitacon, construtora que ficou famosa por seus apartamentos de 10 ou 14 metros quadrados, um pouco maiores que uma vaga de garagem, em bairros centrais de São Paulo, vendidos a partir de R$ 80 mil. “Ter seu tempo ao quadrado é melhor que metro quadrado”, completa.

Os empreendimentos incorporam conceitos da economia compartilhada: salas de coworking, bicicletas para alugar, ferramentas comuns aos condôminos, entre outros itens. Em uma cidade de 50% de pessoas solteiras, segundo o IBGE, a solução parece boa na lógica individual. Mas Lafer admite que essa solução não é para todos. “A iniciativa privada pode oferecer algumas opções para famílias de baixa renda, mas é o governo que deve atender a população em situação de risco”, afirma.

A habitação é uma mercadoria tão especial que quanto mais se constrói, mais o preço sobe, diferente de todas as outras

Erminia Maricato, urbanista e professora aposentada da FAU-SP

Irene Silva é uma das pessoas nesse contexto apontado por Lafer. Ela vive com uma filha na Ocupação 9 de Julho, um prédio abandonado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) há mais de 30 anos no centro paulistano. Ela foi incluída entre os futuros moradores do hotel Cambridge. O prédio está sendo reformado pelo MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) com auxílio do programa “Minha Casa Minha Vida - Entidades”, que representa menos de 2% do total do programa de moradia. Outro exemplo em São Paulo é o edifício Dandara.

São Paulo tem cerca de 250 imóveis tomados por ocupações, sendo 70 deles no centro, onde até a icônica esquina das avenidas São João com Ipiranga têm prédios ociosos (há 1.098 desses imóveis vazios na cidade sujeitos ao IPTU progressivo por estarem muitos anos sem uso). “Sempre vivi de aluguel. Quando meu marido morreu, não consegui mais sustentar a família e vim para a ocupação. Nunca iria imaginar que conseguiria a casa própria vindo para uma ocupação”, relata Irene, que trabalha como porteira no prédio ocupado em que mora.

A maioria das lideranças e das integrantes dos movimentos sem-teto é formada por mulheres chefes de família — e o presidente eleito Jair Bolsonaro já classificou os sem-teto de “terroristas” e cogitou enviar projeto para o Congresso Nacional sobre o tema. Sintomático desse cenário é que o “11 de setembro brasileiro” foi no 1º de maio de 2018, quando o edifício Wilton Paes de Almeida desabou escancarando a lógica da exclusão social no país.

EXÍLIO DAS PERIFERIAS

“Ninguém liga quando um milhão de pessoas moram em área de mananciais, gerando um problema ecológico, econômico e social. Mas quando um grupo entra em um prédio cheio de entulho e ratos no centro vira um caso de polícia. Isso porque essa área tem infraestrutura e interessa ao mercado”, analisa Maricato.

O Minha Casa Minha Vida também ajudou a formar cidades mais espalhadas, com a maioria das obras nas margens. Muitos municípios, como Uberlândia (MG) e Londrina (PR), ampliaram suas zonas urbanas em direção às fazendas vizinhas para erguer bairros no meio do campo. Já no Rio e em sua área metropolitana, muitos prédios foram levantados em áreas dominadas por milícias, que distribuíram os apartamentos segundo suas regras internas.

O direito à cidade virou uma forma de investimento, cooptado pelo setor imobiliário e financeiro. Eu penso direito à cidade como uma cidade construída para se morar, com meio ambiente preservado e qualidade de vida. Isso nunca poderá ser feito por ações relacionadas ao mercado

David Harvey, geógrafo e professor da City University de Nova York


O que se viu no Brasil todo foi uma suburbanização em massa, promovida para tentar adiar os efeitos da crise mundial de 2008 por aqui (essa estratégia política foi adotada na mesma época pela China, em escala multiplicada, com a construção de cidades-fantasmas no país mais populoso do mundo). Para Maricato, o programa do governo do PT piorou as cidades. “As cidades se espalharam horizontalmente, obrigando a levar água, esgoto, luz e transporte para áreas que eram rurais. E todos pagam por isso”, afirma a urbanista.

“Há uma dinâmica perversa no Brasil, porque há um estoque enorme de imóveis vazios ou subutilizados. Enquanto não se resolver a questão da terra, não vamos ter moradia decente para a população”, afirma Edésio Fernandes, professor de direito urbanístico da University College London.

Para ele, a lei 13.465, aprovada em 2017 e batizada de “lei da grilagem” por tratar da regularização fundiária rural e urbana, pode prejudicar os avanços da Constituição de 1988 e do Estatuto das Cidades de 2001.  “Ela só trata da privatização das terras públicas da União. As leis anteriores davam prioridade ao direito de moradia”, analisa. Ele cita como exemplos positivos as legislações de Londres e Barcelona, que destinam 30% de todos os loteamentos novos para moradia de interesse social.

Desde a Mesopotâmia, há 8.000 anos, as cidades marcam o surgimento das civilizações e das culturas. Nelas, o poder se solidifica. Lá, circulam produtos, ideias e cromossomos. Depois de milênios com urbes criadas como centros de governo e comércio, surgiram no século 19 as cidades industriais, levando milhares de pessoas do campo para as manufaturas.

Hoje em dia, 50% da população mundial está concentrada em apenas 2% da superfície terrestre, mas as megalópoles já são cidades pós-industriais. Nelas, a produção atual é de espaço. “A moradia virou sinônimo de mercadoria”, classifica a arquitetura Raquel Rolnik, que foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Direito à Moradia Adequada de 2008 até 2014.

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