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99 anos depois, humoristas negros fazem 'reparação histórica' no Municipal

Humoristas no palco do Theatro Municipal de São Paulo, durante o show de stand up "Risadas Pretas Importam" - Rafael Salvador/Divulgação
Humoristas no palco do Theatro Municipal de São Paulo, durante o show de stand up 'Risadas Pretas Importam'
Imagem: Rafael Salvador/Divulgação

Henrique Santiago

Colaboração para o TAB, de São Paulo

21/11/2021 11h00

A sala de espetáculos do Theatro Municipal de São Paulo tinha expectativa de lotação máxima: 1.500 ingressos vendidos. "Mil quinhentos e vinte e três", corrigiu, aos risos, uma mulher. "Eu já fiz shows para 23 pessoas e estava lotado", respondeu às gargalhadas um homem.

Do lado de fora, um batalhão de policiais militares, equipados com armas e carros modernos, cercavam a Praça Ramos de Azevedo, no combalido centro histórico de São Paulo, na noite de sábado (20). Mas os oficiais não estavam ali para fazer a segurança de humoristas que subiriam ao palco em alguns instantes, e sim para acompanhar um ato capitaneado por ativistas negros no feriado da Consciência Negra.

Hélio de La Peña, Yuri Marçal, Niny Magalhães, Paloma Santos, Kedny Silva, Gui Preto e Zete Brito também protestaram à sua maneira. Eles levaram ao Theatro Municipal o show de stand up "Risadas pretas importam", nome derivado do movimento Vidas negras importam, composto apenas por comediantes negros.

Uma hora antes, a casa recebera músicos para uma récita de música clássica. À noite, negros e negras e brancos e brancas de todas as idades e cantos da cidade eram recebidos em seus assentos com mensagens diretas: "Racistas otários nos deixem em paz / Pois as famílias pobres não aguentam mais" ou "A verdade é que você tem sangue crioulo / Tem cabelo duro, sarará crioulo", letras de músicas do Racionais MCs e Sandra de Sá, respectivamente, que reverberavam dos alto-falantes do computador do DJ Jé Versátil.

"Com tanto preto no teatro, é claro que ia estar cercado de policiais", disse Paloma Santos em um palco com iluminação baixa, provocando risos da plateia.

Para humoristas negros, rir é um ato duplamente político. O TAB conversou no camarim com os sete comediantes antes da apresentação para entender o que o 20 de novembro significa nos campos da arte e vida para cada um deles.

Humoristas nos bastidores do espetáculo 'Risadas Pretas Importam', no Theatro Municipal de São Paulo - Rafael Salvador/Divulgação - Rafael Salvador/Divulgação
Camarim do espetáculo 'Risadas Pretas Importam'
Imagem: Rafael Salvador/Divulgação

99 anos depois?

O racismo é tema obrigatório das piadas feitas na base do improviso. De la Peña, curador do evento, recorda que o Theatro Municipal foi palco da Semana de Arte Moderna de 1922, que reuniu a vanguarda artística paulistana de então. "O próprio Mário de Andrade falou da ausência do negro na arte brasileira. 'Apenas' 99 anos depois, temos um espetáculo como esse. Estamos fazendo uma bela reparação histórica, né?", afirmou.

Os humoristas só conseguiram puxar na memória o nome de Emicida, que fez um show histórico em 2019 e virou documentário na Netflix no ano seguinte. Difícil foi dizer se algum ídolo comediante já pisou os pés ali antes deles. "Acho que o Grande Otelo", arriscou Kedny Silva.

Helio de la Peña, no show de stand up 'Risadas Pretas Importam' - Rafael Salvador/Divulgação - Rafael Salvador/Divulgação
Hélio de la Peña, no show de stand up 'Risadas Pretas Importam'
Imagem: Rafael Salvador/Divulgação

De la Peña, que vestia uma camiseta estampada com o rosto de Mussum, reconhece que o stand up oferece a possibilidade de desviar de estereótipos, diferentemente do que aconteceu na TV a partir dos anos 1970. Os negros eram retratados como mal-educados, incultos ou figuras altamente sexualizadas — isso quando não eram interpretados por brancos que pintavam o rosto de preto até pouco tempo, prática conhecida como blackface.

