QUE SEMANA FOI ESSA?

Lendária, mera ação entre amigos ricos? Semana de 22 chega aos 100 anos mais debatida que nunca. O que fica?

Matheus Pichonelli e Tiago Dias Do TAB, em São Paulo

Aconteceu: a Semana de Arte Moderna chegou aos 100 anos sob o risco de cancelamento. Não bastassem os textos nos jornais, livros, a grita de artistas que a veem como branca, burguesa e paulista, o escritor Ruy Castro, em ensaio publicado dia 6 de fevereiro na Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, chegou a afirmar que o festival de três dias só virou alguma coisa porque Oswald de Andrade gostava de reescrever a história. E que foi o governo militar, em 1972, que a tirou do esquecimento.

Convidado do programa "Roda Viva" no dia seguinte (7), repetiu tudo o que havia escrito.

Mesmo que a tese de Ruy Castro pareça exagerada, está claro que aquele encontro de artistas bancado por alguns ricaços e pelo próprio governo (na figura do "presidente da província" Washington Luís), em celebração aos 100 anos da Independência do Brasil, não foi propriamente o Big Bang da modernidade brasileira. Foi o quê, então?

Exposições e leituras sobre a Semana já tomam algumas praças — quase sempre em São Paulo. Em quase todas, a palavra "revisão" ecoa baixinho. Reconhece-se o marco, discutem-se as ausências.

Se ainda é difícil classificar o que foi a Semana de 22, repensar seus legados talvez leve mais cem anos. Afinal, como aquele movimento — hoje desconstruído por muitos críticos e historiadores — reverbera na produção artística nacional? O que resta de "moderno" em 2022? Foi o que TAB perguntou a artistas e pensadores, às vésperas do centenário.

CHEGOU A NOSSA VEZ?

Segundo a imprensa da época e alguns relatos, a Semana de 22 queria acabar com a cintura presa da arte oficial, chancelada por escolas de belas-artes e salões bem frequentados. Falava de avião, automóvel, do barulho de São Paulo. Nos livros didáticos, parece que foi defenestrada por parte do público — em 1917, Anita Malfatti já havido sido execrada por Monteiro Lobato. As apresentações no Theatro Municipal foram tidas como derivação "feia" das modas europeias.

Hoje, a 500 metros do palco da Semana, no número 63 da rua do Ouvidor, um grupo de paulistas, baianos, cariocas, paraenses e estrangeiros abraça inconscientemente o lema de Menotti del Picchia, jornalista que, no segundo dia de apresentações da Semana, proclamou: "A nova estética é de reação. Como tal, é guerreira".

A Ouvidor 63 é a maior ocupação cultural da América Latina. Entre grafites e obras, o manifesto de Roger BeatJesus, negro e morador do Capão Redondo, provoca os moradores. "Os modernistas codificaram a nossa cultura e nós (??) descendentes quilombos, afro, indígenas, filhos do Nordeste e da mãe preta, qual nossa história na arte do Brasil? Deixaremos que eles novamente influenciem a próxima geração?".

Na cobertura do edifício, Mlok pensa em sua próxima instalação. O artista, que nunca mostra o rosto, começou na pixação e já exibiu na Suécia e na Dinamarca. Inspirado em Ferreira Gullar, Hélio Oiticica e Lygia Clark, diz se interessar por obras "penetráveis". "A arte moderna dos anos 1920 ainda era muito concentrada no visual. Você vai lá, mãozinha pra trás, respeita a faixa amarela e contempla", diz. "Meu trabalho não é só para o olho; é textura, tato."

Ele esperava montar uma de suas instalações, que reproduzem barracos e habitações improvisadas, dentro do Municipal, neste centenário. Contou ter sido convidado pela Prefeitura e apresentou o projeto cultural "Chegou a Nossa Vez", mas nunca teve retorno.

Ao seu lado, o soteropolitano Lucas Cruz faz pinturas e as distribui pela cidade. "Vamos sair pra rua de qualquer maneira. A ideia é ir até a frente do Municipal e voltar", ele explica. Sem fazer parte do calendário oficial do centenário, o cortejo ocorreu dia 12 e puxou jovens artistas do Ouvidor.

O PIXO, A POESIA E A CIDADE

Cripta Djan, que na Bienal de 2008 cobriu de pixo as paredes nuas do pavilhão projetado por Oscar Niemeyer, indo parar nas páginas policiais, seria um dos artistas no projeto original de Mlok.

Recado urbano virulento, tal qual "Ode ao Burguês", poema de Mário de Andrade lido na Semana de 22, o pixo também esgrime contra a elite retrógrada.

No ano seguinte à Bienal, o artista fez parte de uma retrospectiva mundial de arte de rua, bancada pela Fundação Cartier, em Paris. "Fui obrigado a me aprofundar nessa discussão, para saber onde estava pisando. Foi aí que percebi que a gente é educado para se entender como vândalo, criminoso. É mais um mecanismo de segregação", observa Djan.

Para o poeta e ensaísta Mauricio Salles Vasconcelos, nunca foi tão necessária a crítica desse Brasil que se modernizou. "Os grandes opositores da liberdade e da invenção são os próprios brasileiros, que fizeram da arte um espaço de corporativismo, de total burocratização." O modernismo de cem anos atrás foi um levante de base crítica, diz ele. É preciso fazer o mesmo hoje.

O escritor Marcelo Ariel, citado por Vasconcelos como um artista que dialoga com a herança das questões modernistas, não titubeia. "Temos uma burguesia estúpida. O maior legado da Semana de 22 talvez seja a demanda urgente de que surja uma elite econômica culta, interessada numa verdadeira convergência entre economia, arte e vida, capaz de movimentos cada vez mais expansivos e inclusivos."

O BOM, O 'FEIO' E O JUSTO

Se, em 1922, o escritor Monteiro Lobato afirmava que as obras modernistas seriam fruto de "cérebros transtornados por psicoses", a reação que uma nova geração provoca não parece diferente.

"Tem gente hoje que anda nostálgico da 'arte pela arte'. O conceito de beleza é um conceito grego, esse ideal ainda não foi desconstruído", observa o historiador da arte João Correia. "Não faz sentido a gente como país que foi colonizado olhar para algo com tradição europeia e, só por isso, achar bonito."

Marchand de Cripta Djan, Correia acredita que o futuro hoje está em artistas que pensam nas transformações. "É uma pauta quase diária a desconstrução geral, de gêneros, do colonialismo, da raça, do trabalho, das cadeias de produção. O pixo, assim como um grupo grande de artistas, nos ajudam a não ficar obsoletos como seres humanos diante disso."

Entre outros nomes, ele cita o de Vita Evangelista como alguém que estuda, através de mídias digitais, escrita e performance, o cruzamento entre códigos de gênero e tecnologia. Em um de seus trabalhos, o uso da realidade virtual propõe um passeio pela rua onde morou, como uma forma de analisar o universo que rodeia e atravessa seu corpo político.

Para Evangelista, a antropofagia derivada da proposta da Semana de 22 vai além das paredes brancas que circundam instituições e definições de arte. "Torna-se urgente torcer a linguagem, deformar a imagem, confundir os padrões de categorização da vida humana, hackear o corpo, emergir o que sempre esteve fadado às profundezas, descentralizar", observa. "Qualquer prática de uma pessoa trans é uma prática de hackeamento e distorção sistêmica."

UM PIANO E UM TAMBORZÃO

Heitor Villa-Lobos foi protagonista do 3º dia da Semana de 1922. Com um pé calçado num sapato e outro no chinelo (por causa de um calo inflamado), o compositor mostrava à plateia a confluência entre a música erudita, tradicionalmente europeia, e a musicalidade da cultura popular brasileira.