"Quem era o autor daquelas piadas? Olha uma redação nos anos 1960, 1970, 1980. Se pegar os anos 1990 vai ter um preto: eu. Esse é o reflexo, não tinha outro jeito", declarou, e emendou de bate-pronto: "Eu não tenho o menor problema com o estereótipo porque ele mostra como tudo é. Você ri daquilo e vê o quão ridícula é aquela situação."

No caso das mulheres, a procura por uma referência é ainda mais árdua. A atriz Marina Miranda, eternizada pela personagem Crioula Difícil, foi por anos o exemplo solitário para meninas que queriam trilhar o mesmo caminho. É o caso de Niny Magalhães, artista da nova geração.

"Tive muito problema com a minha aparência na infância e adolescência porque eu não me via, não me encontrava nos programas de que eu gostava. Demorou muito até aparecer 'As visões da Raven'", gargalhou, em referência ao seriado da TV norte-americana protagonizado por uma atriz negra.

Público durante 'Risadas Pretas Importam', no Theatro Municipal de São Paulo - Rafael Salvador/Divulgação - Rafael Salvador/Divulgação
Imagem: Rafael Salvador/Divulgação

Todos no palco

Quem esperava uma apresentação exclusivamente alinhada à pauta racial pode ter se frustrado. O compromisso dos artistas era pura e simplesmente fazer rir, como quando De la Peña se vestiu de "Chocolate Cumprimenta", paródia dos anos 2000 da novela global "Chocolate com Pimenta" em que um educado homem de terno e cartola cumprimenta com um aperto de mão quem aparecesse na sua frente. A diferença é que a pandemia de covid-19 permite apenas um tímido aceno.

Houve também troças mais incisivas, que fizeram repensar o esquete. "A diferença da covid-19 para polícia é que ela tira o gosto da boca, e a polícia deixa um gosto de sangue na boca", disse Gui Preto, que viu o público reagir com risos desconfortáveis. "É pesado, né? Tenho mais três piadas sobre policiais", completou, prosseguindo com um roteiro mais sutil.

O que de fato causou incômodo era uma voz masculina que balbuciava algo indistinguível, em um assento superior da sala. O desconforto foi tamanho que o anônimo interrompeu as quatro primeiras apresentações do espetáculo. Até que foi expulso, aos aplausos, por funcionários do teatro.

Um alívio para Kedny Silva, que refez a piada sobre ele ser um homem casado incapaz de comprar tomate no supermercado. "Amém", disse ele, angariando mais palmas da plateia.

Imagem de Jorge Lafond exibida durante show de stand up 'Risadas Pretas Importam', no Theatro Municipal de São Paulo - Rafael Salvador/Divulgação - Rafael Salvador/Divulgação
Imagem de Jorge Lafond exibida durante show de stand up 'Risadas Pretas Importam'
Imagem: Rafael Salvador/Divulgação

Entre anedotas sexuais ("Quanto custa uma transa batendo na bunda?", disse Zete Brito, sobre um cliente que errou a digitação da palavra trança) e críticas à falta de representatividade negra no streaming ("Eu vou ter que ralar para aparecer no streaming. A Elize Matsunaga esquartejou o marido e ganhou uma série. Eu iria para um presídio em Bangu", contou Niny Magalhães), talvez o momento mais aguardado fosse a chegada de Yuri Marçal.

Fenômeno das redes sociais, ele encerrou a apresentação do grupo com menções a um Jesus Cristo negro. E não escapou da costura de temas políticos ao dizer que Barrabás, ladrão salvo da crucificação na narrativa do Novo Testamento, era um criminoso que "roubou, matou e sonegou vacinas", em uma cutucada no governo.

Os comediantes também prestaram homenagens a ídolos negros do humor, com reverências a Jorge Lafond, Paulo Silvino e Mussum. "A mensagem já está dada quando tem um preto no palco", disse Hélio de la Peña. Ou sete, no caso.