Naquele mesmo ano, desembarcavam na França para apresentar seus sambas e chorinhos outro maestro, Pixinguinha, junto à sua banda, Oito Batutas. A coincidência entre os eventos fez Emicida levantar a questão da ausência dos negros na discussão modernista, ao gravar o show e documentário "AmarElo", no mesmo Theatro Municipal, em 2019.

Se Villa-Lobos introduziu elementos populares na música erudita, hoje, os produtores vindos da periferia buscam nela o sample para a batida perfeita — "Bum Bum Tam Tam", de MC Fióti, foi hit mundial pegando emprestado um trecho da "Partita em Lá Menor para Flauta Solo" do alemão Johann Sebastian Bach.

"O funk e o rap têm a oportunidade de beber em diversas fontes de cultura. Muita coisa caminha nesse sentido [antropofágico]. O funk brasileiro, por exemplo, é a música eletrônica original brasileira, a batida vem do maculelê e de outros ritmos africanos. É muito moderno e muito ancestral ao mesmo tempo", observa o rapper Don L.

A busca por uma identidade brasileira, que guiava os modernistas, de alguma forma percorre a história do novo disco do rapper, "Roteiro para Ainouz, vol. 2". Para ele, estamos em plena primavera cultural no Brasil, muito mais diversa que o evento de 1922. Nos anos 2000, o próprio rapper furou a bolha do rap no Sudeste com o grupo Costa a Costa, vindo de Fortaleza.

Apesar disso, o poder de financiar e ditar as regras do futuro da arte brasileira ainda está em outras mãos. "Pelo menos na música, quem patrocina ou faz curadoria não são pessoas ligadas à arte, mas ao mercado", explica. "Eu luto pela ressurreição de uma música brasileira em que a gente dite todas as regras."

ALAÚDE PARA O TUPI

Depois da Semana de 22, Villa-Lobos radicalizou na introdução de ritmos e sonoridades próprias da música brasileira em suas peças eruditas. "Ele fez isso porque era moderno ou fez isso porque era nacional? Talvez pelos dois motivos", afirma a professora da USP Flávia Toni, pesquisadora do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) e organizadora do projeto "Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna", que reuniu a íntegra das obras apresentadas no Sesc-SP.

Diretor artístico do programa, o violinista e regente Cláudio Cruz lembra que Villa-Lobos sempre respeitou a tradição, mas ainda assim não deixou de ser um ícone modernista e viria a influenciar depois até a bossa nova — que, por sua vez, influenciaria os tropicalistas. "Tom Jobim usufruiu muito da música de Villa-Lobos."

O compositor Flo Menezes,fundador do Studio PANaroma de música eletroacústica da Unesp (Universidade Estadual Paulista), reflete sobre a dualidade da Semana — uma vontade de colocar o país na linha de frente dos debates culturais e uma postura nacionalista muito agradável aos ditadores brasileiros que foram surgindo. "Se nosso cérebro for inteligente o suficiente para ouvirmos os sons para além de nosso quintal, devemos radicalizar nossa postura internacionalista, cosmológica, e dar bananas ao provincianismo nacionalista e ao imperialismo dos 'países poderosos'. Formular a vanguarda, e doa a quem doer."

Flávia Toni pondera que, no campo da música, as vanguardas já não são mais as que criam linguagens novas, mas as que acolhem questões como centro x periferia. "Hoje, em respeito a todas as nações indígenas, Mário de Andrade não teria escrito que era um tupi tangendo um alaúde. Teria pedido que eles viessem tocar."

Cantora e jornalista indígena, Djuena Tikuna diz que a arte feita por indígenas mantém viva a cultura que a colonização não conseguiu destruir. Com o lema "nunca mais sobre nós, sem nós", ela afirma que não há mais espaço para "a tutela da invisibilidade". "Ainda é muito estranho para muita gente ver os povos indígenas tendo voz, produzindo seus trabalhos, escrevendo seus projetos. É importante que isso seja incentivado para que as novas gerações saibam o caminho que trilhamos e tenham orgulho de serem quem são."

Para os próximos 100 anos, a palavra final só poderia ser dela. "Ainda temos fôlego para mais um canto."

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